Opinião

Fake law: infidelidade na 'regulamentação' do Sistema Nacional de Cultura

Autor

  • Humberto Cunha Filho

    é professor de Direitos Culturais nos programas de graduação mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (Unifor) presidente de honra do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e autor dentre outros dos livros “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)atos Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética).

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24 de julho de 2024, 21h24

O § 3º do artigo 216-A determina que “lei federal disporá sobre a regulamentação do Sistema Nacional de Cultura, bem como de sua articulação com os demais sistemas nacionais ou políticas setoriais de governo”. O dispositivo é portador de uma atecnia congênita, pois há diferença entre “lei federal” (a que cria direitos apenas no âmbito da União) e “lei nacional” (a que impacta sobre toda a nação) [1]. Deste modo, para disciplinar o Sistema Nacional de Cultura (SNC), o adequado é que uma lei nacional o faça [2].

José Cruz/Agência Brasil

Tal lei teria como missão detalhar os elementos componentes do SNC, observados os princípios que a Constituição definiu para ele. Sua epígrafe poderia ser simplesmente “Regulamenta o Sistema Nacional de Cultura, nos termos do § 3º do Art. 216-A da Constituição da República Federativa do Brasil”.

Muitos acreditam que a regulamentação do SNC consta da Lei nº 14.835, de 4 de abril de 2024, mas, com todo o respeito, equivocam-se, pois ela faz coisas muito diversas disso, conforme se verá adiante.

A discrepância começa pela epígrafe, assim redigida: “Institui o marco regulatório do Sistema Nacional de Cultura (SNC), para garantia dos direitos culturais, organizado em regime de colaboração entre os entes federativos para gestão conjunta das políticas públicas de cultura”. A primeira observação é que “instituir o marco regulatório do…” é diferente de simplesmente “regulamentar o…” SNC, pois, pelo primeiro intento busca-se dizer o que é o próprio Sistema, enquanto pelo segundo reconhece-se que ele já foi especificado pela Constituição, carecendo apenas de aspectos operacionais.

Tanto é assim, que a lei sob análise ganha autonomia em face da Carta de 1988, pois como já visto na ementa, e que é repetido no artigo 1º, ela fala da “colaboração entre os entes federativos”, porém, a Constituição determina que as políticas públicas relativas ao SNC sejam pactuadas entre “os entes da Federação e a sociedade”.

É bem verdade que no artigo 6º (e em outros dispositivos) aparece a expressão “sociedade civil”, que significa a formalmente organizada, conceito muito mais restrito do que simplesmente “sociedade” [3]. Para sintetizar, as expressões “sociedade” e “sociedade civil” aparecem diversas vezes na Constituição, com cargas valorativas específicas, sendo que a Lei simplesmente desconheceu a primeira, o que é gravíssimo, pois escanteou a legítima pactuante do Sistema Nacional de Cultura.

Mais problemas

Certamente, outra grande infidelidade da lei para com a Constituição, que também se mostra uma inadequação limitadora das potencialidades culturais, é o disciplinamento contido no Capítulo I, principalmente quando trata de definições e princípios. As definições restringem e engessam a própria dinâmica cultural [4].

Quanto aos princípios, caso se tratasse de regulamentação, bastaria fazer referência aos constitucionalmente indicados, e nem todos os que estão no § 1º do artigo 216-A aparecem na lei, além de que outros foram inseridos, desnaturando a ordem do constituinte.

Spacca

Outro grave problema da lei relaciona-se com a necessidade de “adesão” dos entes políticos ao SNC, algo sem qualquer cabimento, pois o artigo 216-A da Constituição não possui referência a tal prática, deixando entender que participar do sistema é uma decorrência do simples fato de integrar o pacto federativo.

Como não bastasse a exigência e a especificação dos requisitos, a lei estabelece no § 4º do artigo 5º que “a adesão plena dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios ao SNC, [será] estabelecida nos termos de regulamento…”, ou seja, deixará as exigências ao encargo de uma decisão monocrática, justamente em um sistema que insiste em pronunciar repetidamente a palavra “democracia”.

A rigor, se a Lei nº 14.835/2024 fosse realmente uma regulamentação do SNC, ela deveria ficar restrita ao seu Capítulo V, porém, não cabe uma sugestão de simples revogação dos demais, seja porque ele está completamente afetado pelas infidelidades acima mencionadas, mas sobretudo porque suas premissas são verticalizadas “de cima para baixo”, quando o setor cultural deve reger-se, preferencialmente, pelos movimentos horizontais e, quando se depara com estruturas de múltiplos níveis, de baixo para cima (“botton up”) [5], algo que deveria ser observado para uma nova, verdadeira, fiel e democrática regulamentação do Sistema Nacional de Cultura.

 


Notas

[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2017.

[2] CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Federalismo Cultural e Sistema Nacional de Cultura: contribuição ao debate. Fortaleza: Edições UFC, 2010.

[3] BOBBIO, Norberto. Sociedade Civil. Dicionário de Política. Brasília: UNB, 1998.

[4] Ver as três análises de MAGALHÃES, Allan Carlos Moreira. A dimensão cidadã no Sistema Nacional de Cultura; A dimensão simbólica no Sistema Nacional de Cultura; A dimensão econômica no Sistema Nacional de Cultura. In: https://www.ibdcult.org/blog/categories/coluna-exordial

[5] PETRILLO, Pier Luigi. Patrimônio Cultural Imaterial: identidade nacional e direitos humanos fundamentais – o papel da Convenção da Unesco de 2003 em uma perspectiva comparada. Tradução: Francisco Humberto Cunha Filho, Rodrigo Vieira Costa e Thiago Burckhart. REJUR -Revista Jurídica da Ufersa. Mossoró, v. 8, n. 15, jan./jun. 2024, p. 24-40

 

 

 

Autores

  • é professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (Unifor), presidente de Honra do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e autor, dentre outros, do livro Teoria dos Direitos Culturais: Fundamentos e Finalidades (Edições Sesc-SP).

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