Distribuição disfarçada de lucros e o conceito de pessoa ligada
24 de julho de 2024, 10h19
Nesta semana, trataremos dos precedentes do Carf em que se discute a abrangência do conceito de pessoa ligada para fins de aplicação das regras de distribuição disfarçada de lucros.
No âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, a determinação de alguma consequência tributária para as operações praticadas entre uma pessoa jurídica e suas partes relacionadas surge com as normas que tratam de distribuição disfarçada de lucros, previstas originalmente no artigo 72 da Lei nº 4.506/64.
Ainda assim, o domínio de aplicação das normas se restringia, nesse primeiro momento, aos negócios jurídicos praticados entre a pessoa jurídica e seus acionistas, sócios, dirigentes ou participantes nos lucros, bem como os respectivos parentes ou dependentes.
A regulação jurídica da distribuição disfarçada de lucros seria significativamente alterada com a edição do Decreto-lei n. 1.598/77 e do Decreto-lei n. 2.064/83 [1], vigentes até hoje. Como alterações relevantes, merecem ser citadas as seguintes: (i) a norma jurídica passa a se referir à distribuição disfarçada de lucros como uma presunção, de forma que a pessoa jurídica pode comprovar que um negócio jurídico foi realizado no interesse da pessoa jurídica e em condições estritamente comutativas; e (ii) o controle da ocorrência ou não de lucros distribuídos disfarçadamente passa a se fundamentar nas relações da pessoa jurídica com suas pessoas ligadas.
A instituição de um conceito de “pessoa ligada” trouxe uma maior delimitação às operações que estariam sujeitas ao controle da distribuição disfarçada de lucros. Cumpre transcrever o artigo 60, §3º, do Decreto-lei nº 1.598/77, que estabelece o alcance da pessoa ligadas nos seguintes termos:
Decreto-lei nº 1.598/77 (já com as alterações do Decreto-lei n. 2.064/83): “Art. 60. (…) § 3º Considera-se pessoa ligada à pessoa jurídica:
a) o sócio desta, mesmo quando outra pessoa jurídica;
b) o administrador ou o titular da pessoa jurídica;
c) o cônjuge e os parentes até terceiros grau, inclusive os afins, do sócio pessoa física de que trata a letra “a” e das demais pessoas mencionadas na letra “b”.
Como se observa, o conceito de pessoa ligada contido na legislação brasileira é bastante restrito, diferentemente do que acontece com o conceito de pessoa vinculada trazido na Lei nº 9.430/96 e aplicável aos preços de transferência (que abrange situações em que as empresas estejam sob controle societário ou administrativo comum, desde que uma delas esteja obviamente no exterior).
Todavia, o artigo 61 do Decreto-lei nº 1.598/77 traz uma ampliação específica do alcance das regras de distribuição disfarçada de lucros para a hipótese de negócios jurídicos em condições de favorecimento que são realizados com pessoa ligada por intermédio de outrem ou com sociedade na qual a pessoa ligada tenha, direta ou indiretamente, interesse, conforme abaixo:
Decreto-lei nº 1.598/77 (já com as alterações do Decreto-lei n. 2.064/83):
Art. 61. Se a pessoa ligada for sócio controlador da pessoa jurídica, presumir-se-á distribuição disfarçada de lucros ainda que os negócios de que tratam os itens I a VII do artigo 60 sejam realizados com a pessoa ligada por intermédio de outrem, ou com sociedade na qual a pessoa ligada tenha, direta ou indiretamente, interesse.
Parágrafo único. Para os efeitos deste artigo, sócio ou acionista controlador é a pessoa física ou jurídica que diretamente, ou através de sociedade ou sociedades sob seu controle, seja titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria de votos nas deliberações da sociedade.
2º – O disposto no § 2º do artigo 60 aplica-se aos negócios da companhia com o acionista controlador.
3º – O disposto neste artigo não se aplica aos negócios, contratados com observância das estipulações da respectiva convenção, entre sociedades que pertençam a grupo constituído nos termos do Capítulo XXI da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976.
Feitas as considerações gerais sobre o tema, passaremos à análise dos precedentes do Carf que tratam do assunto.
No Acórdão 1401001.533 (de 2/2/2016) [2], foi negado provimento ao recurso voluntário de forma unânime, confirmando-se o entendimento das autoridades fiscais no sentido de ocorrência de negócio jurídico em condições de favorecimento entre pessoas ligadas.
O caso envolveu a alienação de ações pela contribuinte por valor notoriamente inferior ao valor de mercado para pessoas físicas que não eram suas sócias diretas, mas que detinham o controle societário de pessoas jurídicas que eram as sócias diretas da contribuinte.
Por sua vez, no Acórdão 1402002.293 (de 13/9/2016) [3], a turma negou provimento ao recurso de ofício por unanimidade, confirmando o entendimento que já havia sido exteriorizado no Acórdão da DRJ.
A contribuinte fazia parte de grupo econômico brasileiro que se aliou a outros dois grandes grupos econômicos nacionais para a constituição de uma pessoa jurídica que adquiriu pessoa jurídica atuante no setor elétrico no processo de desestatização de empresas estatais ocorrido no final do século passado.
Após pouco mais de uma década, a contribuinte adquiriu a parcela da participação societária detida pelas pessoas jurídicas controladas pelo outro grupo econômico nacional. Diante de tal cenário, as autoridades fiscais entenderam que se trataria de negócio jurídico praticado entre pessoas ligadas e em condições de favorecimento.
Todavia, a turma entendeu que a pessoa jurídica alienante não era acionista da empresa adquirente. Assim sendo, o fato de adquirentes e alienante participarem do capital de uma pessoa jurídica “holding” constituída no âmbito do processo de desestatização não se enquadra em qualquer conceito de ligação trazida no artigo 465 do RIR/99, constando expressamente no voto que “não há qualquer hipótese de ligação em razão de duas empresas participarem do capital de uma terceira”.
Desse modo, para que a alienante fosse considerada pessoa ligada à recorrente (ou ainda a outra pessoa do grupo também adquirente), a alienante deveria ser necessariamente acionista das adquirentes.
No Acórdão 1301-004.148 (de 15/10/2019) [4], foi dado provimento ao recurso voluntário de forma unânime no que tange à não caracterização do caso concreto como negócio jurídico com pessoa ligada.
O conselheiro relator manifesta o entendimento de não aplicação do conceito de pessoa ligada do artigo 465 do RIR/99 (que equivale ao artigo 60 do Decreto-lei nº 1.598/77) ao caso concreto e no que toca ao artigo 466 do RIR/99 (que equivale ao artigo 61 do Decreto-lei nº 1.598/77), o conselheiro relator aponta que:
“O artigo 466 dá ao conceito de pessoa ligada contornos finais, o entendimento deve ser literal, ou seja, nenhuma interpretação que amplie o sentido da expressão pessoa ligada poderá prevalecer. É que a distribuição disfarçada de lucros é uma presunção e, como tal, seu campo de incidência não pode ser elastecido por analogia, interpretação extensiva ou qualquer forma de exegese que implique colher situações não previstas expressamente no dispositivo legal.”
Vale notar que no caso concreto, foi qualificada como uma distribuição disfarçada de lucros a venda de mercadorias pela ora recorrente, que é uma indústria, para 36 distribuidoras, empresas integrantes do mesmo grupo econômico.
Contudo, o conselheiro relator destacou que nenhuma das distribuidoras é sócia ou acionista da recorrente, ou seja, inexiste participação direta das distribuidoras no capital da recorrente e tampouco esta participa do capital daquelas.
Ademais, o conselheiro relator aponta que ainda que fábrica e distribuidoras pertençam ao mesmo grupo econômico, a hipótese de distribuição disfarçada de lucros exige que haja participação de uma no capital da outra, sendo que por mais que o artigo 466 do RIR/99 amplie o campo de incidência da presunção, tal regra se destina a sócio ou acionista controlador que, a toda evidência, não é a situação das distribuidoras, nem da recorrente.
No Acórdão 9101-006.334 (de 4/10/2022) [5], a 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais negou provimento ao recurso especial da contribuinte, por maioria de votos, mantendo o entendimento contido na autuação fiscal e nos Acórdãos da DRJ e da turma ordinária do Carf.
O conselheiro relator entendeu pela não ocorrência de operação entre pessoas ligadas, uma vez que os negócios jurídicos em condições de favorecimento não ocorriam entre pessoas ligadas, uma vez que inexistia relação direta entre as partes nos termos do artigo 465 do RIR/99.
Para tanto, o conselheiro relator mencionou que no conceito de pessoa ligada da legislação de distribuição disfarçada de lucros, a relação de “ligação” envolve tão somente a pessoa jurídica e “o sócio ou acionista desta”, ou seja, somente quando há uma relação societária direta entre a sociedade e o seu sócio.
Ao analisar o objetivo das normas de distribuição disfarçada de lucros e como elas visam efetivamente capturar operações entre a sociedade e seus sócios, o conselheiro relator citou a doutrina de Luís Eduardo Schoueri, para o qual:
“Não se tratando de transferência patrimonial entre a sociedade e os sócios, não é o próprio considerar-se ocorrida uma distribuição de lucros, já que estes são a remuneração pelo capital investido pelos sócios. A fundamentação para sua indedutibilidade deve, pois, ser buscada antes em seu eventual caráter excessivo (caracterizando a liberalidade) que na necessidade de se oferecer o lucro social à tributação.” [6]
Consequentemente, caso houvesse uma transferência entre uma pessoa jurídica e outra pessoa jurídica que não seja sua sócia, haveria outras formas de combater tal prática, mas não seria o caso de distribuição disfarçada de lucros.
Por outro lado, no voto vencedor, o conselheiro redator designado afirmou que por mais que as pessoas jurídicas que tenham realizado o negócio jurídico em condições de favorecimento não possuíssem ligações societárias diretas, ambas tinham o mesmo controlador.
Assim, o conselheiro redator designado assinalou que não existiria interesse mais imediato e direto do que o estabelecido entre controlador e controlada, sobretudo diante da demonstração feita pela autoridade fiscal da transferência direta do benefício da controlada para a controladora.
Por fim, no Acórdão 1201-006.855 (de 13/6/2024) [7], a turma decidiu de forma unânime por dar provimento ao recurso voluntário, afastando a qualificação jurídica de distribuição disfarçada de lucros em razão do negócio jurídico não ter sido realizado entre pessoas ligadas.
O referido caso abrange negócios jurídicos praticados entre a recorrente e pessoa jurídica que não possui ligação direta com ela, no entanto, faz parte do mesmo grupo econômico, sendo controlada também pela controladora da recorrente.
O conselheiro relator apontou que a alegada coincidência de sócios entre a recorrente e a pessoa jurídica com a qual realizou negócios jurídicos é apenas parcial e por meio de participação indireta, razão pela qual por mais que as empresas sejam consideradas ligadas, a ausência de coincidência integral do quadro societário mitiga qualquer força probante que se pudesse atribuir a uma presunção simples de que os negócios entre as partes não respeitariam “standards” de mercado.
Também há declaração de voto no referido Acórdão ressaltando que seria incabível o enquadramento como distribuição disfarçada de lucros entre sociedade e outras pessoas jurídicas que não possuem a qualidade de sócios.
A título de obiter dictum, consta na declaração de voto que não houve menção no termo de verificação fiscal e no auto de infração a uma eventual qualificação da situação pelo artigo 466 do RIR/99, mas que ainda se assim fosse, haveria a exigência inequívoca de que houve um interesse direto ou indireto de pessoa ligada.
Para tanto, há menção da doutrina de Luís Eduardo Schoueri acerca do alcance da expressão “interesse” no sentido de que: “o legislador não qualifica o interesse que, destarte, não precisa necessariamente ser de ordem societária (embora seja o mais usual). Outrossim, o interesse há de ser suficiente para que a pessoa ligada obtenha, direta ou indiretamente, as vantagens decorrentes do negócio entre a pessoa jurídica e aquela sociedade: se a pessoa ligada não obtivesse qualquer vantagem com o negócio, pereceria o aspecto subjetivo da distribuição disfarçada de lucros, já que não teria o negócio sido feito em razão da condição de sócio do beneficiário” [8].
Como decorrência, haveria a necessidade de uma prova inequívoca de que a pessoa ligada obteve uma vantagem.
Diante de todo o exposto, nota-se que a definição de pessoa ligada ainda é objeto de diferentes controvérsias no âmbito do Carf, sendo fundamental que seja feita a análise da estrutura societária e dos contratos em cada caso concreto.
*Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.
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[1] Decreto-lei n. 1.598/77 (já com as alterações do Decreto-lei n. 2.064/83): “Art 60 – Presume-se distribuição disfarçada de lucros no negócio pelo qual a pessoa jurídica:
I – aliena, por valor notoriamente inferior ao de mercado, bem do seu ativo a pessoa ligada;
II – adquire, por valor notoriamente superior ao de mercado, bem de pessoa ligada;
III – perde, em decorrência do não exercício de direito à aquisição de bem e em benefício de pessoa ligada, sinal, depósito em garantia ou importância paga para obter opção de aquisição;
IV – a parte das variações monetárias ativas (art. 18) que exceder as variações monetárias passivas (art. 18, parágrafo único);
V – empresta dinheiro a pessoa ligada se, na data do empréstimo, possui lucros acumulados ou reservas de lucros;
VI – paga a pessoa ligada aluguéis, royalties ou assistência técnica em montante que excede notoriamente do valor de mercado.
VII – realiza com pessoa ligada qualquer outro negócio em condições de favorecimento, assim entendidas condições mais vantajosas para a pessoa ligada do que as que prevaleçam no mercado ou em que a pessoa jurídica contrataria com terceiros. (…)
2º – A prova de que o negócio foi realizado no interesse da pessoa jurídica e em condições estritamente comutativas, ou em que a pessoa jurídica contrataria com terceiros, exclui a presunção de distribuição disfarçada de lucros”.
[2] Conselheiro Ricardo Marozzi Gregorio.
[3] Conselheiro Fernando Brasil de Oliveira Pinto.
[4] Conselheiro Roberto Silva Junior.
[5] Conselheiro relator Alexandre Evaristo Pinto e Conselheiro redator designado Luiz Tadeu Matosinho Machado.
[6] SCHOUERI, Luís Eduardo. Distribuição Disfarçada de Lucros. São Paulo: Dialética, 1996. p. 81.
[7] Conselheiro Lucas Issa Halah.
[8] SCHOUERI, Luís Eduardo. Distribuição Disfarçada de Lucros. São Paulo: Dialética, 1996. p. 79.
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