Opinião

Licitação, capacidade técnica e desconsideração da personalidade

Autor

  • Laércio José Loureiro dos Santos

    é mestre em Direito pela PUC-SP procurador municipal e autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª ed. Dialética 2023 — no prelo) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (coord.: Marcelo Figueiredo Ed. Juspodivm 2023).

    View all posts

22 de julho de 2024, 21h37

Pergunta comum nos setores de licitação é se o profissional (pessoa física) da engenharia/arquitetura pode utilizar seu acervo de capacidade técnica ou seus atestados de capacidade técnica para a demonstração de requisitos de habilitação para várias licitantes ao mesmo tempo.

Outra pergunta é se o engenheiro que abre uma empresa pode utilizar da sua experiência como comprovação na nova empresa de engenharia aberta posteriormente.

Qualificação técnica

A pergunta decorre da previsão do artigo 67 da Lei Federal 14.133/2021 que prevê:

“Art. 67. A documentação relativa à qualificação técnico-profissional e técnico-operacional será restrita a:

I – apresentação de profissional, devidamente registrado no conselho profissional competente, quando for o caso, detentor de atestado de responsabilidade técnica por execução de obra ou serviço de características semelhantes, para fins de contratação;

II – certidões ou atestados, regularmente emitidos pelo conselho profissional competente, quando for o caso, que demonstrem capacidade operacional na execução de serviços similares de complexidade tecnológica e operacional equivalente ou superior, bem como documentos comprobatórios emitidos na forma do § 3º do artigo 88 desta Lei;

(…)

§3º. Salvo na contratação de obras e serviços de engenharia, as exigências a que se referem os incisos I e II do caput deste artigo, a critério da Administração, poderão ser substituídas por outra prova de que o profissional ou a empresa possui conhecimento técnico e experiência prática na execução de serviço de características semelhantes, hipótese em que as provas alternativas aceitáveis deverão ser previstas em regulamento.”

As expressões grifadas “apresentação de profissional” e “profissional ou empresa possui conhecimento técnico e experiência” não tinham previsão expressa na sepultada Lei 8.666/1993.

Sentido das novas expressões

Qual seria o sentido destas expressões?

Numa primeira interpretação “apresentação de profissional” significa que o profissional de engenharia não necessita ser dos quadros permanentes da empresa. Basta que o profissional que atuará na obra/serviço tenha experiência comprovada na área.

A expressão “profissional ou empresa” significa uma verdadeira “desconsideração das personalidades” para fins licitatórios que devem respeitar a efetiva experiência na área e a maior competitividade possível.

Spacca

Não comungamos, data maxima venia, com a hermenêutica mais formalista de que o edital deveria, necessariamente, fixar se a capacidade/atestado seria de uma empresa ou de um profissional. As circunstâncias de mercado e a maior competitividade é que deverão orientar tais regras editalícias. O edital não pode criar regras que amesquinhem a competitividade.

As expressões devem ser conjugadas com o princípio da competitividade e, ainda, com a regra do artigo 160 da Lei de Licitações no sentido de que são irrelevantes se o atestado/capacidade pertence a pessoa física ou jurídica desde que haja respeito ao princípio da maior competitividade possível.

Limitação às exigências de qualificação

Nesse diapasão já se inclina a jurisprudência sob a égide da revogada Lei 8.666/1993 no sentido de que exigências de atestado/capacidade devem sempre ser limitadas.

Assim, por exemplo, é a súmula do egrégio TCE-SP:

“SÚMULA Nº 25- Em procedimento licitatório, a comprovação de vínculo profissional pode se dar mediante contrato social, registro na carteira profissional, ficha de empregado ou contrato de trabalho, sendo possível a contratação de profissional autônomo que preencha os requisitos e se responsabilize tecnicamente pela execução dos serviços.”

No mesmo sentido é a jurisprudência do colendo STF, que continua aplicável à nova lei, sobre o entendimento de que qualificações técnicas “podem ser estipuladas, desde que indispensáveis à garantia de cumprimento das obrigações” (ministro Gilmar Mendes, j. 5/4/2011, DJE de 15/4/2011)

Desconsideração administrativa da personalidade

Acrescentaríamos a esse “mix hermenêutico” a regra de penalização da Lei 14.133/2.021. Assim:

“Art. 160. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, e, nesse caso, todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica serão estendidos aos seus administradores e sócios com poderes de administração, a pessoa jurídica sucessora ou a empresa do mesmo ramo com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o sancionado, observados, em todos os casos, o contraditório, a ampla defesa e a obrigatoriedade de análise jurídica prévia.” (grifo do articulista).

Note-se que a regra, inobstante incluída no capítulo “das infrações e sanções administrativas” do códex licitatório pode ser, perfeitamente, aplicada no âmbito preventivo da licitação. Ou seja, a desconsideração da personalidade deve ser aplicada para fins de atestado/capacidade técnica vinculado à maior efetividade da competição entre os licitantes e maior qualificação do vencedor. Ou seja, a teleologia das sanções (desestimular maus licitantes) acaba sendo observada, ainda que preventivamente e não na forma repressiva usual, com a mencionada desconsideração.

Pensando através de problemas

Pensar através de exemplos facilita a compreensão: a) Numa licitação com poucas empresas de engenharia o mesmo profissional pode fornecer os mencionados documentos para várias empresas de engenharia? Não se ferir o princípio da competitividade e favorecer a formação de monopólios/oligopólios de fato.

Reprodução

Ou seja seria vedado se favorecesse a criação de “empresas de papel”, notadamente em obras/serviços de engenharia onde a capacidade técnica tenha grande relevância. Pensaríamos nas hipóteses de licitações “técnica” ou “técnica e preço” para obras/serviços de engenharia como as hipóteses mais prováveis. Ademais, nos exemplos imaginados, a capacidade técnica nem é uma forma de habilitação, mas critério de julgamento. Ou seja, a informação sobre a capacidade técnica será apresentada na fase de julgamento, tendo ciência o pregoeiro antes da fase de habilitação.

b) E, na mesma hipótese “a” ocorra licitação de obra/serviço de engenharia onde a capacidade técnica for de relevância pequena, tendo maior relevância aspectos como a capacidade operacional, capital social, etc.? Sim, poderia haver comunhão de profissionais de engenharia já que não há amesquinhamento da competividade.

Outro problema da vida real: c) um profissional da engenharia que atuou como funcionário de uma empresa de engenharia pode utilizar este tempo na nova empresa que abrir posteriormente? Sim, pois, substancialmente está demonstrada a capacidade técnica e respeitado o princípio da maior competitividade.

A capacidade técnica tem relação com outra interpretação feita pelo autor em relação às cláusulas uniformes, e a criação de “monopólios artificiais” publicado nesta prestigiada ConJur [1].

Assim como numa licitação para contratos com cláusulas uniformes deve haver esforço hermenêutico para potencializar a competitividade e evitar-se a criação de “monopólios artificiais”, também quanto à capacidade técnica o mesmo cuidado deve ser observado.

A aceitação de um mesmo engenheiro em vários licitantes criaria um “monopólio artificial” caso a capacidade técnica tenha acentuada relevância. De maneira diversa, porém, a vedação de uso da experiência de um engenheiro como empregado em sua própria empresa também retiraria, indevidamente, um competidor do certame licitatório.

O sistema licitatório não admite a criação de “monopólios artificiais” e toda a hermenêutica do poder público deve ser orientada, sempre, pela maior competitividade possível.

Do ponto de vista prático, se a capacidade técnica for critério de julgamento não pode haver “compartilhamento” de profissionais. Se a capacidade técnica for apenas um item da fase de habilitação poderá haver “compartilhamento” que, diga-se, provavelmente, sequer chegará ao conhecimento do pregoeiro ou demais operadores da licitação, já que apenas o vencedor apresentará tal documentação.

Conclusão

Em síntese, a capacidade técnica, necessariamente, deve ser interpretada de forma a respeitar e fomentar a competitividade, inclusive com a desconsideração da personalidade jurídica no âmbito administrativo já que referido instituto tem a finalidade de prevenir ilícitos tais como a concentração ilícita de mercado e exigências que não se refiram à expertise do mundo real. Nesse sentido é possível a desconsideração da personalidade jurídica com finalidade preventiva de favorecer a competitividade e, portanto, cumprir sua teleologia de favorecer os melhores licitantes.

 


[1] https://www.conjur.com.br/2024-jul-02/licitacao-clausulas-uniformes-e-os-monopolios-artificiais/

Autores

  • é mestre em Direito pela PUC-SP, procurador municipal, autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (Ed. Dialética) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia, (coordenador: Marcelo Figueiredo, Ed. Juspodivm).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!