Público & Pragmático

Dever de devida diligência em sustentabilidade corporativa: avanços do ESG na UE

Autor

  • Daniel Ribeiro Barcelos

    é auditor federal de Finanças e Controle da Controladoria-Geral da União (CGU) graduado em Administração Pública pela Escola de Governo de Minas Gerais e em Direito pela UFMG e doutorando e mestre em Direito de Estado pela Universidade de São Paulo.

    View all posts

21 de julho de 2024, 8h00

A União Europeia aprovou no corrente ano uma nova diretiva sobre o due diligence em sustentabilidade corporativa.

O due diligence já se constituía numa prática realizada no âmbito dos programas de integridade (compliance) que vem agora abarcar mais uma seara relativa à sustentabilidade no âmbito empresarial.

Na realidade, o due diligence, nessa perspectiva, representa a incorporação dos valores Environmental, Social and Governance (ESG) no universo corporativo europeu, como de certa forma preceituavam os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável [1] para 2030 (ODS 2030), fonte inspiradora para legiferação da matéria, como indica a exposição de motivos da diretiva aqui apresentada.

O ESG é um conjunto de padrões e boas práticas que visa definir se uma empresa é socialmente consciente, sustentável e corretamente gerenciada. Trata-se de uma forma de medir o desempenho de sustentabilidade de uma organização, ampliando a perspectiva de análise do negócio para além das métricas financeiras.

A política ESG na União Europeia já estava corroborada na Diretiva (UE) 2022/2464, de 14 de dezembro de 2022, em que as empresas são obrigadas a fornecer informações em matéria de sustentabilidade, por meio do relato de sustentabilidade (artigo 19-A) como parte integrante de seus relatórios de gestão, para comercializar seus produtos e serviços no espaço europeu, apontando:

“a) Uma breve descrição do modelo empresarial e da estratégia da empresa, incluindo:

i) a resiliência do modelo empresarial e da estratégia da empresa aos riscos relacionados com questões de sustentabilidade,

ii) as oportunidades para a empresa relacionadas com questões de sustentabilidade,

iii) os planos da empresa, incluindo as ações de execução e os planos financeiros e de investimento conexos, para assegurar que o seu modelo empresarial e a sua estratégia são compatíveis com a transição para uma economia sustentável e com a limitação do aquecimento global a 1,5 ºC, em consonância com o Acordo de Paris (…)

iv) a forma como o modelo empresarial e a estratégia da empresa têm em conta os interesses das partes interessadas da empresa e o impacto da empresa nas questões de sustentabilidade,

v) a forma como a estratégia da empresa foi aplicada no respeitante às questões de sustentabilidade;

b) Uma descrição dos objetivos calendarizados estabelecidos pela empresa em relação a questões de sustentabilidade, incluindo, se for caso disso, objetivos absolutos de redução das emissões de gases com efeito de estufa, pelo menos para 2030 e 2050, uma descrição dos progressos realizados pela empresa na consecução desses objetivos e uma declaração que indique se os objetivos da empresa relacionados com fatores ambientais se baseiam em provas científicas concludentes;

c) Uma descrição do papel dos órgãos de administração, de direção e de supervisão no respeitante às questões de sustentabilidade, bem como dos seus conhecimentos especializados e competências para desempenhar esse papel ou do acesso de que esses órgãos dispõem a tais conhecimentos e competências;

d) Uma descrição das políticas da empresa relativamente às questões de sustentabilidade;

e) Informações sobre eventuais esquemas de incentivos associados a questões de sustentabilidade destinados aos membros dos órgãos de administração, de direção e de supervisão;

f) Uma descrição dos seguintes elementos:

i) o processo relativo ao dever de diligência aplicado pela empresa no respeitante a questões de sustentabilidade e, se aplicável, em consonância com os requisitos impostos pela União às empresas no sentido de realizarem um processo relativo ao dever de diligência, (…)”

Um passo a mais

Com base na etapa legislativa anterior, foi dado um passo a mais para assegurar medidas mais efetivas na política ESG, corporificando o dever de diligência na Diretiva de Devida Diligência em Sustentabilidade Empresarial (CS3D) de 2024, que descreveu melhor as obrigações contidas na alínea “f” item  “i” do nº 2 do artigo 19 -A da Diretiva de 2022.

Historicamente, em 23 de fevereiro de 2022, a Comissão Europeia adotou uma proposta de diretiva sobre a devida diligência em matéria de sustentabilidade empresarial. Em dezembro de 2023, foi acordada provisoriamente em nível político e confirmada pelo Comitê de Representantes Permanentes dos Governos dos Estados-Membros da União Europeia (Coreper) numa versão revista em março de 2024. O texto final da CS3D foi formalmente adotado pelo Parlamento Europeu e o Conselho de Ministros em 24 de maio de 2024, aprovando o acordo político antes feito. A norma foi nomeada Diretiva (EU) 2024/1760, de 13 Junho de 2024 [2].

Em comparação com o acordo alcançado em dezembro, o compromisso revisto de março de 2024 é mais modesto, pois será aplicável a menos empresas, havendo adicionalmente uma vacatio legis mais ampla que o esperado anteriormente. Apesar disso, continua a ser uma nova lei muito ambiciosa que deverá ter um impacto crítico em muitas empresas multinacionais ativas na União Europeia, incluindo as brasileiras que estejam presentes na Europa ou que façam parte da cadeia produtiva de empresas lá sediadas.

Responsabilidades na transição

Na fala de Pierre-Yves Dermagne, vice primeiro-ministro e ministro da Economia e do Trabalho da Bélgica: “As grandes empresas têm de assumir as suas responsabilidades na transição para uma economia mais ecológica e para mais justiça social. A diretiva relativa ao dever de diligência das empresas em matéria de sustentabilidade dar-nos-á a possibilidade de sancionar os intervenientes que violem as suas obrigações” [3].

A Europa acabou por avançar nesse tema devido ao fato, de acordo com dados da PwC [4], de que até 2025, cerca 57% dos ativos de fundos mútuos na Europa serão ESG. Em valores, significa algo na casa dos 7,6 trilhões de euros. Portanto, as diretivas vêm corroborar uma política empresarial já reproduzida e em expansão no Velho Mundo.

As obrigações relativas à devida diligência (due diligence) estabelecidas no CS3D seguem as seis etapas definidas pelas Diretrizes de Devida Diligência da OCDE para Conduta Empresarial Responsável [5]:

a) integrar a devida diligência (due diligence) em políticas e sistemas de gestão;

b) identificar e abordar os impactos adversos sobre os direitos humanos e o ambiente;

c) prevenir, cessar ou minimizar impactos adversos reais e potenciais sobre os direitos humanos;

d) monitorizar e avaliar a eficácia das medidas;

e) realizar efetiva comunicação; e

f) promover a remediação.

Alma da diretiva

Para efetivação dos primados previstos no guia da OCDE, como indicado acima, foi editado o artigo 15, alma da diretiva de 2024, resumindo-se, para efeitos didáticos, em sequência, as remissões a artigos da própria diretiva dispostos nesse nuclear dispositivo.

O parágrafo 1 do artigo 15 determina que os Estados-membros devem assegurar que as empresas realizem a devida diligência em matéria de direitos humanos e ambientais com base em riscos, tal como estabelecido nos artigos 7º a 16º (artigos que dizem respeito à devida diligência), realizando oito ações específicas.

A primeira delas é integrar a devida diligência nas suas políticas e sistemas de gestão de riscos, em conformidade com o artigo 7º (empresas devem integrar a devida diligência em todas as suas políticas e sistemas de gestão de risco relevantes e tenham em vigor uma política de devida diligência que garanta a devida diligência baseada no risco).

Um segundo passo é identificar e avaliar os impactos adversos reais ou potenciais, em conformidade com o artigo 8º (garantir que as empresas tomem medidas adequadas para identificar e avaliar os impactos adversos reais e potenciais decorrentes das suas próprias operações ou das suas subsidiárias e, quando relacionado com as suas cadeias de atividades, das dos seus parceiros comerciais) e, sempre que necessário, dar prioridade aos impactos adversos reais e potenciais, em conformidade com o artigo 9º (garantir que, quando não for viável prevenir, mitigar, pôr fim ou minimizar todos os impactos adversos mesmo tempo e em toda a sua extensão, as empresas priorizem os impactos adversos com base na sua gravidade e probabilidade identificados).

Uma terceira medida é prevenir e atenuar potenciais impactos adversos, pôr fim aos impactos adversos reais e minimizar a sua extensão, em conformidade com os artigos 10º e 11º (medidas adequadas para prevenir ou, caso a prevenção não seja possível ou não seja possível de imediato, atenuar adequadamente os efeitos negativos potenciais que tenham sido, ou devessem ter sido, identificados e fazer cessar os que impactos negativos reais).

Em quarto, proporcionar remediação para impactos adversos reais, em conformidade com o artigo 12º (reparação de efeitos negativos reais).

Uma quinta ação é realizar o envolvimento significativo com as partes interessadas, em conformidade com o artigo 13º (ao consultarem as partes interessadas, as empresas, se for caso disso, facultam-lhes informações pertinentes e exaustivas, a fim de realizarem consultas eficazes e transparentes).

Em sexto, estabelecer e manter um mecanismo de notificação e um procedimento de reclamação em conformidade com o artigo 14º (empresas permitam que as pessoas e entidades lhes apresentem reclamações sempre que essas pessoas e entidades tenham preocupações legítimas quanto aos efeitos negativos reais ou potenciais no que diz respeito às operações das próprias empresas, às operações das suas filiais ou às operações dos seus parceiros comerciais nas cadeias de atividades das empresas).

Um sétimo componente é monitorar a eficácia da política e medidas de devida diligência, em conformidade com o artigo 15º (empresas devem realizar avaliações periódicas das suas próprias operações e medidas, das suas filiais e, quando relacionadas com a cadeia de atividades da empresa, das dos seus parceiros comerciais, a fim de avaliar a aplicação e monitorizar a adequação e a eficácia da identificação, prevenção, atenuação, cessação e minimização da extensão dos efeitos negativos).

Por fim, como oitava medida, deve-se comunicar publicamente sobre a devida diligência, em conformidade com o artigo 16.º (empresas comuniquem informações sobre as questões abrangidas pela presente diretiva mediante publicação no seu sítio Web de uma declaração anual).

Destaque

Dos mecanismos de devida diligência acima elencados, destaca-se a previsão de participação corporativa pública (ações 5ª e 6ª), com possibilidade de consultas ao mundo corporativo que deverão fornecer respostas contendo informações pertinentes e exaustivas, estabelecendo-se, assim, transparência e eficácia nesses mecanismos. Além disso, na esteira do envolvimento das partes interessadas, estabelece-se o direito de apresentar reclamações traduzidas em preocupações legítimas quanto aos efeitos negativos reais ou potenciais das atividades empresariais.

Tais ferramentas representam um grande avanço na horizontalização dos direitos fundamentais/humanos nas relações privadas, conferindo um caráter público na gestão empresarial, envolvendo fórmulas consagradas de transparência/publicidade, petição e controle erigidas ao largo da evolução civilizatória qualificadas pelo interesse público na montagem de parâmetros de governança entre pessoas/comunidades e estruturas governantes, algo que deve tomar corpo e voz no futuro da política de integridade privada.

Para concluir, cada um dos 27 países-membros da UE terá que instituir uma legislação em âmbito nacional que atenda às mínimas exigências estabelecidas pela diretiva. Os países terão dois anos para confeccionarem as leis e torná-las vigentes.

A  diretiva de 2024 será também aplicada em função do vulto das empresas, obedecendo o seguinte cronograma temporal: a) Três anos após a entrada em vigor da diretiva para as empresas com mais de 5.000 trabalhadores e volume de negócios superior a 1.500 milhões de euros; b) Quatro anos após a entrada em vigor da diretiva para as empresas com mais de 3 000 trabalhadores e volume de negócios superior a 900 milhões de euros; e c) Cinco anos após a entrada em vigor da diretiva para as empresas com mais de 1.000 trabalhadores e volume de negócios superior a 450 milhões de euros.

Esses são os novos parâmetros da política de ESG e sua devida diligência (due diligence) que trará grande impacto no mundo empresarial e na sua forma de governança alinhada às cadeias produtivas, ao meio ambiente em torno dessa cadeia, além dos agentes envolvidos/impactados pela atividade empresarial numa perspectiva de respeito aos direitos humanos a fim de promover maior sustentabilidade.

 


[1] Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs. Acesso jul. 24.

[2] Directive (EU) 2024/1760 of the European Parliament and of the Council of 13 June 2024 on corporate sustainability due diligence and amending Directive (EU) 2019/1937 and Regulation (EU) 2023/2859Text with EEA relevance. European Union. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A32024L1760&qid=1721074032406. Acesso jul. 24.

[3] Corporate sustainability due diligence: Council gives its final approval. 24 mai. 2024. Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/pt/press/press-releases/2024/05/24/corporate-sustainability-due-diligence-council-gives-its-final-approval/. Acesso jul. 24.

[4] Quase 60% de ativos de fundos mútuos serão ESG até 2025, diz PwC. Exame. 19 out. 2024. Disponível em: https://exame.com/esg/quase-60-de-ativos-de-fundos-mutuos-serao-esg-ate-2025-diz-pwc/. Acesso mai. 24.

[5] GUIA DA OCDE DE DEVIDA DILIGÊNCIA PARA UMA CONDUTA EMPRESARIAL RESPONSÁVEL. 3 abr. 2018. Disponível em: https://mneguidelines.oecd.org/guia-da-ocde-de-devida-diligencia-para-uma-conduta-empresarial-responsavel-2.pdf. Acesso jun.24.

 

Autores

  • é auditor federal de Finanças e Controle da Controladoria Geral da União (CGU) desde 2006, graduado em Administração Pública pela Escola de Governo de Minas Gerais e Direito pela UFMG, doutorando e mestre em Direito de Estado pela Universidade de São Paulo, palestrante no 21º Congreso Internacional do Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo (Clad) em 2016 (Chile), na International Anti-Corruption Conference (Iacc) de 2020 (Coréia do Sul) e no Seminário da Rede Nacional de Ouvidorias, em novembro de 2023 (em São Paulo).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!