Opinião

Chevron no centro da disputa entre administração pública e Judiciário

Autor

  • é juiz federal na 5ª Vara de Caxias do Sul (RS) presidente da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (Ajufergs) professor de Direito Ambiental e Administrativo doutorando e mestre em Direito pela PUCRS e autor das obras "Direito Administrativo e Sustentabilidade: O Novo Controle Judicial da Administração Pública" e "Manual de Direito Ambiental" ambos pela editora Forum.

    Ver todos os posts

21 de julho de 2024, 15h27

Causou inquietação a recente superação da doutrina Chevron pela Suprema Corte norte-americana, apesar dessa virada jurisprudencial já estar sendo gestada naquele tribunal há alguns anos. O caso Chevron (Chevron USA Inc v.  Natural Resources Defense Council), de 1984, bem como a recente decisão que o suplantou, Loper Bright Enterprises Et Al. V. Raimondo, de 2024, representam capítulos paradigmáticos de uma antiga e secular disputa por alocação de responsabilidades decisórias, que nasceu e se desenvolveu com a evolução da separação dos poderes.

Suprema Corte dos EUA

Um longo debate entre Poder Executivo e Judiciário acerca de quem ostenta competência para decidir sobre os sentidos e o alcance da legislação e dos fatos que permeiam os conflitos com a administração pública. Essa disputa não deve causar surpresa em ordenamentos democráticos, porque contemplam em seu cerne a separação dos poderes, a independência do Judiciário e a sindicabilidade jurisdicional dos atos administrativos, como é o caso dos Estados Unidos e do Brasil.

No sistema norte-americano, a revisão judicial dos atos administrativos é fruto de longa evolução, que remonta à decisão emblemática proferida pela Suprema Corte em Marbury v. Madison, em 1803, conhecida pela frase memorável do então Chief Justice John Marshal: “é enfaticamente a competência e o dever de o Poder Judiciário dizer o que é o direito”. [1] A partir de então, ao mesmo tempo em que as cortes expandiram seus poderes, também foram questionadas sobre os limites da sua intervenção. Nos ordenamentos de common law, a postura de autocontenção do Judiciário frente às decisões das agências reguladoras desenvolveu-se por meio da chamada teoria da “deferência judicial” (judicial deference) [2], assim considerado o grau de reserva, respeito e imutabilidade que um juiz ou tribunal confere à decisão administrativa. [3]

O conflito entre controle e deferência ganhou novo impulso com o New Deal na década de 1940, época de criação de novas agências, expansão da intervenção estatal na economia e cristalização do que se denominou “Estado Administrativo” (Administrative State) e “Estado Regulador” (Regulatory State). [4] O compromisso entre, de um lado, a ampliação da discricionariedade administrativa e das medidas interventivas do New Deal, e, de outro, as críticas às novas agências, levou à promulgação da Administrative Procedure Act (APA), em 1946, que sistematizou o momento, a forma e o alcance da revisão judicial. [5]

O controle judicial da atividade administrativa seguiu, primeiramente, um critério multifatorial e ad hoc, de acordo com as peculiaridades do caso, e as decisões eram normalmente contraditórias e de difícil racionalização. [6] Na década de 1960, como uma reação à captura regulatória e à pressão para ampliar a intervenção jurisdicional nas normas elaboradas pelas agências (rulemaking), as cortes se engajaram em um controle mais amplo e profundo, de forma a demandar melhor fundamentação do administrador, doutrina cunhada de Hard Look Review. [7]

O alcance da revisão judicial, porém, foi amplamente limitado em 1984, no emblemático caso Chevron USA, Inc. v Natural Resources Defense Council, em que a Suprema Corte formulou um controle mais deferencial às conclusões das agências. Neste julgamento, a Corte estabeleceu uma deferência judicial em dois passos (Two-Step Chevron Test): primeiro, se a intenção do Congresso for precisa e clara, tanto a corte como a agência devem efetivar a determinação do legislador e a questão está encerrada; segundo, se o Congresso foi ambíguo ou não tratou da matéria diretamente, o Judiciário não pode impor sua interpretação, mas tem de analisar se a decisão da agência se baseia em uma construção permitida pela lei. Se a solução administrativa encontra amparo na legislação, é assegurada primazia ao regulador. [8]

Responsabilidade maior às agências reguladoras

O julgamento no caso Chevron foi resultado da transferência cada vez maior às agências reguladoras, no século 20, de funções antes protagonizadas pelo Judiciário. [9] Originou-se do desejo de liberar as recém-criadas agências especializadas da fiscalização por “cortes generalistas”. [10]

Spacca

O Chevron test, em seus 40 anos de vida, delineou os contornos interpretativos basilares dentro dos quais o Congresso, as agências e as cortes, bem como os agentes regulados e a sociedade, operaram por décadas. Foi posteriormente revisitada e relativizada, com a criação de exceções em sua aplicação para procedimentos informais (United States v. Mead Corporation, 2001) ou com a primazia da própria interpretação da lei pela Suprema Corte (King v. Burwell, 2015). [11]

Concretizando uma tendência que já se antecipava, a Suprema Corte, em 2024, proferiu decisão no caso Loper Bright Enterprises Et Al. V. Raimondo, na qual promoveu a superação (overruling) da doutrina Chevron. Por meio de uma interpretação da Administrative Procedure Act, a maioria dos Justices afirmou que a APA exige das cortes que exerçam seu julgamento independente ao decidir se uma agência administrativa atuou nos limites de sua autoridade legal, e que as cortes não devem prestar deferência à interpretação da lei pelas agências pela simples ambiguidade do texto.

Os votos divergentes referiram, basicamente, que a superação de Chevron afasta uma doutrina de “humildade jurisdicional”, ao concentrar nos juízes poderes que não lhes foram conferidos. Como destacou a Justice Elena Kagan, autora do voto divergente, a maioria da Corte se converteu no “czar administrativo do país” (country’s administrative czar). O julgamento proferido, disse Kagan, poderá causar um grande choque para o sistema jurídico, provocar insegurança regulatória e transferir a juízes sem experstise a responsabilidade por assuntos técnicos, complexos e políticos, que seriam melhor sopesados pelas agências. [12]

Os julgamentos proferidos pela Corte estadunidense, claro, não vinculam os juízes e reguladores brasileiros, gerando, quando muito, uma eficácia persuasiva, decorrente do chamado “diálogo entre cortes”. Contudo, as ideologias que motivaram tais decisões, sim, podem ser bastante semelhantes e influenciar uma atuação judicial mais ou menos deferencial.

Realidade no Brasil

Analisando sob uma perspectiva histórica, o contexto brasileiro é diferente, embora, na atualidade, o cerne do debate seja o mesmo.

Apesar de, desde a Constituição de 1891, adotarmos o sistema da unicidade da jurisdição, o controle judicial dos atos do poder público sofria limites mais estreitos, como a insindicabilidade das questões políticas [13], a imunidade jurisdicional do “mérito” do ato administrativo, permitindo-se o controle apenas quanto a aspectos de legalidade estrita [14], bem como restrições à responsabilidade civil do Estado.

Entretanto, no decurso do século 20 ocorreu inegável alargamento da fiscalização judicial do comportamento administrativo. O dogma da discricionariedade absoluta foi mitigado pela submissão de certos elementos do ato administrativo ao controle e pela consagração da teoria do desvio de poder ou de finalidade (détournement du puvoir). O alcance do controle judicial da administração pública também restou estendido pelo desenvolvimento da teoria dos “motivos determinantes”, e os conceitos jurídicos indeterminados passaram a se submeter a supervisão jurisdicional. No direito administrativo, a “deferência judicial” foi praticada mediante o reconhecimento de uma “presunção de legitimidade”, “veracidade” ou “validade” do ato administrativo.

A doutrina da judicial deference, e com ela a doutrina Chevron, apenas tardiamente surgiu no sistema jurídico pátrio, por meio de uma importação, permito-me dizer, genérica ou irrefletida do instituto. A expressão “deferência judicial” tem sido utilizada pelos tribunais superiores para justificar uma postura de self-restraint judicial frente a decisões administrativas, sobretudo das agências reguladoras [15] e do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) [16], dotadas de sensibilidade política e complexidade técnica, sendo, eventualmente, citado também o próprio caso Chevron como fundamento para deferir à Anvisa a decisão de proibição da importação e da comercialização de produtos fumígenos derivados do tabaco contendo aditivos. [17]

Em nosso sistema jurídico, porém, a aplicação irrefletida da deferência Chevron, tal como idealizada pela Suprema Corte norte-americana, é inadequada. [18] Isso porque eventual ambiguidade do texto legal não obsta o questionamento jurisdicional da interpretação conferida pelo ente administrativo. O que se tem inferido das decisões dos tribunais superiores é a autorização para que as agências empreendam a um detalhamento e concretização dos comandos legais, atuação sempre submetida à supervisão jurisdicional. Demais disso, a deferência costuma ser mais ampla para conclusões fáticas e técnicas, malgrado sejam usualmente confrontadas com outros elementos trazidos ao processo judicial, inclusive com provas periciais.

Retomando o que foi afirmado acima, conquanto se trate de ordenamento jurídico estrangeiro, as ideologias que motivaram as decisões da Suprema Corte estadunidense envolvendo a Chevron doctrine se aproximam do debate brasileiro acerca das possibilidades e limites do controle judicial. Nos Estados Unidos, a maioria da Suprema Corte considerou que o caso Chevron concedeu poderes excessivos a “burocratas federais não eleitos” na elaboração de regulamentações que afetam as principais áreas da vida americana, como o local de trabalho, o meio ambiente e a saúde. Já para o governo atual e defensores da Chevron doctrine, a decisão de 2024 prejudicará a função das agências de proteção do meio ambiente, da higidez do mercado financeiro, da segurança alimentar e dos medicamentos e de defesa dos consumidores e trabalhadores. [19]

Esse debate é bem presente na realidade brasileira, com propostas de ampliação e redução nos poderes dos juízes e das agências, acirrado por críticas a excessos judiciais ou omissões regulatórias. Contudo, o grau de deferência ou controle não pode ser aquilatado exclusivamente para conceder mais ou menos poderes às agências ou às cortes, tampouco para defender determinados interesses. A deferência judicial que se espera em nosso sistema constitucional é aquela multifacetada, contextual e dialógica, condicionada ao fim último de proteção aos direitos fundamentais, mas sem olvidar que os juízes não podem decidir sempre sozinhos, não conseguem se especializar em todas as áreas do conhecimento e precisam levar em conta a perspectiva de outras instituições.

 


[1] “It is emphatically the province and duty of the Judicial Department to say what the law is”.

[2] STEIN, Lord. Deference: A Tangled Story. Public Law, 346, p. 346-59, 2005.

[3] SILVA, Fernando Quadros da. Controle Judicial da Agências Reguladoras: Aspectos doutrinários e jurisprudenciais. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2014. p. 192.

[4] BREYER, Stephen at al. Administrative Law and Regulatory Policy: problems, text, and cases. 7. ed. New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2011. p. 17-21.

[5] BREYER et al., p. 22-23.

[6] BAMZAI, Aditya. The Origins of Judicial Deference to Executive Interpretation. Independent. Aug. 22, 2015.

[7] BREYER et al., p. 386.

[8] O caso Chevron U.S.A., Inc. v. Natural Resources Defense Council (1984) foi paradigmático na definição do judicial deference norte-americano, sendo considerado o julgamento mais citado e influente do direito público daquele país (BREYER et al., p. 282-8).

[9] SUNSTEIN, Cass R. Chevron Step Zero. Virginia Law Review, v. 92, n. 2, p. 187, 205, apr. 2006.

[10] BAMZAI, op. cit.

[11] BAMZAI, op cit..

[12] UNITED STATES. Supreme Court. Loper Bright Enterprises et al. v. Raimondo, Secretary of Commerce, et al, 2024. Disponível em: https://www.supremecourt.gov/opinions/23pdf/22-451_7m58.pdf. Acesso em: 17 jul. 2024.

[13] Consoante as Constituições de 1934 e 1937. No regime da Constituição anterior, de 1891, e das posteriores, de 1946 e 1967, embora omissas a respeito, também se entendiam insindicáveis os atos exclusivamente políticos (FAGUNDES, Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. At. Gustavo Binembojm. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 195). No entanto, o STF já havia permitido abertura ao controle quando estivesse em jogo os “pressupostos constitucionais ou legais” do ato (STF, 1ª T., RMS 2779, Rel.  Min. Afrânio Costa convocado, rel. p/ Ac.  Min. Luiz Gallotti, j. 31/08/1955).

[14] SEABRA FAGUNDES, op. cit., p. 179-82; RIVERO, Jean. Direito Administrativo. Coimbra: Almedina, 1981. p. 96.

[15] Para casos mais recentes, v.g.: STF, RE 1059819/PE, Rel. Min. Marco Aurélio, red. Ac. Min. Alexandre de Moraes, j. 18/2/22; STJ, 2ª T., REsp 1.287.461-SP, Rel. Min. Og Fernandes, j. 21/06/22; 3ª T., REsp 1.874.643-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. p/ ac. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 03/05/22

[16] STF, RE 1083955/DF, rel. Min. Luiz Fux, j. 28/5/19.

[17] STF, Pleno, ADI 4874, Rel. Rosa Weber, j. 01/02/18

[18] Foi o que defendemos em: MOREIRA, Rafael Martins Costa. Direito Administrativo e Sustentabilidade: o novo controle judicial da Administração Pública. Belo Horizonte: Forum, 2017. p. 102-123.

[19] CBS NEWS. Supreme Court overturns Chevron decision, curtailing federal agencies’ power in major shift, jun. 28, 2024. Disponível em: https://www.cbsnews.com/amp/news/supreme-court-chevron-deference-power-of-federal-agencies/. Acesso em: 18 jul. 2024.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!