Opinião

Bem de capital essencial à empresa no âmbito da recuperação judicial

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  • é membro do escritório Ernesto Borges Advogados do Núcleo de Recuperação Judicial e Falência coautor nos livros Recuperação Judicial e Falência: atualizações da Lei n° 14.112/202 à Lei n° 11.101/2005 (Quartier Latin 2021) e Comentários à Lei de Recuperação de Empresa e Falência: Lei 11.101/2005 e dispositivos da Lei 14.112/2020 (Quartier Latin 2023) e especialista em recuperação de empresas e falência pela PUC-SP.

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20 de julho de 2024, 9h18

Para aqueles que estão imersos na área de insolvência, ou para aqueles que apenas estão interessados na matéria, consta no artigo 49, da Lei n° 11.101/2005, os créditos e obrigações que poderão ser renegociados pelo devedor, no plano de recuperação judicial [1].

Assim dispõe o artigo supracitado: estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.

Todavia, por questões legislativas e interesses difusos, alguns créditos e credores, mesmo que “existentes na data do pedido de recuperação judicial”, por força normativa, não se sujeitarão aos efeitos da recuperação judicial, como é o caso do credor titular de posição fiduciária de bens móveis ou imóveis (§3°, artigo 49).

Vale relembrar que a garantia por alienação fiduciária é o negócio jurídico pelo qual a res garantida é de propriedade resolúvel do devedor, até cumprimento integral da obrigação perante o credor, todavia, o proprietário do direito do bem garantido sempre será o credor, que prevalecerá com seus direitos de consolidação da propriedade, em caso de descumprimento da obrigação originalmente pactuada.

Encontra-se disponível para acesso online, as facetas e disposições acerca da alienação fiduciária em um artigo publicado pela PUC de São Paulo.

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Pois bem, apesar de o universo jurídico adotar como resposta inerente a quaisquer questionamentos o famoso “depende”, não restam dúvidas na esfera legal, doutrinária e jurisprudencial, acerca da presente afirmação: crédito garantido por alienação fiduciária não está sujeito a renegociação pela recuperação judicial [2].  

Vai que cola

Após a digressão enxuta sobre alienação fiduciária e a não sujeição do negócio jurídico aos efeitos da recuperação judicial, a teoria do “vai que cola”, daqueles que não prezam pela boa técnica processual, tem tentado mitigar e emplacar uma tese definida como: “deverá ocorrer sujeição do crédito garantido por alienação fiduciária, quando o bem garantido fiduciariamente for considerado essencial ao soerguimento da atividade a ser recuperada pela recuperação judicial”.

Embora o credor fiduciário não esteja sujeito aos efeitos da recuperação judicial, em virtude da disposição do artigo 6°, §6° e §7°, da Lei n° 11.101/2005, caso o bem garantido seja considerado bem de capital essencial à manutenção da atividade empresarial, o credor fiduciário está impedido, por um lapso temporal, de expropriar a propriedade, mesmo que o devedor esteja inadimplente.

Tal impedimento é conhecido como stay period, que define como 180 dias, contados do deferimento do processamento da recuperação judicial, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, o intervalo do ônus atribuído ao credor fiduciário sem poder adotar — frise-se — medidas de expropriação da propriedade do objeto da garantia por alienação fiduciária.

Alterando o discurso analítico discorrido para uma compreensão acessível por meio de um estudo de caso hipotético, esse é (ou deveria ser) o cenário envolvendo o tratamento do credor fiduciário na recuperação judicial:

  1. Determinado devedor (X) pede sua recuperação judicial e, após preenchidos os requisitos legais, obtém a decisão de deferimento do processamento da recuperação judicial pelo juízo competente.
  2. O devedor (X) possui, dentre suas incontáveis obrigações, negócios jurídicos firmados com previsão de garantia por alienação fiduciária.
  3. Caso o devedor (X) esteja inadimplente com o credor fiduciário (Y) e o bem objeto da garantia, após decisão do juízo da recuperação judicial, for considerado como bem de capital e essencial ao soerguimento da atividade empresária, apesar de não poder renegociar o valor da dívida e condições do contrato originário pelo plano de recuperação judicial, o devedor (X) poderá ter consolidada a propriedade, contudo e nesse momento, não poderá ser expropriado o bem, mantendo-se na “posse” do devedor o objeto da garantia da alienação, por período não superior a 360 dias – stay period.
  4. Após se findar o prazo de 360 dias do stay period, em regra, o credor fiduciário (Y) retornará ao direito de ação, podendo adotar as medidas cabíveis e, agora sim, a prática de expropriação fora do juízo recuperacional, objetivando o cumprimento das operações garantidas por alienação fiduciária, caso o devedor (X), nesse período, não tenha renegociado seu crédito e cumprido com as obrigações originalmente pactuadas.

Consolidação x expropriação

Abre-se um parêntese nas razões expositivas, para diferenciar os termos jurídicos e a própria natureza jurídica envolvendo garantias por alienação fiduciária, quais sejam: consolidação da res garantida por alienação fiduciária vs. expropriação da res garantida por alienação fiduciária.

A Lei n° 11.101/2005, quando previu a suspensão nas formas de constrição dos ativos em posse do Devedor, durante o trâmite do processo de recuperação judicial, seguiu a presente lógica e princípios inerentes a sua reestruturação, devidamente interpretados pelo relatório apresentado pelo senador Ramez Tebet, quando da apresentação do referido diploma:

“Caso o Devedor perca a posse de todos os seus bens garantidos ou de propriedades de terceiros, a depender da forma organizacional da estrutura da atividade a ser reestruturada, o Devedor poderá se ver sem qualquer ativo e se tornar incapaz de gerar riquezas e soerguer-se no mercado. Desta feita, a suspensão e impedimento temporário dessa alteração brusca da posse do ativo garantido ou de propriedade de terceiro, deverá ser privilegiada no regramento da Lei n° 11.101/2005, sem prejuízo de outras medidas inerentes a reestruturação da atividade”.

Desde que respeitada a função social da empresa, a boa-fé objetiva do processo e a divisão equilibrada do ônus aos agentes interligados pela recuperação judicial, será privilegiado o tratamento de matérias envolvendo a posse do bem em favor do devedor, sobre os ativos considerados bens de capital e essenciais a reestruturação da atividade.

Spacca

Diante desse cenário, a consolidação da propriedade garantida por alienação fiduciária é o ato formal de averbação nos registros competentes, visando alterar o proprietário do ativo, em outros termos, registram-se como detentor da propriedade e não da posse, o credor fiduciário titular do direito, em razão do inadimplemento do devedor (artigo 26, §7°, da Lei n° 9.514/1997).

Ademais, diante desse mesmo cenário, a expropriação da propriedade garantida por alienação fiduciária é o ato material realizado, após averbação da consolidação da propriedade, com o objetivo de satisfazer a obrigação com a venda da res, por meio de leilão e, nesse momento, altera-se a posse, seguindo-se os ditames legais para tanto (vide artigo 27, caput, da Lei n° 9.514/1997).

A diferenciação jurídica de tais institutos é latente, pois, basta uma leitura atenta dos artigos supracitados, para verificar que são dois atos e institutos distintos, sucessivos e capazes de separação no caso em concreto, ao ponto de ser possível consolidar a propriedade, sem necessariamente, expropriar a propriedade.

Interpretação folclórica

Desta feita, volta-se ao início do “parêntese expositivo”, na medida que a Lei n° 11.101/2005 visa preservar o direito a posse dos ativos em favor do devedor, mas não necessariamente a propriedade de determinado ativo, principalmente aqueles advindos de alienação fiduciária (artigo 49, §3°, da Lei n° 11.101/2005) e, com isso, sem impeditivos para realização dos atos formais de consolidação da propriedade.

Retornando ao núcleo do presente artigo, a teoria do “vai que cola” como dito acima, às vezes aplicada em interpretações da Lei n° 11.101/2005, tem trazido distorções acerca dessa sistemática de relações regidas pela Lei n° 11.101/2005 e o credor fiduciário, pois, por agentes “minimamente criativos”, busca-se a mitigação da natureza da alienação fiduciária, com o seguinte discurso, desprovido de quaisquer fundamentos técnicos: “quando se tratar de bem garantido por alienação fiduciária e tal bem for considerado de capital e essencial à atividade a ser recuperada, perde-se a natureza da garantia fiduciária, considerando-o como crédito comum quirografário [3] e, pela essencialidade reconhecida do objeto da garantia, será sujeito à recuperação judicial e sujeito a renegociação do plano de recuperação judicial”.

Sim! Um absurdo! E por tal interpretação folclórica, pede-se vênia, para citar um ditado popular muito utilizado: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

O crédito garantido por alienação fiduciária, possui em seu núcleo interno, legislativos e conceito, envolvendo: (1) propriedade resolúvel do objeto garantido pelo Devedor, até quitação das obrigações, (2) retomada do objeto da garantia pelo Credor Fiduciário em caso de inadimplemento da obrigação, (3) regramentos específicos em legislações esparsas, (4) diferenciações acerca dos institutos de posse e propriedade etc.

Por sua vez, a definição de bem de capital essencial na recuperação judicial, refere-se, tão somente, ao fator tempo de posse, ou seja, o período pré-determinado pela Lei n° 11.101/2005 que um devedor poderá gozar da utilização do bem de capital essencial a atividade a ser reestruturada.

Em outros termos, o reconhecimento da essencialidade do bem objeto da alienação fiduciária para a atividade da empresa a ser recuperada, não tem condão para alterar a natureza do crédito que recaia sobre os bens alienados fiduciariamente.

Jurisprudência

Sobre o tema, deve-se afirmar o brilhante entendimento do Superior Tribunal de Justiça, consoante destaque:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. BEM ESSENCIAL À ATIVIDADE DA EMPRESA RECUPERANDA. CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE EM FAVOR DO CREDOR. SUSPENSÃO. POSSIBILIDADE. ALTERAÇÃO DA NATUREZA DO CRÉDITO. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE ARGUMENTOS APTOS À DESCONSTITUIÇÃO DA DECISÃO AGRAVADA. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. Quando for reconhecida a essencialidade do bem objeto de alienação fiduciária para a atividade de empresa recuperanda, admite-se a suspensão da consolidação da propriedade em favor do credor, por interpretação do art. 47 da Lei n. 11.101/2005. 2. A submissão ao juízo concursal, todavia, não autoriza a alteração da natureza do crédito que recai sobre os bens alienados fiduciariamente. 3. Mantém-se a decisão impugnada por seus próprios fundamentos quando o agravo interno deixa de trazer argumentos capazes de alterar o entendimento firmado. 4. Agravo interno desprovido. (STJ – AgInt no AgInt no AREsp: 2049324 MG 2022/0002708-1, relator: ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, data de julgamento: 14/08/2023, T4 – 4ª TURMA, data de publicação: DJe 16/8/2023)

Comentários finais

Por fim, mesmo que, por teses descabidas e criativas, a discussão do tema seja levada ao juízo da recuperação judicial e mesmo que, apesar da impossibilidade temporária de expropriar a propriedade (e não de consolidar a propriedade, como afirmado acima), em caso de inadimplemento da dívida, em razão da fruição do stay period, reafirma-se: o reconhecimento da essencialidade do bem de capital na recuperação judicial, advindo do negócio jurídico firmado com garantia por alienação fiduciária nunca deverá alterar a natureza da obrigação, muito menos, sujeitar tais direitos creditícios aos efeitos da recuperação judicial, com a absurda classificação dos créditos na classe de sem privilégios/quirografários, sob pena de incontáveis riscos de disfunção do sistema financeiro, alteração dos custos de crédito, privilegiar interpretações folclóricas e sem qualquer respeito aos princípios da boa-fé processual, função social da empresa e divisão equilibrada do ônus do processo, pervertendo, assim, a própria segurança jurídica tão buscada nos procedimentos regidos pela Lei n° 11.101/2005.

 


Referências bibliográficas:

Sacramone, Marcelo Barbosa, Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, 3. Ed., São Paulo: Saraiva Jur, 2022, pág. 265;

Artigo: O Papel do Administrador Judicial na Recuperação Judicial do Produtor Rural, Autora: Anglizey Solivan de Oliveira: Obra: O Administrador judicial e a reforma da Lei 11.101/2005, coordenação João Pedro Scalzilli, Joice Ruiz Bernier, São Paulo, Almedina, 2022, Vários autores.

Artigo: Lei n° 14.112/2020: Legitimidade do Produtor Rural para o Pedido de Recuperação Judicial e o Tratamento dos Créditos Específicos de sua Atividade, Autores: Rosemarie Adalardo Filardi e Jhonatan Luís Marques Poiana. Obra: Recuperação Judicial e Falência, atualizações da Lei n° 14.112/2020 à Lei 11.101/2005, Quartier Latin, 2021.

[1] Plano de Recuperação Judicial é a proposta máxima apresentada do Devedor, no processo de Recuperação Judicial, com as condições que serão empregadas, para fins de renegociação do cumprimento de suas obrigações, conforme parâmetros e formas previstas no art. 50 e art. 53, ambos da Lei n° 11.101/2005.

[2] Nesse sentido: STJ – REsp: 1938706 SP 2020/0312022-0, Relatora: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 14/09/2021, T3 – 3ª TURMA, Data de Publicação: DJe 16/09/2021.

[3] Negócios jurídicos sem previsão de garantias específicas (comum).

Autores

  • é membro do escritório Ernesto Borges Advogados, do Núcleo de Recuperação Judicial e Falência, coautor nos livros Recuperação Judicial e Falência: atualizações da Lei n° 14.112/202 à Lei n° 11.101/2005 (Quartier Latin, 2021) e Comentários à Lei de Recuperação de Empresa e Falência: Lei 11.101/2005 e dispositivos da Lei 14.112/2020 (Quartier Latin, 2023) e especialista em recuperação de empresas e falência pela PUC-SP.

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