Opinião

Avaliação de desempenho como critério de desempate diretamente no edital

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19 de julho de 2024, 18h26

Uma situação que pode ocorrer com mais frequência do que se imagina é o empate nos certames licitatórios. Como esses procedimentos visam selecionar a melhor proposta, segundo critérios previamente estabelecidos, o empate precisa ser solucionado de alguma maneira. Assim, o legislador trouxe na nova Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 14.133, de 2021) critérios de desempate para solucionar esse imbróglio.

Dentre os critérios de desempate trazidos em lei, analisa-se agora somente um ponto específico: a possibilidade ou não da inserção diretamente em edital de dispositivos relacionados à avaliação de desempenho contratual prévio, prevista no artigo 60, inciso II.

Primeiramente, para analisar a referida questão, calha transcrever o artigo 60 da Lei nº 14.133, de 1º de abril, de 2021, que dispõe sobre o desempate de duas ou mais propostas, in verbis:

Art. 60. Em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem:

I – disputa final, hipótese em que os licitantes empatados poderão apresentar nova proposta em ato contínuo à classificação;

II – avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes, para a qual deverão preferencialmente ser utilizados registros cadastrais para efeito de atesto de cumprimento de obrigações previstos nesta Lei;

III – desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho, conforme regulamento; (Vide Decreto nº 11.430, de 2023)

IV – desenvolvimento pelo licitante de programa de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle.

Como se vê, a nova Lei de Licitações dispõe sobre como a administração deve proceder em caso de empates de propostas. Em relação ao supracitado dispositivo, é importante fazer duas observações: 1) as regras de desempate só serão aplicadas após garantido o direito de preferência de microempresas e empresas de pequeno porte, previsto no artigo 44 da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, conforme disposto no §2º supratranscrito; 2) os critérios de desempate previstos no artigo 60, caput, da Lei nº 14.133, de 2021, seguem uma ordem rígida, só podendo ser aplicado o posterior caso o anterior não consiga desempatar as propostas, uma vez que o caput do dispositivo utiliza a expressão “nesta ordem”.

Assim, o critério de desempate “avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes” só pode ser utilizado caso o critério previsto no inciso I do artigo 60, da Lei 14.133, de 2021 (“disputa final, hipótese em que os licitantes empatados poderão apresentar nova proposta em ato contínuo à classificação”), não consiga desempatar as propostas apresentadas.

Avaliação dos licitantes

Spacca

Feitas essas considerações iniciais, retoma-se a questão primordial de se apurar a possibilidade ou não de estabelecer critérios objetivos diretamente no edital do certame para mensurar a avaliação do desempenho contratual dos licitantes.

De início, é preciso reconhecer que o tema é bastante polêmico e existem posicionamentos que defendem a necessidade de regulamentação do artigo 60, inciso II, para que esse critério de desempate seja aplicado [1]. Nesse sentido, leciona Adriano Dutra Carrijo:

Assim, somente na hipótese de não haver desempate, ou seja, de os licitantes empatados se recusarem a oferecer lance nessa nova disputa final ou ofertarem propostas iguais por absoluta coincidência, é que se aplicariam as demais regras do artigo 60. E como isso é verdadeiramente difícil de acontecer, o legislador pôde ser bastante engenhoso e inovador, estabelecendo critérios relacionados à avaliação de desempenho contratual prévio (algo que talvez nunca tenha sido feito pela Administração Pública), ao desenvolvimento de ações de equidade de gênero e de programas de integridade pelos licitantes empatados, cuja previsão novidadeira evidentemente merece elogios, e tende a ser objeto de bastante reflexão doutrinária, mas cuja aplicação prática tende a ser muito reduzida. Bem por isso, considerando os propósitos desse Manual, parece-nos mais adequando não se prolongar em maiores comentários às hipóteses, que deverão estar objetivamente definidas em Decreto regulamentador [2].

Já Marçal Justen Filho apenas discorre sobre a necessidade de regulamentação quanto ao critério de desempate previsto no inciso III. No que concerne ao inciso II, apenas reforça que a avaliação deve ser objetiva e que o desempate não pode se fundamentar em quantidade de atestados. Dispõe o referido autor:

É evidente, por outro lado, que não se estabelecerá uma competição entre os licitantes no tocante à experiência. Mais precisamente, poderá ocorrer o desempate em favor do licitante que tiver obtido uma avaliação positiva em seu desempenho anterior na execução do objeto similar quando o outro licitante não tiver experiência alguma documentada perante a Administração. Não caberá produzir o desempate com fundamento na quantidade de atestados, a pontuação obtida em desempenho anterior e assim por diante. Essa solução para desempate apenas será cabível quando existir sistema de avaliação objetiva do desempenho contratual anterior. Isso significa a insuficiência de informações baseadas em elementos subjetivos, que não tenham examinado o desempenho segundo critérios objetivos [3].

Na mesma linha, Joel de Menezes Niebuhr condiciona a utilização do critério de desempate do inciso II unicamente à existência de sistema de avaliação de desempenho contratual, assentado em critérios objetivos, nada tratando quanto a eventual necessidade de regulamentação. [4]

Tratando especificamente da matéria, Laércio José Loureiro dos Santos indica que a fixação de critérios objetivos pode se dar tanto por meio de regulamentação, como também pela fixação clara no edital: “Mesmo não havendo previsão expressa na lei, necessário se faz a regulamentação por decreto ou a previsão no edital de critérios estritamente objetivos para tal avaliação” [5].

Necessidade de norma regulamentar

De fato, diferentemente do inciso III do artigo 60 da Lei nº 14.133, de 2021, que utilizou a expressão “conforme regulamento” e deixou expressa a necessidade de norma regulamentar para dar execução ao dispositivo, tanto que foi expedido o Decreto nº 11.430, de 8 de março de 2023, para dar fiel execução (artigo 84, inciso IV, da Constituição) ao critério de desempate previsto no inciso III, nota-se que o inciso II não utilizou da mesma expressão.

Caso a intenção do legislador fosse a não aplicabilidade imediata do critério de desempate previsto no inciso II, provavelmente utilizaria de redação similar à prevista no inciso III, porém a não utilização da expressão “conforme regulamento” no inciso II ou outra que denotasse a necessidade de um ato normativo infralegal parece ter sido intencional, para permitir a aplicabilidade desse critério de desempate de forma imediata.

A Lei nº 14.133, de 2021, utiliza a expressão “conforme regulamento”, “na forma de regulamento” etc. dezenas de vezes, procurando deixar claro, dentro do possível, os dispositivos que precisam de ato infralegal para serem aplicados. Em outros momentos utilizou termos que denotam a necessidade de se observar outros atos complementares antes da previsão em edital, como, por exemplo, o critério de desempate previsto no item IV que usou a expressão “conforme orientações dos órgãos de controle”. Já os incisos I e II não apresentam redação que indicam qualquer necessidade de regulamentação para que possam ser previstos em edital.

Para se prever em edital de certame, a Nova Lei de Licitações apresentou até um caminho que, apesar de não ser único, é preferencial, qual seja, utilizar de “(…) registros cadastrais para efeito de atesto de cumprimento de obrigações previstos nesta Lei” (artigo 60, inciso II). Como já existem registros cadastrais, como o Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores (Sicaf) (regulamentado pela Instrução Normativa Seges/MPDG nº 3, de 26 de abril de 2018), verifica-se que a aplicação prática e efetiva do critério de desempate previsto no inciso II é possível independentemente de qualquer regulamentação.

Vê-se, inclusive, que já há órgãos e entidades adotando essa previsão em seus editais, a exemplo do edital de pregão realizado pelo Ibram (Instituto Brasileiro de Museus) (Pregão eletrônico — 90005/2024), procurando dar efetividade ao critério de desempate previsto no inciso II, bem como utilizando de registro cadastral bastante consolidado como o Sicaf.

Embora a avaliação de desempenho contratual não precise constar necessariamente de registro cadastral, sendo apenas um caminho preferencial, é prudente, ao menos nesses primeiros anos de vigência da Lei nº 14.133, de 2021, usar registros cadastrais como o Sicaf, para que a avaliação do desempenho contratual de licitantes seja a mais objetiva possível, evitando que o órgão licitante estabeleça critérios subjetivos e arbitrários.

Impende ressaltar que as penalidades mais graves como, por exemplo, impedimento de licitar, devem ter um peso negativo maior na avaliação de desempenho anterior que uma penalidade mais simples como multa ou advertência.

Como argumento de reforço a essa posição sustentada nesse artigo, observa-se que a lista de atos normativos e estágios de regulamentação da Lei nº 14.133, de 2021, realizada pelo governo federal, atualizada em 07/02/2024 [6], não contém nenhuma previsão/necessidade de regulamentação para o referido artigo 60, inciso II.

De qualquer forma, embora a norma prescinda de regulamentação, espera-se que futuramente seja editado algum normativo sobre o tema, para evitar que órgãos avaliem desempenhos contratuais anteriores similares de forma bastante discrepante (subjetiva) e seja buscada alguma forma de uniformização nessas avaliações.

Diante da ausência de ato infralegal, torna-se ainda mais importante a previsão em edital (comumente referenciado pela doutrina como a “lei da licitação pública”) para que haja transparência para os possíveis licitantes quanto à valoração dos critérios de desempenho anterior. Isso evita a arbitrariedades por parte da Administração e dá segurança jurídica aos participantes do certame.

 


[1] Nesse ponto, o Parecer n. 00363/2024/CGSEM/SCGP/CGU/AGU, da Consultoria-Geral da União (CGU), da Advocacia-Geral da União (AGU), ao mencionar a Nota Técnica nº 1915/2024/MTE em sua fundamentação, parece seguir a linha de raciocínio que entende pela necessidade de regulamentação do art. 60, inciso II, da Lei nº 14.133, de 2021, para sua aplicação.

[2] Manual prático de contratações públicas: regido por advogados públicos. Coordenadores: Carolina Zancaner Zockun; Flávio Garcia Cabral; Mônica Éllen Pinto Bezerra Antinarelli. Londrina: Editora Thoth, 2023, p. 317.

[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei nº 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

[4] NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. 7ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2024, p. 778.

[5] SANTOS, Laércio José Loureiro dos. Lei 14.133/21: desempate pela “avaliação do desempenho contratual”. Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mai-12/laercio-santos-desempate-avaliacao-desempenho-contratual/ Acesso em 04 jun. 2024.

[6] Disponível em https://www.gov.br/compras/pt-br/nllc/lista-de-atos-normativos-e-estagios-de-regulamentacao-da-lei-14133-de-2021.pdf

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