Opinião

STF e a descriminalização do porte da maconha: uma questão de política criminal?

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18 de julho de 2024, 7h16

Há algumas semanas, o Supremo Tribunal Federal deu um passo, tímido, porém significativo — e no momento político que atravessamos, pode-se mesmo dizer, corajoso — na delimitação de critérios mais objetivos para aplicação da lei de drogas no Brasil.

Isto porque a atual lei de drogas — Lei nº 11.343 de 23 de agosto de 2006 —, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, trouxe como principal novidade, em seu artigo 28, a figura do porte de drogas para uso pessoal sujeito a sanções diversas de prisão, porém, sem definir objetivamente um parâmetro concreto de quantidade que permitisse a distinção entre usuário e traficante. Optou-se, desse modo, por um tratamento menos rigoroso ao usuário, sem deixar, contudo, de prever a conduta como crime e de submetê-la a tratamento jurídico-penal. Entretanto, como já se sabe e muito se vem apontando desde o advento da lei, desta omissão legislativa decorreu uma imprecisão quanto à quantidade de droga, muitas vezes decida, discricionariamente, “no caso a caso”, ou por vezes até de forma arbitrária por parte de autoridades policiais e judiciárias.

A atual lei, deste modo, formulada em um momento em que já se evidenciavam sinais alarmantes do fracasso da assim chamada “guerra às drogas”, embora pretendesse acenar para um tratamento mais racional e menos alarmista do tema, acabou por avançar pouco e em quase nada afetou a questão do encarceramento em massa. Trata-se de problema grave e urgente, sentido no Brasil e em diversos outros países, consequência direta de políticas de drogas estabelecidas sob a influência da guerra conclamada pelos Estados Unidos de Nixon, no começo da década de 1970.

Disseminada por todo o mundo, tal modelo de política de drogas, calcado na ideia de “tolerância zero” e alheio a inúmeras questões socioeconômicas sensíveis, mergulhou inúmeros países em verdadeiro clima de permanente e insolúvel guerra civil, levando a um aumento expressivo de índices de violência urbana, aprofundamento de questões e tensões sociais, produzindo ainda numerosos exércitos de encarcerados que levaram, como já se sabe, a uma crescente sofisticação e aparelhamento do crime organizado.

Décadas de fracasso, de sangue e de altíssimos custos na manutenção de todo esse aparato repressor levaram muitos países a reverem suas políticas de drogas, tendo alguns, inclusive, optado por diferentes modalidades de regulamentação ou até mesmo de legalização de drogas.

Consequência, talvez, de nosso cenário de atraso histórico, de dependência ou submissão externas ou, mesmo, de falta de iniciativa política, a verdade é que o Brasil nunca esteve sequer próximo — como aliás, segue não estando — de qualquer revisão mais profunda de nossa política — ou guerra — às drogas.

Inclusive, nesse aspecto, importante salientar que não foi isso, aliás, o que Supremo Tribunal Federal fez ou pretendeu fazer no julgamento, em regime de repercussão geral (Tema 506), do Recurso Extraordinário (RE) nº 635.659 finalizado na última quarta-feira, 26 de junho. Até mesmo porque uma revisão profunda ou mesmo o estabelecimento de uma nova política de drogas dependeria de novas diretrizes e de um novo processo legislativo, competência essa que o Supremo não pode, nem deve, avocar. De se pensar, inclusive, que em nossa atual realidade e configuração política, infelizmente dada a polaridades, oportunismo e populismo penal, o mais prudente seja mesmo a manutenção, por ora, da lei, sob risco de gerar ainda mais agravamento do referido cenário.

Muito se falou ao longo dos debates na Suprema Corte, especialmente por parte de ministros que votaram contrariamente à descriminalização, que esta seria uma questão de ordem científica, ignorando inclusive consensos já existentes no campo, por exemplo, das ciências sociais. Até mesmo o próprio presidente da República, temendo a repercussão da opinião pública e de um possível desgaste perante eleitores, recorreu a este argumento como forma de evitar emitir um parecer sobre tema.

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Embora a premissa se mostre parcialmente verdadeira, necessário também levar-se em conta que o tema da descriminalização das drogas não é uma questão exclusivamente técnica, afeita às autoridades em saúde pública ou especialistas das ciências médicas, como também uma discussão das ciências sociais e, especialmente, das ciências criminais.

Compreensão do Direito Penal

Neste ponto, vale lembrar o pensamento de Franz Von Lizt, importante jurista e criminólogo alemão do século 19, para quem a discussão penal deveria se inserir dentro de uma noção e compreensão de uma ciência conjunta do Direito Penal, levando em conta não apenas a dogmática, como também o olhar e estudo da criminologia e da política criminal.

Assim, pensando em termos conjuntos, como nos propõe Lizt, verificamos que toda medida legislativa ou mesmo decisões judiciais dessa magnitude e extensão pressupõem e traduzem opções político-criminais que afetam em concreto a realidade, impactando, por exemplo, no perfil e até mesmo no número de encarceramento.

Deste modo, é especialmente por este último aspecto, o da política criminal, que se deve enfrentar a discussão levantada com o julgamento da descriminalização do porte de drogas.

E aqui, não se fala apenas para o Brasil da “Marcha da Maconha” ou daqueles que fazem uso recreativo de drogas, parcela essa que comemora o resultado da votação do Supremo. Não se pode achar que esse seja um problema que começa ou termina aqui, muito menos que encontra solução na decisão improvisada pelo STF.

A questão vai, e deve, ir muito além.

Isso porque a política de drogas vigente nunca deixou claro a qual propósito e a que modelo de política criminal responde, uma vez que, a despeito da inicial proposta de estabelecer um Sistema Nacional de Política de Drogas, acabou sendo aplicada dentro de uma lógica limitada e simplista de mera repressão e encarceramento. Isso sem falar no sabido e reconhecido problema da seletividade do sistema de justiça criminal. Seja como for, quase duas décadas depois da promulgação da lei, nossa política de drogas segue sem uma definição e delineamento muito claros.

Que as drogas afetam e impactam em questões de saúde pública, isto não se pode negar, contudo, para onde teria ido o propósito de tratamento e enfrentamento das drogas por um viés não apenas repressivo, mas também preventivo e assistencial? Esta, afinal, parecia ser a mais relevante e valiosa proposta que teria orientado a reestruturação da política de drogas e o estabelecimento de um novo marco legal.

Enquanto um setor da população comemora uma conquista obtida com a decisão, de outro lado, temos uma parte muito mais expressiva dessa mesma realidade (e população) ainda sendo tratada não sob o viés de saúde pública, mas, como questão de polícia e segurança pública.

Assim, enquanto se observa o espalhar das drogas pelas cidades com dezenas de milhares de cidadãos mergulhados e tragados para o submundo da criminalidade ou da dependência, sem qualquer assistência ou cuidado — realidade cuja expressão mais bárbara e cruel pode ser vista nas muitas ‘cracolândias’ espelhadas pelo país —, a sociedade tenderá a seguir apoiando soluções como o cárcere e defendendo pretensas soluções fáceis que se resumem, basicamente, a propostas de tratamento mais severo, aumento de penas e recrudescimento do aparato de repressão.

Tal choque, aliás, fica evidente com a própria crise que se instalou entre os poderes da República em relação ao tema, ainda mais intensificada com a conclusão do julgamento

Assim, chega a parecer que se está diante de duas realidades e mundos absolutamente distintos. De um lado, o Supremo Tribunal Federal avoca para si a necessidade, urgente e já muito adiada, de fixar parâmetros concretos para uma diferenciação entre traficante e usuário tomando, inclusive, a questão numa dimensão bastante reduzida. Mesmo com a discussão limitada ao porte e uso recreativo da maconha, a cautela e moderação não foram suficientes para evitar alardes, manchetes sensacionalistas e uma enxurrada de notícias falsas alardeando a população para uma suposta legalização de drogas pelo STF, sem falar do recurso a outros fantasmas e assombrações do imaginário popular.

Cruzando a rua, fisicamente, na Praça dos Três Poderes, e de um lado oposto do ponto de vista ideológico, por sua vez, tem-se um Congresso movido predominantemente por forças reacionárias e oportunistas, que planeja colocar o Brasil na contramão das discussões sobre o tema ao redor do mundo, propondo-se uma política criminal que busca tornar norma constitucional a criminalização e punição do porte de qualquer quantidade e de qualquer droga. Um inegável recuo e retrocesso em relação à própria lei de 2006.

Nada disso, entretanto, pode servir de disfarce ou maquiagem para os problemas de fundo que vão para muito além, seja da reprovável conduta do Congresso, quanto mesmo das contradições e incoerências também presentes na própria decisão do Supremo. O reconhecimento da importância da decisão e o elogio a certos méritos do julgamento do Supremo, não podem servir de cegueira para suas falhas.

Atenção à decisão do STF

Assim, a título de possível conclusão e encaminhamento do debate, importante indicar-se  ao menos cinco principais pontos que, em uma avaliação mais técnica e cuidadosa, merecem atenção e cuidado em relação à decisão exarada pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, especialmente para aqueles que a comemoram em desmedida.

Em primeiro lugar, a decisão embora tenha natureza vinculante, se confunde, na prática, com mera recomendação, na medida que não obriga nem impede a capitulação do trágico mesmo diante das circunstâncias estabelecidas no acórdão. Ou seja, nada muda, obrigatoriamente, do dia para a noite, muito menos para os já condenados por tráfico, ainda que o tenham sido nas condições descritas na decisão.

Mesmo a aplicação dos parâmetros fixados pelo tribunal (porte de até 40g de maconha ou cultivo de 6 plantas fêmeas) se dará a título de precedente para os casos posteriores ao julgamento e, se muito, como um “parâmetro” de possível adoção e aplicação (sem qualquer força de precedente) nos casos em curso por parte de juízes e desembargadores de boa-vontade. Com relação às inumeráveis condenações já existentes, o STF não pretende, certamente, impor automática e imediata revisão de milhares sentenças no varejo, nem mesmo trazer para si o problema para (tentar) resolvê-lo no “atacado”.

O segundo ponto, diretamente atrelado ao primeiro, refere-se ao não desaparecimento da discricionariedade das autoridades policiais e judiciárias, uma vez que a decisão, nos moldes e limites dados, sugere a quantia referida como parâmetro para a definição de usuário, não impendido que pessoas eventualmente pegas com quantidade compatível ou mesmo inferior de maconha possam, especialmente em função de determinados marcadores de classe, cor e gênero, ser conduzidos arbitrariamente para delegacias e até mesmo ser-lhe imputadas a conduta de tráfico.

Nesse sentido, inclusive, cabe o esclarecimento de que a decisão não cria nem pretende criar uma margem inquestionável, absolutamente segura e acima de qualquer suspeita, para o porte destinado ao consumo dos usuários. Mesmo a observância do parâmetro quantitativo não obsta, nem impede, a avaliação de parâmetros qualitativos e subjetivos que possam indicar atividade de traficância e, portanto, impor a devida persecução pela prática de tráfico que segue sendo crime nos exatos e mesmos termos de sempre.

Em terceiro lugar, a decisão opta por manter como ilícito o porte da maconha, porém, como um ilícito administrativo. Aqui talvez, pode-se mesmo sondar e supor que o receio e, portanto, a escolha da Corte tenha sido tão somente em virtude do temor do peso e repercussão negativa de uma absoluta descriminalização da maconha. Por mais que essa pareça ser uma daquelas muitas determinações vazias, feitas para não serem aplicadas plenamente, fica o recado de que maconha não é legal, tanto na acepção jurídica quanto leiga. Assim, para a Corte, convém deixar registrada e atestada sua desaprovação — fundamentada em termos técnicos, argumentos científicos e dados sobre dependência —, muito embora não se cogite deixar “de castigo” nem dar bronca nas milhares de pessoas, infeliz e irresponsavelmente, viciadas em drogas legalizadas e fármacos de drogaria.

Indefinição e aplicação

Que fique claro, portanto, que em momento algum o STF procedeu a qualquer tipo de legalização do porte ou uso da maconha, que seguem sendo ilegais, embora sem configurar crime — ou seja, ilícito penal. Entretanto, ainda não resta claro a quais medidas e sanções administrativas poderão estar sujeitos os usuários além daquelas já previstas entre os artigos 27 e 29 da Lei de Drogas (advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade, medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo e outras), tampouco a quem caberá — e a que custo — aplicá-las.

Um quarto ponto a se destacar é que a decisão do STF leva em conta e se aplica exclusivamente à cannabis. Entretanto, não parece estar claro se a exclusão de demais drogas se justificou, de fato e determinantemente, por certo fundamento realmente à luz de alguma ciência — a apontar, supostamente, uma menor lesividade da maconha frente às demais drogas — ou se tal escolha teria sido feita a título de uma opção de política criminal — o fato de ser, talvez, a droga mais consumida e popular.

Certamente que estes não são, nem devem ser, argumentos e visões necessariamente excludentes, mas complementares. Entretanto — e aqui se faz uma provocação —, já que diversos ministros se mostraram sensíveis a problemas como o encarceramento em massa, a discricionariedade dos agentes públicos e a seletividade do sistema de justiça criminal, também não seria o caso de se avaliar, por essas mesmas razões, a possibilidade de aplicação do mesmo parâmetro para drogas que afetam grupos mais vulneráveis e que levam à apreensão e encarceramento de massas desvalidas, ainda que tais substâncias possam ser consideradas mais lesivas?

De onde vem a droga?

Veja-se, não se trata de contrassenso, muito menos se está aqui a fazer qualquer discurso de estímulo ou sinalização à normalização do uso de drogas, especialmente daquelas mais agressivas. Contudo, será que conseguiremos de fato resolver o problema de nossas “cracolândias”, oferecer amparo, atenção e tratamento para os milhares de adictos se continuarmos a enxergar tais usuários como infratores e não como vítimas de um problema de saúde pública?

Ainda que que se possa dizer, com certa razão, que a superação da discussão no STF para outras drogas poderia extrapolar os limites objetivos delimitados pelo recurso julgado, já que a ação originária tratava única e exclusivamente da maconha, não cabendo ao tribunal estender, de ofício, os limites objetivos da controvérsia recursal, tal discussão não foi sequer trazida aos debates neste que é um espaço importante e privilegiado de debates. Se em tantas outras ocasiões assistimos ao STF acenar para decisões e temas claramente políticos, nessa arena de debate, aparentemente, o tribunal optou por fazer um movimento básico, não forçar o jogo e deixar ao Parlamento a próxima jogada a qual, inclusive, como se viu, coloca em risco a própria decisão da Suprema Corte.

Por fim, como último apontamento, a decisão, por suas limitações, não resolve nem sinaliza para o que talvez seja e continue sendo o maior problema de todos: de onde vem e virá a droga? Aqui, aliás, estamos a nos referir às exatas circunstâncias da decisão: aos, no máximo, 40 gramas de maconha voltada ao consumo pessoal.

Isso porque se o comércio, compra e venda de entorpecentes, segue sendo crime, restará a todos os milhares de usuários de maconha por este País, a tarefa de aprender a cultivá-la. No máximo seis pés fêmeas, é claro. Contudo, ainda que assim o fosse e que toda a população usuária resolvesse deixar de lado o recurso ao mercado clandestino e lançar-se à “jardinagem canábica”, de onde viriam as sementes? De quem comprariam? Nada disso afastaria, concretamente, em algum momento, o nó ainda existente entre o consumo permitido e atividades ainda consideradas tráfico. Resta, portanto, certa incoerência e contradição em uma decisão que pretende descriminalizar, contudo, sem regularizar ou dizer como adquirir a droga de forma “não ilícita”.

Obviamente que nenhuma decisão é isenta de falhas ou imprecisões e, especialmente quando pensamos na realidade brasileira, o saldo da decisão parece ser inegavelmente positivo e, espera-se proveitoso. À parte isso, uma parcela considerável da população assiste escandalizada a esse singelo e discreto avanço e ainda reverbera a decisão em clara histeria, típica do auge da guerra às drogas, deixando assim evidente que, infelizmente, qualquer discussão mais profunda, racional e lúcida — seja qual for sua conclusão e escolha — ainda parece distante no horizonte.

Enquanto não houver capacidade de discutir e decidir coletivamente, como sociedade, direta e integralmente afetada pela questão, de forma séria, coerente e responsável sobre qual a política de drogas se deseja e que proposta de política criminal se busca, continuar-se-á a fazer direito penal e a política criminal com arremedos, ajustes e “puxados”, que a despeito de eventuais avanços, infelizmente não são capazes de enfrentar a fundo os problemas da complexa realidade judicial e legislativa nacional.

Autores

  • é advogado, professor e mestre em Direito pela Unesp (Universidade Estadual Paulista).

  • é advogado, pós-graduado em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal – ICPC (2019), mestre e bacharel em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e membro associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

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