Superação da Doutrina Chevron nos EUA e seus impactos no Brasil

Autores

  • Giuseppe Giamundo Neto

    é doutorando e mestre em Direito do Estado pela USP (Universidade de São Paulo) advogado e sócio do Giamundo Neto Advogados professor do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa) em Brasília e secretário-adjunto da Comissão Nacional de Direito da Infraestrutura da OAB.

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  • Fernanda Leoni

    é doutoranda e mestre em Políticas Públicas pela UFABC (Universidade Federal do ABC) especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Magistratura bacharel em Direito pela PUC-SP e advogada do Giamundo Neto Advogados.

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17 de julho de 2024, 12h15

Conhecida, no Brasil, como Doutrina Chevron, o caso Chevron U.S.A., Inc. vs. Natural Resources Defense Council, Inc., decidido pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1984, estabelecia limites para o controle jurisdicional dos atos praticados pelas agências reguladoras. No precedente, que envolvia a interpretação de disposições da Clean Air Act — legislação ambiental acerca da emissão de poluentes no ar —, a Suprema Corte estabeleceu que essas agências, enquanto entes de natureza técnica, deveriam fornecer o sentido de disposições ambíguas da lei, cujas decisões, munidas de certa reserva de conhecimento especializado, não deveriam ser revisitadas pelo Poder Judiciário.

Essa ideia de “deferência judicial” praticada no sistema jurisdicional norte-americano fundamentava-se na expertise técnica detida pelas agências, na delegação legislativa parcial a tais entes e na necessidade de preservação da eficiência administrativa, uma vez que os atos não seriam, por regra, invalidados judicialmente.

Embora o sistema jurisdicional brasileiro seja bastante diverso do sistema de precedentes, a Doutrina Chevron sempre exerceu certa influência em nosso país, principalmente porque parte essencial da disciplina sobre agências reguladoras bebe dessa fonte. Mesmo diante de uma abertura muito mais ampla à revisão jurisdicional, a ideia de “mérito administrativo” ou de presunção de legitimidade dos atos administrativos costuma ser observada pelo Judiciário nacional na revisão dos atos de regulação praticados por tais agências.

Superação da doutrina

No entanto, no final do mês de junho, a Suprema Corte dos EUA superou esse precedente no julgamento do caso Loper Bright Enterprises et.al. vs. Raimondo, Secretary of Commerce et. al., entendendo-se pela possibilidade de o Judiciário rever atos de agências independentes, não lhes competindo o monopólio do preenchimento das lacunas legais, mesmo em matéria técnica.

O caso envolvia empresas do setor de pesca que contestavam a interpretação da legislação federal conferida pelo National Marine Fisheries Service, alegando que a agência havia extrapolado sua autoridade regulamentadora. Na análise realizada, a Suprema Corte decidiu que os tribunais não deveriam mais conceder deferência automática às interpretações das agências administrativas em casos de ambiguidade legal, cabendo-lhes a interpretação direta da lei, sem qualquer reverência especial ao posicionamento das agências.

Spacca

Dentre as justificativas da decisão, destaca-se a separação de poderes, com ênfase de que a deferência excessiva às agências administrativas poderia ocasionar a transferência indevida do poder legislativo à esfera executiva. Também foi invocada a responsabilidade democrática por parte do Poder Judiciário, ao se considerar que interpretação legal constitui parcela essencial da atividade jurisdicional.

A decisão, portanto, impacta diretamente o Direito norte-americano no que se refere à ideia de “Estado Administrativo”, a partir de um amplo debate que se inicia sobre a redução da autonomia das agências quando se exige um escrutínio mais rigoroso de suas interpretações legais pelos tribunais, além de ampliar o controle judicial, conferindo um papel mais ativo ao Judiciário.

Ainda que não se possa afirmar que a superação da doutrina Chevron pela Suprema Corte dos Estados Unidos em Loper Bright Enterprises vs. Raimondo implica imediata limitação dos poderes normativos das agências reguladoras [1], não se pode afastar o risco palpável de decisões judiciais menos qualificadas sobre matérias técnicas eventualmente submetidas aos tribunais, não necessariamente supridas pelo conhecimento jurídico.

Impacto

No contexto brasileiro, essa mudança, a princípio, pode servir de reflexão sobre a relação entre agências administrativas e o controle judicial, promovendo um diálogo contínuo sobre a melhor forma de equilibrar eficiência administrativa com a garantia de outros preceitos constitucionais.

Spacca

Em que pese a Doutrina Chevron seja bastante conhecida em nosso Direito Público, e não raramente invocada em decisões judiciais envolvendo o tema, as atribuições do Judiciário brasileiro, em razão de uma reserva de jurisdição bastante amplificada e de um controle jurisdicional mais rigoroso, não são imediata e diretamente impactadas por essa discussão, senão em um campo de debate acadêmico.

Considerando que o Direito brasileiro já possui uma abordagem menos deferente às interpretações administrativas quando em comparação com o sistema estadunidense sob a doutrina Chevron, a decisão do caso Loper Bright parece não trazer grande novidade por aqui, a não ser reforçar a ideia de um controle judicial mais amplo, que, quando entende pertinente, se vale da inafastabilidade da jurisdição para decidir temas de natureza técnica e próprios da regulação.

 


[1] Nesse sentido, a posição da profa. Vera Monteiro, em entrevista para a Exame: “Acho excessivo concluir que a derrubada da doutrina Chevron levará ao fim do Estado Administrativo e da atuação normativa das agências reguladoras independentes. O que a Suprema Corte avaliou é que é exagerado afirmar que o judiciário sempre deverá respeitar a interpretação da agência quando a lei for ambígua. Primeiro, porque a ambiguidade na lei pode envolver questão jurídica e, neste caso, o judiciário é o local próprio para decidir o conflito. Depois, porque poderá haver aspectos na decisão da agência que aprova regulação setorial que deveriam ser controláveis pelo judiciário, em decorrência de outra norma federal, o Administrative Procedure Act (1946)”. Disponível em: https://exame.com/colunistas/instituto-millenium/suprema-corte-dos-eua-revoga-doutrina-chevron-entenda-as-implicacoes/#:~:text=Com%20a%20revoga%C3%A7%C3%A3o%2C%20o%20judici%C3%A1rio,poder%20entre%20os%20tr%C3%AAs%20poderes. Acesso em 15/07/2024.

Autores

  • é doutorando e mestre em Direito do Estado pela USP e sócio do escritório Giamundo Neto Advogados.

  • é doutoranda e mestre em Políticas Públicas pela UFABC (Universidade Federal do ABC), especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Magistratura, bacharel em Direito pela PUC-SP e advogada do Giamundo Neto Advogados.

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