Da advocacia predatória e do abuso do direito de ação
17 de julho de 2024, 19h42
A garantia constitucional do acesso à Justiça, também denominada de princípio da inafastabilidade da jurisdição, está consagrada no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição e no Código de Processo Civil em seu artigo 3º.
Logo, pode ser dito que a garantia constitucional do direito de ação está intimamente ligada e se relaciona diretamente com os demais princípios constitucionais, tais como o da igualdade, haja vista que o acesso à Justiça não é condicionado a nenhuma característica pessoal ou social, sendo, portanto, uma garantia ampla.
Contudo, referida garantia constitucional não significa que possa ser exercida livremente sem qualquer responsabilidade, até porque o acesso ao Judiciário não se limita ao direito de pedir, mas também ao dever de agir com honestidade, integridade e respeito ao sistema legal. Por esse prisma, o princípio constitucional do acesso à Justiça não pode ser considerado absoluto, devendo sofrer restrições em situações específicas onde se percebe um abuso de direito, como por exemplo nos casos de demandas predatórias.
O direito de ação mereceu a devida previsão no âmbito infraconstitucional, principalmente aos cidadãos com insuficiência de recursos, conforme assim dispõe o artigo 98 do Código de Processo Civil. Mas, lamentavelmente, muitos advogados têm se aproveitado desse importante instituto para abusar do direito de ação e ajuizar diversas demandas repetitivas que carecem de base legal sólida ou evidências adequadas, utilizando-se de petições genéricas e sem ligação com situações concretas.
Tal abuso, por alguns doutrinadores também chamado de “sham litigation“, ou litígio falso, atinge grandes empresas, e em especial, as instituições financeiras.
As demandas tidas como predatórias são ajuizadas em massa, geralmente sem que a parte autora tenha conhecimento, sempre com um mesmo tema, com petições praticamente idênticas, onde apenas o nome da parte e o endereço são modificados.
Em resposta a essas preocupações, e com o objetivo de combater esse tipo de prática abusiva de efeitos deletérios para o Poder Judiciário ao sobrecarregar varas e tribunais com demandas artificiais, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou o grupo operacional do Centro de Inteligência do Poder Judiciário (CIPJ) e a Diretriz Estratégica nº 7, sendo inclusive decidido que cada tribunal, com total autonomia, criaria um centro de inteligência, sendo o mesmo interligado ao Conselho Nacional de Justiça.
E nesse sentido, os tribunais dos respectivos estados criaram os chamados Numopede (Núcleo de Monitoramento de Perfis de Demanda), os quais possuem a incumbência de reunir informações sobre demandas repetitivas, genéricas e, muitas vezes, fraudulentas. O estudo do perfil de demandas surgiu com o objetivo de monitorar aquelas que, pelas suas características, impactam de forma substancial na organização dos serviços judiciais. A análise das demandas a partir do seu perfil pode se justificar, entre outros casos, por picos de distribuição em curto espaço de tempo, pelas características do litígio ou dos litigantes.
O objetivo é permitir que o Poder Judiciário deixe de ser vítima do sistema massificado das relações trazidas à sua apreciação, ou seja, conhecer e monitorar as demandas que chegam, com a consequente divulgação desses dados, a fim de traçar estratégias de combate e atuação eficiente.
Identificar abusos é a meta
Em São Paulo, o TJ-SP cumpre as diretrizes traçadas pelo Numopede, adotando boas práticas para tentar identificar e tentar coibir abusos e fraudes, principalmente na seara das ações contra instituições financeiras.
Atualmente, percebe-se um aumento na atuação de magistrados em todos os estados para combater esse abuso de direito. Em um exemplo, por indícios de litigância predatória, a juíza Paula de Goes Brito Pontes, da vara única de Murici (AL), extinguiu a ação (0700715-29.2023.8.02.0045) de suposta contratação fraudulenta e oficiou a OAB-AL e MP-AL sobre atuação de advogada que ajuizou 330 processos com a mesma lide no TJ-AL.
Na comarca de Araripina, foram extintos 1.571 processos (0002317-88.2020.8.17.2210), que representavam aproximadamente 30% do acervo. A extinção dos processos foi motivada pelos fortes indícios de captação ilegal de clientes, irregularidades nas procurações, apropriação indébita dos valores recebidos e uso de teses jurídicas fabricadas.
O ajuizamento em massa foi percebido na região do Araripe, quando esse único advogado protocolou, no período de 2 anos e 3 meses, 11.160 ações em apenas sete comarcas: Exu, Araripina, Ipubi, Bodocó, Parnamirim, Ouricuri, Trindade.
Ressalte-se a importância crucial da atuação dos juízes na contenção das práticas jurídicas predatórias. Um exemplo relevante desse enfrentamento ocorre na recusa da concessão de assistência judiciária gratuita quando, ao invés de ajuizar a ação em seu domicilio, conforme previsto pelo Código de Defesa do Consumidor, a parte opta por fazê-lo no domicilio do réu. Tal escolha sugere que o consumidor não necessita de isenção de custas processuais, destacando-se, assim, a responsabilidade do Judiciário na proteção da integridade do sistema legal.
Havendo ainda prova inequívoca do uso de documento falso para a propositura de ações predatórias, além da apuração disciplinar pela Ordem dos Advogados, o caso deve ser encaminhado ao Ministério Público para apuração de ilícitos criminais cometidos.
É importante ressaltar que o instituto da litigância predatória levou, ainda, o Superior Tribunal de Justiça a apontar como relevantes as discussões processuais que circundam tal temática, e iniciou, o julgamento do Tema Repetitivo 1.198, para definir se o magistrado, ante a suspeita de ocorrência de litigância predatória, pode exigir que a parte autora emende a petição inicial e apresente documentos capazes de embasar os pedidos apresentados no processo.
É interessante lembrar que a prática da advocacia predatória merece atenção especial, inclusive da OAB, não apenas porque constitui infração ética prevista no artigo 34, incisos III e IV, do Estatuto da Advocacia, como também pelo fato de que na grande maioria causa prejuízos às pessoas em situação de vulnerabilidade e compromete a garantia constitucional da duração razoável dos processos.
Necessário, portanto, manter um monitoramento para reprimir esse tipo de demanda, dentre as quais recomenda-se ainda à análise acerca da ocorrência do crime de associação criminosa, na forma do artigo 288 do Código Penal ou de organização criminosa prevista no artigo 1º, § 1º, e seguintes da Lei nº 12.850/13.
Ademais, é importante considerar que a atitude daquele que promove distribuição em massa de processos, valendo-se da prática predatória, viola o princípio da boa-fé e o dever de lealdade. Assim, é indispensável que o Poder Judiciário como um todo, com o apoio do Ministério Público e da própria Ordem dos Advogados do Brasil estejam vigilantes para impedir que o acesso à Justiça, tão relevante e necessário a todos, não seja utilizado de forma abusiva para abrigar demandas agressoras, fraudes e causas fabricadas.
Conta a pagar
Não se pode perder de vista que o uso indevido da máquina judiciária tem gerado uma conta a qual todos teremos de suportar, tendo em vista que o ajuizamento indiscriminado de ações, sem o pagamento da contraprestação devida ao Estado pela prestação de serviços públicos, faz com que o erário sofra prejuízos.
Pode-se dizer também, que o deferimento do benefício da justiça gratuita sem uma análise aprofundada é uma das aberturas da “máquina” de demandas predatórias. Isso porque, com a Justiça gratuita deferida, não há qualquer risco à parte ou ao advogado envolvido, isso porque não terá que arcar com custas e/ou ônus sucumbenciais, caso seu pedido se mostre improcedente. Agrava, ainda, essa situação, o fato de que as ações em análise envolvem sempre relações de consumo, e consequentemente, a inversão do ônus da prova com fundamento no artigo 6, VIII do Código de Defesa do Consumidor.
Sendo assim, a combinação “Justiça gratuita e solicitação de “inversão do ônus da prova”, nas ações em análise, potencializa e estimula a distribuição de ações temerárias, por associar uma ação sem risco e, ao mesmo tempo, sem lhe imputar o ônus de demonstrar os fatos que alega.
Para reverter tal problemática, é necessária uma atuação com rigidez quanto à análise desse tipo de causa, desde o seu nascedouro, com a recusa da Justiça Gratuita quando se perceber indício de fraude na ação, até o julgamento, com a condenação dos advogados, de forma solidária, em multa litigância de má-fé.
Ainda, podemos citar o recente encontro da Corregedoria Geral da Justiça (CGJ) e a Escola Paulista da Magistratura (EPM), onde foi ministrado, o curso “Poderes do juiz em face da litigância predatória”, onde foram debatidos, votados e aprovados 17 enunciados propostos por magistrados participantes da primeira etapa do curso.
Os tribunais atualmente mapeiam a litigância predatória por meio dos núcleos de inteligência, utilizando estatísticas para identificar e acompanhar continuamente processos que, devido às suas características específicas, exercem um impacto significativo na estrutura e organização dos serviços judiciais. A análise desses processos se baseia em critérios como picos de distribuição em períodos curtos, peculiaridades do litígio ou dos litigantes, entre outros casos que justifiquem uma avaliação detalhada.
Desta forma, é inegável que a litigância predatória compromete severamente a atividade do Poder Judiciário. O elevado volume desses litígios não apenas causa danos significativos aos cofres públicos e prolonga indevidamente a tramitação dos processos, mas também mina a celeridade e a eficiência do sistema de Justiça.
Adicionalmente, impõe um ônus financeiro substancial às grandes empresas de setores como telefonia, varejo e instituições financeiras, que se veem obrigadas a aumentar seu provisionamento e reservas financeiras para mitigar riscos futuros, refletindo a necessidade urgente de um planejamento meticuloso para enfrentar perdas potenciais baseadas em demandas fraudulentas.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!