Opinião

Autópsia psicológica como prova atípica e sua aplicabilidade no processo civil

Autor

  • Bruno Fuga

    é advogado professor doutor em Direito Processual Civil pela PUC-SP (2020) pós-doutorando pela USP membro titular efetivo da Academia de Letras de Londrina (PR) mestre em Direito pela UEL (linha de Processo Civil) pós-graduado em Processo Civil (2009) pós-graduado em Filosofia Jurídica e Política pela UEL (2011) coordenador da Comissão de Processo Constitucional da OAB Londrina membro do IBPD e IAP conselheiro da OAB Londrina e editor-chefe da Editora Thoth.

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17 de julho de 2024, 6h01

Paulo contrata um seguro de vida, mas, infelizmente, após apenas dois meses, se suicida [1]. A família, após saber da existência da contratação de seguro, aciona a seguradora, que analisa o caso e recusa o pagamento do prêmio da cobertura securitária, com a justificativa de ser suicídio premeditado [2].

O caso é de alta complexidade probatória, pois, se é ônus da seguradora provar que houve suicídio premeditado, pode ser interpretado como prova diabólica. Se for ônus dos beneficiários do seguro provar o não suicídio premeditado, pode ser também interpretado como difícil ônus probatório.

Segundo caso hipotético: Carmem era uma famosa empresária no Brasil, mas, acometida por doença neurodegenerativa grave, foi interditada no ano de 2023. Interditada, os interessados iniciaram uma famosa batalha nacional envolvendo discussões como: a não validade do testamento feito em 2023, não validade das procurações outorgadas no período de 2020 até sua interdição e fraude em diversas movimentações bancárias. A alegação de um dos interessados era a incapacidade decorrente de doença neurodegenerativa grave, mas que, de acordo com esse interessado, os efeitos dessa incapacidade tiveram início bem antes da interdição.

Terceiro caso: Mirtes, uma famosa modelo, já com 85 anos, some. Seus familiares ficam preocupados. Após seu reaparecimento, descobrem que, na verdade, ela estava casada há 10 anos com seu antigo funcionário, este mesmo que esteve presente na alteração de seu recente testamento e auxiliou em diversas transações bancárias que estavam em seu nome. Consultada, Mirtes atualmente aparenta já não ter mais plena capacidade civil, motivo pelo qual a família irá procurar pedir a interdição dela. Consultado, seu então marido afirma que tudo foi consensual — o casamento e todas as transações e documentos assinados —, e que essa suposta incapacidade teve início apenas muito recentemente.

O aspecto probatório

Pois bem. Apresento três possíveis casos judiciais onde a prova judicial para apurar os fatos é de elevada complexidade, o motivo: quem poderia esclarecer o fato ou não está mais vivo ou não tem mais capacidade civil para fazê-lo.

Como descobrir que o segurado não firmou contrato de seguro de vida premeditando suicídio? Como apurar pretéritas vontades (se desejava fazer testamento, se tinha capacidade civil, se fez doações em plena capacidade civil) se a principal responsável já não mais tem capacidade para esclarecer os fatos [3]?

Autópsia psicológica

O presente artigo tem o propósito de sinteticamente afirmar ser possível a autópsia psicológica como meio de prova, prova essa atípica no ordenamento jurídico, mas muito pertinente como meio de prova, especialmente para casos como os relatados no início do artigo.

Spacca

O objetivo é possibilitar perícia de autópsia psicológica, que poderá ser realizada por, por exemplo, psiquiatra e psicólogo (CPC artigo 475, que permite, em perícia complexa, com mais de uma área de conhecimento especializado, ser realizada por dois peritos), apurar aspectos pretéritos e, assim, mostrar evidências científicas para esclarecer que, na época dos fatos narrados, por exemplo, a interditada tinha capacidade mental para fazer testamento, transações bancárias, doações, contrair dívidas ou, como narrado no primeiro exemplo, tinha premeditado suicídio (sua saúde mental propiciava uma premeditação de suicídio).

Para o segundo e terceiro exemplo de interdição, é importante destacar que a interdição pode ter efeitos retroativos (apurado em ação própria), pois, certamente, uma doença neurodegenerativa grave não surge prontamente na véspera da interdição; ela afeta momentos anteriores à interdição e apurar o início da incapacidade pode ser prova complexa que a perícia de autópsia psicológica pode colaborar, juntamente com outros elementos probatórios (documentais, prontuários, testemunhais e afins).

Diga-se, inclusive, que o(s) perito(s) pode(m) “valer-se de todos os meios necessários, ouvindo testemunhas, obtendo informações, solicitando documentos que estejam em poder das partes, de terceiros ou em repartições públicas” (CPC artigo 473, § 3º).

É possível avaliar em perícia fatos pretéritos, o comportamento da vítima ou de cujus, seus familiares e a dinâmica familiar e social, o estado mental, o perfil psicológico e outros temas relacionados que auxiliarão o esclarecimento dos fatos, conjuntamente com outros aspectos da cognição processual probatória na instrução.

O STJ já admitiu a autópsia psicológica para “exame retrospectivo que busca compreender os aspectos psicológicos envolvidos em mortes não esclarecidas” [4]. Não é nosso objeto de estudo agora o processo penal, mas provas atípicas no CPP não são vedadas, assim como no Código de Processo Penal Militar, onde qualquer espécie de prova é admitida (artigo 295).

Destaca-se que no processo civil o assunto está positivado, pois (CPC artigo 369) “as partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz”.

Importante lembrar ao leitor que a máxima é que todo ato que restringe o uso dos meios probatórios deve ser reduzido [5] e a regra é “a admissibilidade da prova” [6]. Como já afirmamos, poderá a perícia de autópsia psicológica ser elemento para melhor apurar os fatos pretéritos e, assim, proporcionar melhor dilação probatória e, consequentemente, melhor fundamentação da sentença. Certamente, a autópsia psicológica deverá ser analisada não isoladamente, mas com outras provas do processo (sejam provas típicas ou não).

Por fim, e não menos importante, já que é esse o objeto de estudo meu e meu último livro publicado [7], penso que a prova de autópsia psicológica poderia ser deferida em produção antecipada da prova (CPC artigo 381) para o interessado melhor entender os fatos pretéritos e decidir se, com a prova pericial dos autos, justifica ou não ingressar com processo futuro (CPC artigo 381, III) ou, quem sabe, diante da prova dos autos, as partes façam autocomposição (CPC artigo 381, II) e evitem futuro processo.

 


[1] Não entraremos aqui no artigo sobre o mérito de ter ou não direito, o texto é apenas hipotético para fins de análise probatória (veja, bem resumido, rodapé abaixo sobre o tema).

[2] Veja que o tema é de importante discussão e foi, inclusive, sumulado pelo STJ Súmula 610 do Superior Tribunal de Justiça, editada em 2018 pela Segunda Seção, nos seguintes termos: “O suicídio não é coberto nos dois primeiros anos de vigência do contrato de seguro de vida, ressalvado o direito do beneficiário à devolução do montante da reserva técnica formada”. Após a edição (com alteração do antigo entendimento sumular em sentido diverso), sobreveio a publicação do julgamento do REsp 1.721.716/PR, em 17/12/2019, de relatoria da ministra Nancy Andrighi aplicado a modulação de efeitos da jurisprudência em caso ajuizado anteriormente ao divulgado novo precedente de superação que deu origem ao novo texto sumular (Súmula 610).

[3] Mais estudos sobre direito probatório em FUGA, Bruno Augusto Sampaio. Produção Antecipada da Prova: procedimento adequado para a máxima eficácia e estabilidade. Londrina: Thoth, 2023 e FUGA, Bruno Augusto Sampaio.  Estabilidade e eficácia probatória na produção antecipada da prova. Revista de Processo | vol. 338/2023 | p. 99 – 135 | Abr / 2023.

[4] HC 740.431-DF, rel. ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, por unanimidade, julgado em 13/9/2022, DJe 19/9/2022.

[5] Sobre o tema, Taruffo afirma que normas jurídicas que restringem o uso dos meios de prova devam ser reduzidas a um patamar mínimo. TARUFFO, Michele. A prova. Tradução João Gabriel Couto. 1. ed. São Paulo. Marcia Pons, 2014, p. 24.

[6] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista de Processo, 416/9, jun./1970; MOREIRA, José Carlos Barbosa. A constituição e as provas ilicitamente obtidas. In: Temas de Direito Processual. Sexta Série. Saraiva, São Paulo, 1997.

[7] FUGA, Bruno Augusto Sampaio. Produção Antecipada da Prova: procedimento adequado para a máxima eficácia e estabilidade. Londrina: Thoth, 2023

Autores

  • é advogado e professor, doutor em Direito Processual Civil pela PUC-SP (2020), pós-doutorando pela USP, membro titular efetivo da Academia de Letras de Londrina, mestre em Direito pela UEL (linha de Processo Civil), pós-graduado em Processo Civil (2009) e em Filosofia Jurídica e Política pela UEL (2011), ex-coordenador e fundador da Comissão de Processo Civil da OAB-Londrina (PR), ex-coordenador da pós-graduação em Processo Civil do IDCC Londrina (2018-2022), membro do IBPD, IAP e IPDP, conselheiro da OAB Londrina e editor chefe da Editora Thoth.

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