Opinião

Aferição da periculosidade para concessão de prisão preventiva

Autor

17 de julho de 2024, 6h38

Tramita no Congresso o Projeto de Lei (PL) nº 226 de 2024, de autoria do então senador Flávio Dino (PSB-MA), que altera o Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), para dispor sobre os critérios para aferição da periculosidade do agente, geradora de riscos à ordem pública, para concessão de prisão preventiva, inclusive quando da audiência de custódia.

“Art. 1º. O Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar com as seguintes alterações:

Art. 312. ………………………………………………………………………………………………….. ………………….

§3º. Devem ser considerados na aferição da periculosidade do agente, geradora de riscos à ordem pública:

I – o modus operandi, inclusive quanto ao uso reiterado de violência ou grave ameaça à pessoa; II – a participação em organização criminosa;

III – a natureza, quantidade e variedade de drogas, armas ou munições apreendidas;

IV – o fundado receio de reiteração delitiva, inclusive à vista da existência de outros inquéritos e ações penais em curso.

§4º. É incabível a decretação da prisão preventiva com base em alegações de gravidade abstrata do delito, devendo ser concretamente demonstrados a periculosidade do agente e seu risco à ordem pública, à ordem econômica, à regularidade da instrução criminal e à aplicação da lei penal, conforme o caso.

§5º. Os critérios a que se refere o §3º deste artigo serão obrigatoriamente analisados na audiência de custódia, de modo fundamentado, antes do deferimento de liberdade provisória ou de prisão preventiva.” (NR)

Das justificativas

Em apertada síntese, o autor do PL apresenta as seguintes justificativa:

Não obstante os parâmetros já trazidos pela legislação processual penal, há controvérsias quanto à aferição da periculosidade. Desse modo, por meio do projeto de lei em comento, objetiva-se especificar mais claramente o que poderá ser considerado pela autoridade julgadora na aferição dos riscos à ordem pública e na apreciação da periculosidade do imputado; 2. No que tange aos critérios para aferição da periculosidade do imputado, sugere-se que sejam considerados o modus operandi do agente, a eventual participação em organização criminosa, a natureza, quantidade e variedade de drogas, armas e munições apreendidas (quando couber), bem como o fundado receio de reiteração delitiva; 3. o projeto pretende balizar a análise dos casos de conversão de prisão em flagrante em prisão preventiva quando das audiências de custódia. Almeja-se evitar a análise superficial ou “mecânica” dos requisitos, o que gera agudos questionamentos sociais e institucionais, sobretudo quando as mesmas pessoas são submetidas a sucessivas audiências de custódia e daí resultam deferimentos “automáticos” de seguidas liberdades provisórias, impactando negativamente no resultado útil da atividade policial.

Da prisão preventiva

De início é imprescindível deixar assentado que a prisão preventiva é medida de exceção e extremada. Como tal, somente deve ser decretada em casos excepcionais e, mesmo assim, quando não há outra medida de caráter menos aflitivo para substituí-la (Lei nº 12.403/11). Diante do princípio constitucional da presunção de inocência, a prisão preventiva como qualquer outra medida cautelar pessoal não pode e não deve ter um caráter de satisfatividade, ou seja, não pode se transformar em antecipação da tutela penal ou execução provisória da pena. Neste sentido já decidiu o Supremo Tribunal Federal:

“A Prisão Preventiva – Enquanto medida de natureza cautelar – Não tem por objetivo infligir punição antecipada ao indiciado ou ao réu. – A prisão preventiva não pode – e não deve – ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão preventiva – que não deve ser confundida com a prisão penal – não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal.” (RTJ 180/262-264, relator ministro Celso de Mello)

Daí a clara advertência do STF, que tem sido reiterada em diversos julgados, no sentido de que se revela absolutamente inconstitucional a utilização, com fins punitivos, da prisão cautelar, pois esta não se destina a punir o suspeito, o indiciado ou o réu, sob pena de manifesta ofensa às garantias constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal, com a consequente (e inadmissível) prevalência da ideia — tão cara aos regimes autocráticos — de supressão da liberdade individual, em um contexto de julgamento sem defesa e de condenação sem processo (HC 93.883/SP, relator ministro Celso de Mello).

O projeto de lei aqui apresentado despreza que o próprio Código de Processo Penal em seu artigo 312 prevê hipóteses de decretação da prisão preventiva já bastante amplas e mais do que suficiente para o que se pretende.

Não é despiciendo salientar que, segundo dados da 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022 o número de presos provisórios, aguardando julgamento, ultrapassa 210 mil do total de mais de 830 mil presos (terceira maior população carcerária do planeta).

Como se trata de prisão sem pena e, portanto, sem que tenha sido o agente condenado por sentença definitiva, a prisão provisória, seja ela preventiva ou de qualquer outra modalidade, deve sempre ser evitada e, tão somente, decretada ou mantida em casos de extrema necessidade posto que, como já foi dito, ainda não foi o acusado condenado em definitivo.

Gostem ou não, está assentado que no sistema processual pátrio o status libertaris (estado de liberdade) é a regra e a prisão provisória a exceção. Nunca é demais lembrar que a Constituição da República (CR) abriga o princípio da presunção de inocência segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (artigo 5º, LVII).

Da ordem pública

Dentre as justificativas ao PL encontra-se o que “poderá ser considerado pela autoridade julgadora na aferição dos riscos à ordem pública…”. Assim, necessário uma breve análise sobre este fundamento para decretação da prisão preventiva.

Luiz Silveira/Agência CNJ

Hodiernamente, tem sido recorrente motivar a decretação da prisão preventiva com base no mais deplorável de todos os fundamentos previstos no Código de Processo Penal (CPP): a “garantia da ordem pública”. Atrelado a este fundamento, costuma-se aludir ao “sentimento de impunidade e de insegurança na sociedade“.

Primeiramente é necessário assentar que dos fundamentos previstos no Código de Processo Penal para a decretação da prisão preventiva, a “garantia ordem pública” é sem dúvida o mais questionável, criticável, vago e impreciso de todos e, também, de duvidosa constitucionalidade para ensejar medida cautelar extrema.

Aury Lopes Júnior destaca que o conceito de “garantia da ordem pública” por se tratar de um conceito vago e indeterminado, serve a “qualquer senhor, diante da maleabilidade conceitual”. Mais adiante, o processualista informa que a origem do referido fundamento remonta a Alemanha na década de 30, período em que o nazifascismo buscava “uma autorização geral e aberta para prender[1].

Quanto ao “fundado receio de reiteração delitiva” a que se refere o PL, trata-se, na verdade, de um exercício de adivinhação já que nem o maior dos futurólogos ou o melhor dos videntes é capaz de dizer, ainda que com base no questionável e indeterminado conceito de periculosidade, se uma pessoa irá delinquir no futuro.

Melhor faria o Supremo Tribunal Federal se declarasse, de uma vez por todas, a inconstitucionalidade da decretação da prisão preventiva fundamentada pela “garantia da ordem pública” e por qualquer outro fundamento análogo.

Da periculosidade

O PL 226/2024 dispõe, também, “sobre os critérios para aferição da periculosidade do agente, geradora de riscos à ordem pública, para concessão de prisão preventiva, inclusive quando da audiência de custódia”.

Deve-se à Escola Positivista italiana, inaugurada por Lombroso em 1876, quando foi publicada a primeira edição de L’uomo delinqüente [2], bem como a Ferri e Garófalo , o pioneirismo no estudo do homem criminoso.

Foram os positivistas que procuraram as diferenças entre o homem delinquente ou anormal e o homem não-delinquente ou normal. Embora cada um desses autores tenha apresentado seu próprio enfoque, trilhando distintos caminhos na fundamentação de suas teses.

Contudo, deve-se a Garófalo (1851-1934) a primeira tentativa de sistematização jurídica da perigosidade criminal. O crime para Garófalo, “está sempre no indivíduo e é revelação de uma natureza degenerada, quaisquer que sejam as causas, antigas ou recentes, dessa degeneração”. Para o citado autor, a “temibilidade”, posteriormente designada como “perigosidade criminal”, com o seu caráter de probabilidade de delinquir, constitui grave ameaça e lei penal da qual decorre a necessidade social de defesa [3].

Verifica-se, portanto, que a periculosidade é um juízo de probabilidade de que novos crimes sejam praticados. Um juízo sobre o comportamento futuro do agente, constituindo-se uma verdadeira “ficção jurídica”, posto que não existe fórmula positiva ou científica para determinar a periculosidade do indivíduo. Assim, ao juízo de culpabilidade, em razão de sua própria natureza, deve ser dado apenas um valor relativo [4].

No que pese todos os estudos a respeito, “é possível afirmar que nem a Biologia, nem a Sociologia, nem a Psicologia se acham em condições de fundamentar teoricamente um prognóstico da periculosidade…” [5].

Assim, por se tratar de um conceito vago, indeterminado, carregado de subjetividade e sem qualquer comprovação cientifica, é que a denominada personalidade perigosa – periculosidade – torna-se imprestável para o direito penal e processual penal.

Por tudo que foi exposto, notadamente, por se basear em conceitos sem qualquer valor científico, de viés autoritário e arbitrário, com atropelo dos princípios e garantias fundamentais — especialmente o da presunção de inocência e do direito penal do fato —, entende-se que o Projeto de Lei nº 226, de 2024 de autoria do então senador Flávio Dino e de relatoria do senador Sergio Moro deve ser rejeitado.

 


[1] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional, v. II. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 109.

[2]  LOMBROSO, César. O homem delinquente. tradução, atualização, nota e comentários. Maristela Bleggi Tomasini e Oscar Antonio Corbo Garcia. Porto Alegre. Ricardo Lenz, 2001.

[3] BRUNO, Aníbal. Direito penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, t. I, p.105-107.

[4] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Sistema do duplo binário: vida e morte. In: Studi in memoria de Giacomo Delitala: volume 3. Milano; Dott A. Giuffrè, p. 1907-1930. 1984.

[5] BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. Florianópolis: Obra Jurídica, 1988, p.138.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!