Opinião

Para além da formalidade: necessidade da correta autuação da guia de execução penal

Autor

15 de julho de 2024, 19h34

A execução penal é um processo cujo início é claramente definido, mas o desfecho pode ser incerto e prolongado. Quando um indivíduo é condenado a cumprir uma pena de cinco anos em regime semiaberto, existe a expectativa de que ele cumpra esse período específico. No entanto, a realidade pode ser bem mais complexa.

Luiz Silveira/Agência CNJ

Caso o condenado cometa outro delito, seja durante o cumprimento da pena na prisão, durante uma saída temporária ou mesmo em regime aberto, a pena inicial pode ser estendida consideravelmente. Assim, o que inicialmente era uma pena de cinco anos pode se transformar em 10, 15 ou até 40 anos ininterruptos, dependendo da gravidade e frequência das novas infrações.

Não sabendo quando ela terminará, é importante zelar pelo correto trâmite da execução penal desde o seu início, no momento mesmo da expedição pelo juízo de conhecimento da guia de execução penal.

A guia de execução penal é um documento formal expedido pelo magistrado que prolatou a sentença condenatória de um indivíduo por um delito. Este documento funciona como o ponto de partida para todo o processo de execução penal, incorporando as informações indispensáveis para que o apenado cumpra sua punição em conformidade com a legislação vigente.

Também chamada de guia de recolhimento, era utilizada na época do Império para determinar a quantidade de açoites aos quais ficavam os escravizados submetidos por determinação de seus senhores, num tempo em que o poder público se reportava ao senhor de escravos para fins de gradação das punições. (ROIG, p. 32).

Sendo um resumo do processo, a guia de execução possui documentos que a acompanharão e que lhe são essenciais, todos eles elencados no artigo 1º da resolução 113/2010 do Conselho Nacional de Justiça, que assim dispõe:

Art. 1º A sentença penal condenatória será executada nos termos da Lei 7.210, de 11 de julho de 1984, da lei de organização judiciária local e da presente Resolução, devendo compor o processo de execução, além da guia, no que couber, as seguintes peças e informações:

I – qualificação completa do executado;

II – interrogatório do executado na polícia e em juízo;

III – cópias da denúncia;

IV – cópia da sentença, voto(s) e acórdão(s) e respectivos termos de publicação, inclusive contendo, se for o caso, a menção expressa ao deferimento de detração que importe determinação do regime de cumprimento de pena mais benéfico do que seria não fosse a detração, pelo próprio juízo do processo de conhecimento, nos termos do art. 387, § 2º, do Código de Processo Penal, acrescentado pela Lei 12.736/12; (Redação dada pela Resolução nº 180, de 03.10.13)

V – informação sobre os endereços em que possa ser localizado, antecedentes criminais e grau de instrução;

VI – instrumentos de mandato, substabelecimentos, despachos de nomeação de defensores dativos ou de intimação da Defensoria Pública;

VII – certidões de trânsito em julgado da condenação para a acusação e para a defesa;

VIII – cópia do mandado de prisão temporária e/ou preventiva, com a respectiva certidão da data do cumprimento, bem como com a cópia de eventual alvará de soltura, também com a certidão da data do cumprimento da ordem de soltura, para cômputo da detração, caso, nesta última hipótese, esta já não tenha sido apreciada pelo juízo do processo de conhecimento para determinação do regime de cumprimento de pena, nos termos do art. 387, § 2º, do Código de Processo Penal, acrescentado pela Lei 12.736/12; (Redação dada pela Resolução nº 180, de 03.10.13)

IX – nome e endereço do curador, se houver;

X – informações acerca do estabelecimento prisional em que o condenado encontra-se recolhido e para o qual deve ser removido, na hipótese de deferimento de detração que importe determinação do regime de cumprimento de pena mais benéfico do que haveria não fosse a detração, pelo próprio juízo do processo de conhecimento, nos termos do art. 387, § 2º, do Código de Processo Penal, acrescentado pela Lei 12.736/12; (Redação dada pela Resolução nº 180, de 03.10.2013)

XI – cópias da decisão de pronúncia e da certidão de preclusão em se tratando de condenação em crime doloso contra a vida;

XII – certidão carcerária;

XIII – cópias de outras peças do processo reputadas indispensáveis à adequada execução da pena.

Aqueles que são mais experientes na área da execução penal reconhecerão que cada peça elencada em tal resolução pode ser crucial para correta análise processual na fase executória da pena, por vezes, anos depois de iniciada a execução da pena.

É o caso, por exemplo, da unificação das penas pelo juízo da execução penal, nos termos do artigo 66, III, ‘b’ da Lei de Execuções Penais, que não se confunde com o mero somatório das penas impostas.

Quando uma pessoa recebe várias sentenças condenatórias em casos relacionados, mas os processos não foram unificados em uma única ação penal pelo juiz responsável, serão emitidas várias guias de recolhimento. Nesse caso, cabe ao Juízo da Eexecução Penal unificar as penas aplicadas. A unificação de penas ocorre quando várias sentenças foram proferidas e a execução separada delas violaria as normas sobre o concurso de crimes. Essa unificação concretiza, na execução, a unidade estabelecida pela lei penal para penas de crimes praticados em concurso. Assim, quando há duas ou mais condenações por concurso formal, crime continuado, erro na execução ou resultado diverso do pretendido, o juiz da execução penal efetuará a unificação das penas impostas em processos diferentes.

Spacca

O Superior Tribunal de Justiça tem jurisprudência consolidada a respeito da competência do Juízo da execução penal para análise de eventual unificação de penas, pois “compete ao Juízo das Execuções Penais a unificação das penas, assim como a verificação da continuidade delitiva, dos processos que, a despeito de conexos, tramitaram separadamente com prolação de sentenças diversas” (REsp 783.553/RS, relator ministro Felix Fischer, 5ª Turma, julgado em 09/05/2006, DJ 26/06/2006, p. 195).

CRIME TRIBUTÁRIO. TIPICIDADE. ABSOLVIÇÃO. REEXAME DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. ÓBICE DA SÚMULA N. 7/STJ. VÁRIAS

CONDUTAS DELITIVAS. AÇÕES PENAIS EM FASES DISTINTAS. ANÁLISE DE CONTINUIDADE DELITIVA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DAS EXECUÇÕES. INSURGÊNCIA DESPROVIDA.

(…)

A eventual existência de crime continuado inviabiliza a reunião de ações que se encontrem em etapas diversas, como na espécie, devendo a questão ser submetida ao crivo do Juízo das Execuções, a quem compete decidir acerca da soma ou unificação das penas decorrentes dos processos deflagrados contra o insurgente. 6. Agravo regimental desprovido”. (AgRg no REsp 1630819/SC, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 14/09/2017, DJe 20/09/2017)

“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. APROPRIAÇÃO INDÉBITA. RECONHECIMENTO DA CONTINUIDADE DELITIVA EM RELAÇÃO AOS DELITOS DA MESMA ESPÉCIE APURADOS EM PROCESSOS EM TRÂMITE. SENTENÇA CONDENATÓRIA PROFERIDA. FASES DIVERSAS. PRETENSÃO A SER ANALISADA POSTERIORMENTE PELO JUÍZO DA VARA DE EXECUÇÕES CRIMINAIS. 1. Inviável, neste momento processual, o reconhecimento da continuidade delitiva entre o crime de apropriação indébita objeto do presente feito (já sentenciado) e os delitos de mesma espécie apurados em diversos processos criminais em trâmite na origem. 2. Eventual unificação de penas decorrente do reconhecimento de continuidade delitiva, a despeito de ensejar o exame aprofundado do material fático-probatório, vedado em recurso especial, a teor da Súm. n. 7/STJ, poderá ser determinada pelo Juízo das Execuções Penais, nos termos do art. 66, inciso III, da LEP. 3. Agravo regimental a que se nega provimento”. (AgRg no AREsp 1075970/DF, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 08/08/2017, DJe 23/08/2017).

SENTENÇA CONDENATÓRIA PROFERIDA. FASES DIVERSAS. PRETENSÃO A SER ANALISADA POSTERIORMENTE PELO JUÍZO

DA VARA DE EXECUÇÕES CRIMINAIS. 1. Inviável, neste momento processual, o reconhecimento da continuidade delitiva entre o crime de apropriação indébita objeto do presente feito (já sentenciado) e os delitos de mesma espécie apurados em diversos processos criminais em trâmite na origem. 2. Eventual unificação de penas decorrente do reconhecimento de continuidade delitiva, a despeito de ensejar o exame aprofundado do material fático-probatório, vedado em recurso especial, a teor da Súm. n. 7/STJ, poderá ser determinada pelo Juízo das Execuções Penais, nos termos do art. 66, inciso III, da LEP. 3. Agravo regimental a que se nega provimento”. (AgRg no AREsp 1075970/DF, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 08/08/2017, DJe 23/08/2017).

Além da possibilidade de unificação das penas, diversos incidentes como análise de prescrição, revisão criminal, correta aplicação da detração, indulto, comutação de penas, prisão domiciliar, progressão de regime especial para mulheres, entre outros, poderiam ser prejudicados pela ausência de documentos básicos expedidos pelo juízo sentenciante.

Portanto, é imprescindível que a guia de execução penal seja autuada com toda a documentação exigida pela Resolução 113/2010 do CNJ. A falta desses documentos poderia resultar na impossibilidade do Juízo da Execução Penal de julgar, inviabilizando a entrega da prestação jurisdicional. Isso iria de encontro ao artigo 5º, XXXV, da Constituição, que garante que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

No caso de encaminhamento da guia de execução penal sem os documentos exigidos pela mencionada resolução, é dever imediato do Ministério Público, do advogado ou defensor público, do juiz, e até mesmo da pessoa reclusa ou seus familiares, requererem do Juízo sentenciante o envio das peças faltantes para a correta instrução do processo de execução penal. A princípio, esse procedimento pode parecer trivial, uma formalidade sem importância, mas não é.

A prática demonstra que anos após o início da execução da pena, a falta desses documentos pode ser crucial para uma análise precisa do processo de execução penal. Dependendo do tribunal responsável, o desarquivamento de um processo e o envio das peças podem ser demorados e prejudiciais, especialmente diante do grande volume de processos de pessoas cumprindo pena.

_____________________________________

Referências bibliográficas

CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Resolução 113/2010. Disponível em https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/136

ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Direito e Prática Histórica da Execução Penal no Brasil. 2005. Ed. Revan.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!