Opinião

O debate sobre a repressão ao aumento abusivo de preços nos EUA

Autores

  • Amanda Athayde

    é professora doutora adjunta de Direito Empresarial de Concorrência Comércio Internacional e Compliance na Universidade de Brasília (UnB) consultora no Pinheiro Neto Advogados nas práticas de Concorrencial Compliance e Comércio Internacional doutora em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP) ex-subsecretária de Defesa Comercial e Interesse Público (SDCOM) da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) do Ministério da Economia ex-chefe de Gabinete do Ofício do MPF junto ao Cade e do Gabinete da Superintendência-Geral do Cade coordenadora do Programa de Leniência Antitruste ex-analista de Comércio Exterior do Ministério de Desenvolvimento Indústria e Comércio (MDIC) cofundadora da rede Women in Antitrust (WIA) e idealizadora e entrevistadora do podcast Direito Empresarial Café com Leite.

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  • Milena Gomes

    é advogada atuante em Direito da Concorrência e Direito do Comércio Internacional em Pinheiro Neto Advogados e bacharel em Direito pela USP.

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15 de julho de 2024, 15h24

Em 29 de fevereiro de 2024, foi noticiada a retomada, nos Estados Unidos, de discussão legislativa sobre a repressão ao aumento abusivo de preços. Trata-se de proposta liderada por um grupo de senadores (composto por Bob Casey, Elizabeth Warren, Tammy Baldwin, Jan Schakowsky, entre outros) com o objetivo de criar uma normativa de repressão ao aumento abusivo de preços, principalmente em momentos de crise no mercado, chamada Price Gouging Act of 2024 [1]. O projeto de lei ainda precisa ser aprovado na Câmara e no Senado norte-americanos antes de poder ser promulgado como lei nos EUA.

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A proposta legislativa veio como uma resposta aos aumentos de preço observados ao longo da pandemia da Covid-19, que teriam sido praticados por diversas empresas, em proporções alegadamente superiores aos aumentos de custos sofridos por estas. Os senadores também mencionam que os aumentos de preços praticados na pandemia não teriam sido compensados com uma queda dos preços após o fim da crise sanitária, nem com a redução dos custos de produção dos diversos produtos afetados.

A proposta do Price Gouging Act of 2024 prevê que o aumento abusivo de preços seja proibido em âmbito nacional, de modo a permitir que a Federal Trade Commission (FTC) e procuradores de todos os estados dos EUA possam aplicar a legislação independentemente de onde ocorra a venda do produto afetado. A aplicação da legislação de coibição do aumento abusivo de preços ainda seria aplicável a todas as empresas, independentemente do nível da cadeia de produção e fornecimento em que o produto está inserido.

Visando a diferenciar a condição de empresas dominantes de pequenas empresas, a proposta prevê uma exceção da aplicação da legislação para empresas com faturamento inferior a US$ 100 milhões, que demonstrem que o seu aumento de preços, em momentos de crises no mercado, foi legítimo e acompanhado por um aumento de seus custos. Por outro lado, para as empresas dominantes que aumentarem seus preços e seus lucros durante momentos de crise do mercado, haverá uma presunção refutável de aumento abusivo de preços.

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Outras frentes de atuação da proposta repousam na exigência da divulgação de informações sobre custos e estratégias de preços por empresas de capital aberto, em períodos de crise no mercado. A proposta também prevê um financiamento adicional (de cerda de US$ 1 bilhão) destinado ao FTC para conduzir suas atividades de fiscalização e punição ao ilícito.

Repercussão no Brasil

Essa movimentação de repressão à prática do aumento abusivo de preços, nos EUA, instiga a discussão sobre o tratamento dado à mesma conduta no sistema brasileiro. Recorde-se que o artigo 36 da Lei nº 12.529/2011, Lei de Defesa da Concorrência, determina que aumentar arbitrariamente os lucros pode constituir infração da ordem econômica, independentemente de culpa, caso os atos sob qualquer forma manifestados tenham por objeto ou possam produzir tal efeito, ainda que não sejam alcançados (artigo 36, caput, inciso III).

Conforme observado em outro artigo escrito pelos mesmos três autores deste artigo [2], o aumento abusivo de preços tem encontrado embargos legislativos e fáticos para ser considerado uma conduta anticompetitiva autônoma, e não tem recebido grande interesse por parte da autoridade antitruste brasileira — o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

Ao tratar previamente sobre a temática, o Cade diferenciou duas formas de aumento abusivo de preços: (1) prática de preços exploratórios – geralmente resultantes do exercício do poder de mercado por parte de empresas dominantes; e (2) a prática de preços excludentes – aplicados exclusivamente por empresas verticalmente integradas com o objetivo de eliminar concorrentes do mercado [3].

A partir dessa divisão, o Cade tem se posicionado no sentido de reconhecer um maior potencial ofensivo da prática de preços excludentes, de modo a concentrar seus esforços para somente coibir essa prática.

Em relação aos (1) preços exploratórios, a autoridade brasileira expressamente afirma que qualquer análise da prática de preços excessivos pressuporia uma determinação sobre o “preço justo” dos produtos [4]. Ainda, segundo a autoridade, esse exame demandaria extremo ônus de conhecimento e monitoramento do mercado envolvido, o que acabaria inviabilizando a eficácia de qualquer tentativa de atuação do Cade na adequada repressão aos preços exploratórios. Trata-se de posicionamento totalmente distinto daquele intencionado pelo Price Gouging Act of 2024, no qual o objetivo parece ser justamente a repressão ao aumento de preços exploratórios.

A oposição da proposta norte-americana com o posicionamento da autoridade antitruste brasileira é ainda mais evidente quando se retoma que a origem do Price Gouging Act of 2024 foi a prática de preços exorbitantes durante a pandemia de covid-19. Isso, porque, perante a mesma provocação sobre o aumento abusivo de preços durante a Covid-19, o Cade apenas reforçou sua posição de não apreciar casos envolvendo preços exploratórios como uma conduta anticompetitiva autônoma.

Arquivamento

Faz-se referência, por exemplo, ao procedimento preparatório de inquérito administrativo, instaurado em março de 2020 pelo Cade, o qual tinha como objetivo a apuração de eventual aumento de preços e lucros de forma arbitrária ou abusiva por empresas no setor de saúde [5]. Após rodadas de ofícios para empresas do setor de saúde – como, hospitais, laboratórios, farmácias, distribuidores e fabricantes de máscaras cirúrgicas, álcool em gel, fabricantes de medicamentos para tratamento dos sintomas da covid-19 –, a Superintendência-Geral do Cade proferiu a Nota Técnica nº 19/2022/CGAA2/SGA1/SG/Cade, opinando pela ausência de indícios suficientes de infração à ordem econômica e determinando o arquivamento do caso.

Na oportunidade, a Superintendência-Geral se posicionou sobre a atuação do Cade para o controle de preços exploratórios. Nos termos da referida nota técnica:

“Entende-se que o foco da política antitruste está no processo competitivo de cada mercado, de modo que o preço resultante representa o efeito dessa dinâmica. Nessa esteira, um aumento excessivo de preço ou o preço excessivo per se não pode ser considerado, isoladamente, uma prática lesiva à concorrência. Eles o serão caso decorram de infração à ordem econômica ou se forem aptos a causar efeito anticompetitivo” [6].

Desse histórico, parece-nos que uma proposta como Price Gouging Act of 2024 norte-americano não interessaria à autoridade concorrencial brasileira – ao menos nos moldes pretendidos pelos legisladores proponentes. Ao contrário do que a proposta do Price Gouging Act of 2024 pretende, a ilicitude de preços ditos como abusivos não poderá somente ser presumida – hipótese aplicável a empresas dominantes que aumentarem seus preços e seus lucros durante momentos de crise do mercado –, como deverá ser acompanhada de evidências de outras infrações à ordem econômica ou de efeitos anticompetitivos no mercado.

Por sua vez, sobre (2) preços abusivos excludentes, cumpre detalhar que tendem a ser condutas praticadas por empresas verticalmente integradas e realizadas com o intuito de excluir ou impedir a entrada de um competidor do mercado – conforme precedentes no Cade [7]. Por sua definição e natureza, a prática de preços excludentes, para se configurar, tende a estar associada à prática de outras infrações à ordem econômica – como, políticas de descontos exclusivas, discriminação de preços, prática de preços predatórios, restrição de acesso a essential facilities.

Viés consumerista

Por fim, antes que se conclua que o ordenamento brasileiro não está atento à prática de preços abusivos no mercado de nenhum modo, cumpre retomar que a prática de preços abusivos também é cabível de repressão na seara consumerista, nos termos do artigo 39, inciso X, do Código de Defesa do Consumidor.

Sobre o tratamento do abuso de preços na seara consumerista, faz-se oportuno retomar o trabalho conduzido pela Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça (Senacon), após incitada a se manifestar sobre a prática de preços abusivos durante a pandemia da covid-19. O entendimento da Senacon foi expresso na Nota Técnica nº 8/2020/CGEMM/DPDC/Senacon/MJ, por meio da qual a secretaria orientou que a análise de aumento abusivo de preços deveria contar com análises de choque de oferta e demanda, bem como apuração de eventual “justa causa” para os aumentos de preço [8].

Ademais, além da atuação das previsões legais vigentes e da atuação da autoridade consumerista, também é digno de nota o projeto de lei apresentado pelo senador Angelo Coronel, que prevê a alteração do Código de Defesa do Consumidor e do Código Penal para tipificar como crime a elevação de preços de produtos e serviços médico-hospitalares, sem justa causa, em época de emergência social, calamidade pública ou pandemia. Tramitando como Projeto de Lei nº 768/2020, o texto foi aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania em maio de 2022, mas ainda precisa ser aprovado pelas duas casas do Congresso Nacional e passar pela sanção presidencial [9].

De fato, trata-se de projeto de lei muito semelhante à proposta do Price Gouging Act of 2024, por procurar enfrentar preços excessivos em momentos de crise e atipicidade do mercado. No entanto, novamente se nota o enfrentamento da questão pelo âmbito do Direito Consumerista, não pela ótica concorrencial.

Assim, discussões recentes nos Estados Unidos nos permitem refletir e reforçar que a temática do aumento abusivo de preços é enfrentada no Brasil por um viés muito mais consumerista do que concorrencial, tanto em razão dos dispositivos legais existentes quanto em razão da atuação das autoridades competentes em cada seara (Cade e Senacon).

 


[1] A proposta do Price Gouging Act of 2024 está disponível em: https://schakowsky.house.gov/sites/evo-subsites/schakowsky.house.gov/files/evo-media-document/Price%20Gouging%20Prevention%20Act%202024%20One-Pager.pdf

[2] Medrado, Renê; Athayde, Amanda; Lopes, Milena. Games e Antitruste: interfaces recentes com desdobramentos no Brasil? (26.9.2022). Conjur – Consultor Jurídico: Opinião (2022). Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-set-24/opiniao-games-antitruste-desdobramentos-brasil. Acesso em 4.3.2024.

[3] Como exemplo, menciona-se: (i) Procedimento Preparatório nº 08700.007937/2014-34. Representante: André de Seixas Ponce Alves. Representados: Libra Terminais Rio S.A, Libra Terminais S.A., Libra Holding S.A., Portonave S.A. e Associação Brasileira dos Terminais Portuários (ABTP). Nota Técnica nº 06/2015/CGAA4/SGA1/SG/Cade, parágrafos 36 e 37, de 11.6.2015. SEI nº 0071050; (ii) Procedimento Preparatório nº 08700.002765/2016-74. Representada: Petróleo Brasileiro S.A. Nota Técnica nº 4/2017/CGAA4/SGA1/SG/Cade, parágrafo 11, de 9.2.2017. SEI nº 0301059; (iii) Processo nº 08700.001571/2022-08. Representada: MC BRAZIL DOWNSTREAM PARTICIPAÇÕES S.A. (Acelen). Nota Técnica nº 4/2022/CGAA4/SGA1/SG/Cade, parágrafo 16, de 20.5.2022. SEI nº 1035070.

[4] O próprio Cade divulga esse entendimento em página de seu site contendo informações sobre as infrações à ordem econômica.  Disponível em: <https://www.gov.br/cade/pt-br/acesso-a-informacao/perguntas-frequentes/perguntas-sobre-infracoes-a-ordem-economica>. Acesso em 4.3.2024.

[5] Procedimento Preparatório nº 08700.001354/2020-48. Representante: CadeEx-officio. Representados: Empresas dos mercados hospitalar, farmacêutico, distribuição de materiais hospitalares, medicamentos e afins. Despacho da Superintendência-Geral de Instauração de Procedimento Preparatório nº 19/2020, de 18.3.2020. SEI nº 0733096.

[6]      Idem, Nota Técnica nº 19/2022/CGAA2/SGA1/SG/Cade, de 26.5.2022. SEI nº 1068749.

[7]      Vide precedentes listados na nota de rodapé nº 3.

[8]      Processo nº 08012.000637/2020-21, Nota Técnica nº 8/2020/CGEMM/DPDC/SENACON/MJ. Disponível em: <https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seus-direitos/consumidor/notas-tecnicas/anexos/nota-tecnica-no-8-2020.pdf >. Acesso em 4.3.2024.

[9]      A situação do Projeto de Lei nº 768/2020 pode ser consultada em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141121>. Acesso em 4.3.2024.

Autores

  • é professora doutora da Universidade de Brasília (UnB), advogada especialista nas áreas de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, Comércio Internacional, Defesa Comercial e Interesse Público, Compliance, Anticorrupção, Acordos de Leniência e Negociação de Sanções, consultora no Pinheiro Neto Advogados, doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em Administração de Empresas com habilitação em Comércio Exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I – Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros, cofundadora da rede Women in Antitrust (WIA) e idealizadora e entrevistadora do podcast Direito Empresarial Café com Leite.

  • é advogada atuante em Direito da Concorrência e Direito do Comércio Internacional em Pinheiro Neto Advogados e bacharel em Direito pela USP.

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