Processo Tributário

Efeitos da indisponibilidade genérica prevista no artigo 185-A do CTN

Autor

  • Maria Florencia Silva

    é mestre em Direito pela PUC-SP professora do Ibet pesquisadora do Grupo de Estudos Processo Tributário Analítico do Ibet e procuradora do estado do Amazonas.

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14 de julho de 2024, 8h00

O direito de propriedade é uma garantia fundamental prevista no artigo 5º, XXII da Constituição de 1988, que confere ao proprietário o uso e gozo do bem que lhe pertence, podendo transmiti-lo a terceiro, caso queira.

Entretanto, não se trata de um direito pleno, pois o próprio ordenamento jurídico prevê hipóteses que modificam ou limitam o direito de dispor da propriedade, observado o devido processo legal em seu dúplice aspecto, substancial e processual (artigo 5º LIV, da CF/1988).

Um dos meios limitadores desse direito é a sua indisponibilidade, consagrado como um instrumento processual que impede que o titular transfira ou onere seu patrimônio, providência essa, contudo, que definitivamente não priva o titular de seu domínio, apenas restringe o exercício de alguns dos direitos inerentes à propriedade.

A indisponibilidade é autorizada normativamente, como medida excepcional, cujo objetivo é evitar que o devedor venha a dilapidar seu patrimônio comprometendo o pagamento dos credores.

Embora presente em diversas legislações especiais, não existe um regramento processual geral acerca do instituto [1].

Lei nº 8.397

Em matéria tributária, inicialmente veio prevista na Lei n° 8.397 que instituiu a medida cautelar fiscal, instrumento no qual já se permitia desde 1992 a possibilidade de concessão de medida liminar de indisponibilidade de bens e direitos em favor da fazenda pública, desde que houvesse prova literal da constituição do crédito (ressalvados alguns casos específicos em que se permitia o pedido no seu curso), somada à demonstração dos requisitos previstos no artigo 2° da citada lei, a saber:

“Art. 2º A medida cautelar fiscal poderá ser requerida contra o sujeito passivo de crédito tributário ou não tributário, quando o devedor:

I – sem domicílio certo, intenta ausentar-se ou alienar bens que possui ou deixa de pagar a obrigação no prazo fixado;

II – tendo domicílio certo, ausenta-se ou tenta se ausentar, visando a elidir o adimplemento da obrigação;

III – caindo em insolvência, aliena ou tenta alienar bens que possui; contrai ou tenta contrair dívidas extraordinárias; põe ou tenta pôr seus bens em nome de terceiros ou comete qualquer outro ato tendente a frustrar a execução judicial da Dívida Ativa;

III – caindo em insolvência, aliena ou tenta alienar bens;

IV – notificado pela Fazenda Pública para que proceda ao recolhimento do crédito fiscal vencido, deixa de pagá-lo no prazo legal, salvo se garantida a instância em processo administrativo ou judicial;

IV – contrai ou tenta contrair dívidas que comprometam a liquidez do seu patrimônio;

V – possuindo bens de raiz, intenta aliená-los, hipotecá-los ou dá-los em anticrese, sem ficar com algum ou alguns, livres e desembaraçados, de valor igual ou superior à pretensão da Fazenda Pública.

V – notificado pela Fazenda Pública para que proceda ao recolhimento do crédito fiscal:

a) deixa de pagá-lo no prazo legal, salvo se suspensa sua exigibilidade;

b) põe ou tenta por seus bens em nome de terceiros;

VI – possui débitos, inscritos ou não em Dívida Ativa, que somados ultrapassem trinta por cento do seu patrimônio conhecido;

VII – aliena bens ou direitos sem proceder à devida comunicação ao órgão da Fazenda Pública competente, quando exigível em virtude de lei;

VIII – tem sua inscrição no cadastro de contribuintes declarada inapta, pelo órgão fazendário;

IX – pratica outros atos que dificultem ou impeçam a satisfação do crédito.”

O artigo 185-A do CTN

No contexto do conflito tributário, tal providência ganhou reforço com a inserção do artigo 185-A [2] ao Código Tributário Nacional, pela Lei Complementar 118/2005, o qual exige o preenchimento dos seguintes requisitos para concessão da indisponibilidade: prévia citação do executado, ausência de pagamento, não oferecimento de garantia ou tentativa infrutífera de localização de bens penhoráveis por parte da Fazenda credora.

A exigência de prévia citação do devedor garante que a decretação da indisponibilidade não seja uma surpresa para o executado, concretizando o pilar processual da não prolação de decisões surpresa (artigo 9º[3] do Código de Processo Civil de 2015), diante da sua inércia em oferecer garantia.

Exige o CTN também a comprovação do prévio esgotamento das diligências ordinárias em busca de bens penhoráveis, mediante o resultado negativo do Sisbajud, da pesquisa cartorária no domicílio do executado e de veículos no Detran e Denatran, conforme decidido pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 1.377.507/SP julgado sob o rito repetitivo sob relatoria do Ministro Og Fernandes.

Perfectibilizadas as referidas condições, a indisponibilidade deve ser deferida e ela perdurará até que haja o pagamento integral do valor devido, seja oferecida alguma garantia ou proferida decisão revogando a medida.

Efeitos

Diante do objeto temático do presente artigo deteremos nossa atenção sobre os efeitos irradiados pela averbação da indisponibilidade, a fim de deixar claro em que medida impacta no direito de propriedade.

O primeiro efeito diz respeito à questão temporal, pois os atos praticados após o gravame da indisponibilidade são nulos, não produzindo qualquer efeito contra terceiros.

Entretanto, não se pode olvidar que aqueles praticados antes da decretação da indisponibilidade, por sua vez, serão tidos por nulos se o negócio jurídico tiver sido celebrado depois da inscrição do débito em dívida ativa ou após a citação dos sócios (estando-se diante de redirecionamento da execução fiscal), em razão do que determina o artigo 185 do CTN [4].

Se a decisão que decretou a indisponibilidade for revogada, o bem poderá ser transferido e o negócio jurídico produzirá seus efeitos regulares.

Outro efeito: a indisponibilidade de bens ou direitos do executado não impede que o bem seja penhorado ou adjudicado, pois sua finalidade é apenas impedir que o proprietário transfira seu patrimônio, voluntariamente, comprometendo o pagamento dos credores [5].

Tal efeito não prejudica a posse e o usufruto do bem ou direito, mantidos intactos enquanto não forem penhorados e expropriados judicialmente, ficando apenas bloqueada a alienação ou oneração, de forma voluntária.

Limite

Assim, embora constitua um óbice à plena disposição do patrimônio por vontade do devedor, já que se alienado sem autorização judicial a venda tornar-se-á sem efeito, essa restrição não recai de forma plena sobres os direitos de propriedade, pois a posse, o gozo e o usufruto são conservados.

A indisponibilidade dos bens e direitos é limitada ao valor total exigível (crédito tributário, honorários advocatícios e demais encargos) objeto do processo judicial em que a medida foi concedida, cabendo ao juízo determinar o imediato levantamento da restrição sobre o excedente. Os órgãos e entidades recebedores das ordens deverão enviar ao juízo, imediatamente, a relação discriminada dos bens e direitos cuja indisponibilidade tenham efetivado.

Efetivada, a indisponibilidade será convertida em penhora, abrindo-se oportunidade para que o executado ofereça embargos à execução.

Constitucionalidade

Muito embora haja quem defenda a inconstitucionalidade da indisponibilidade genérica [6], com esse entendimento não concordamos, porque é medida que se defere somente após a fase citatória e da oportunidade de oferecimento de bens ou garantia, mantendo intacto o pilar do contraditório e da não surpresa, enfim, o devido processo legal sob seu viés processual.

Desde a introdução no sistema normativo, essa ferramenta processual (juntamente com a medida cautelar fiscal) vem sendo amplamente utilizada para aumentar a probabilidade de satisfação do crédito tributário, notadamente, diante das limitações de acesso às informações patrimoniais dos devedores por parte das Fazendas Públicas.

Evolução

Entretanto, os instrumentos de busca patrimonial vêm evoluindo de forma acelerada, modificando, significativamente, a utilização da indisponibilidade genérica introduzida no Código Tributário Nacional no momento embrionário da implantação do sistema de pesquisa patrimonial pioneiro denominado Bacenjud, agora Sisbajud, o qual atualmente reúne vários módulos como bloqueio de ativos, afastamento de sigilo bancário, entre outros, quando não havia um sistema integrado de busca aos registros cartorários, a veículos, a informações sigilosas da Receita Federal e de outras instituições, como atualmente são disponibilizadas (SREI, Serp-Jud, Renajud, Infojud, Infoseg, Sniper, entre outros) e que fornecem informações consolidadas acerca de bens e direitos.

Em breve, todos os sistemas de pesquisa patrimonial estarão consolidados em uma única plataforma à disposição não apenas do Poder Judiciário, como já disciplinado na Lei Complementar nº 208/2024 [7], podendo ensejar uma necessária revisão da interpretação acerca dos critérios firmados no julgamento do recurso repetitivo pelo STJ, no que tange à comprovação do prévio esgotamento das diligências ordinárias em busca de bens penhoráveis.

Mas não só, pois algumas modificações que já tramitam no Congresso Nacional e pretendem alterar diplomas legais do Sistema Tributário Brasileiro também impactarão a utilização dessa ferramenta processual, como a possibilidade de cobrança extrajudicial da dívida ativa de pequeno valor que permitirá às Fazendas Públicas proporem a execução administrativa do crédito tributário e a averbação, inclusive por meio eletrônico, do termo de inscrição em dívida ativa ou da certidão de dívida ativa nos registros de bens e direitos sujeitos à penhora, arresto ou indisponibilidade, sem prejuízo do disposto no artigo 185 do Código Tributário Nacional (artigo 16, III, do PL 2.488/2022), o que somente poderá ser operacionalizado por meio do compartilhamento de informações contidas nas ferramentas de busca patrimonial até então de acesso exclusivo do Poder Judiciário (artigos 22 e 50 parágrafo único do PL 2.488/2022).

 


[1] Lei n 5.627/70 (art. 2º), Lei 6.024/74 (arts. 36 a 38), Lei n 8.137/92, Lei 8.397/92 (art.4º.), Lei 8.429/92 (art.16), Lei n 8.443/92 (art. 44, §2º.), Lei 9.447/97 (art. 2º.), Lei n 9.637/98 (art. 10), Lei Complementar 109/2001 (arts; 59 e 60), Lei 10.190/01 (art. 3º), o CTN, entre outras.

[2] Art. 185-A. Na hipótese de o devedor tributário, devidamente citado, não pagar nem apresentar bens à penhora no prazo legal e não forem encontrados bens penhoráveis, o juiz determinará a indisponibilidade de seus bens e direitos, comunicando a decisão, preferencialmente por meio eletrônico, aos órgãos e entidades que promovem registros de transferência de bens, especialmente ao registro público de imóveis e às autoridades supervisoras do mercado bancário e do mercado de capitais, a fim de que, no âmbito de suas atribuições, façam cumprir a ordem judicial.

§1º A indisponibilidade de que trata o caput deste artigo limitar-se-á ao valor total exigível, devendo o juiz determinar o imediato levantamento da indisponibilidade dos bens ou valores que excederem esse limite.

§2º Os órgãos e entidades aos quais se fizer a comunicação de que trata o caputdeste artigo enviarão imediatamente ao juízo a relação discriminada dos bens e direitos cuja indisponibilidade houverem promovido.

[3] Art. 9º.  Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.

[4] Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa.

[5] STJ, Resp 1.493.067 – RJ e TJ/SP, processo 2296443-97.2020.8.26.0000

[6] Para fins de delimitação semântica, a expressão “indisponibilidade genérica” é utilizada para englobar todas as formas de pesquisa patrimonial de bens e direitos à disposição do Poder Judiciário e regulamentados pelo Conselho Nacional de Justiça, além de outras bases de dados que dependem de expressão autorização judicial.

[7] Art. 2º. Os arts. 174 e 198 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), passam a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 198 …………………………………………………………….

…………………………………………………………………………..

§4ºSem prejuízo do disposto no art. 197, a administração tributária poderá requisitar informações cadastrais e patrimoniais de sujeito passivo de crédito tributário a órgãos ou entidades, públicos ou privados, que, inclusive por obrigação legal, operem cadastros e registros ou controlem operações de bens e direitos.

§Independentemente da requisição prevista no § 4º deste artigo, os órgãos e as entidades da administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes colaborarão com a administração tributária visando ao compartilhamento de bases de dados de natureza cadastral e patrimonial de seus administrados e supervisionados.” (NR)

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