Opinião

Responsabilidade administrativa nos serviços sociais autônomos: a quem prestar contas?

Autor

  • Mário Augusto Silva Araújo

    é advogado mestre em Constituição e Garantia de Direitos e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

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13 de julho de 2024, 6h43

A titularidade do Estado no que diz respeito ao oferecimento de direitos enseja ação estratégica, sobretudo por causa da característica da Constituição brasileira, que outorga a prestação de serviços públicos em larga escala, como é o direito à educação. Básica e superior.

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Sala de aula, escola, aluno

Além disso, pautado na dignidade da pessoa humana, fundamento que lhe é peculiar, o Estado brasileiro deve asseverar uma rede de seguridade social, cujo teor prescrito pelo artigo 194 da Constituição, é “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”.

Mais do que orçamento para garantir ações voltadas para lastrear financeiramente aquelas diretrizes estratégicas, deve o Estado se organizar administrativamente para conseguir fluidez à ramificação da sua atuação.

Em outras palavras: não basta planejar ações concretas para oferecer direitos. É preciso, antes, pensar uma forma instrumental de funcionamento, e para isso o Direito Administrativo apresenta como moldura organizacional o conceito de administração direta e administração indireta.

A administração direta pode ser compreendida como a estrutura vinculada ao Poder Executivo, titular da obrigação no que diz respeito ao oferecimento tanto dos direitos e liberdade fundamentais, como dos direitos sociais, e significa uma ação concreta que consiga promover o desenvolvimento das pessoas.

Diz respeito, portanto, aos serviços integrados na estrutura administrativa que compreende, por exemplo, os ministérios, no âmbito da União, e as secretarias, no âmbito dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.

Descentralização administrativa

Mas pode ser que mesmo diante dessa engrenagem básica a administração pública não tenha fôlego para prestar os serviços pelos quais está responsável, caso em que deve descentralizar a sua atuação, o que significa criar outra pessoa.

A forma pela qual essas pessoas (jurídicas) são criadas está prescrita pelo artigo 37, inciso XIX da Constituição, o qual dispõe que “somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de atuação”.

Assim, por descentralização administrativa pode ser entendida uma estratégia da administração pública em oferecer serviços à população de forma célere com ênfase na eficiência. Esse deslocamento de competências parte da premissa de que há um regramento primário do qual o poder público não apresenta resposta satisfatória.

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Pode ser entendida também como uma política de governança pautada no aperfeiçoamento da gestão pública e que possui na autorização legislativa a participação popular, já que depende do crivo do poder legislativo, instância simbólica da democracia participativa.

Eficiência administrativa e as autarquias

Mais do que isso, a descentralização de serviços públicos é uma faculdade cujo escopo remonta ao princípio da eficiência administrativa, o qual para alguns foi trazido ao ordenamento jurídico pela emenda constitucional nº 19/1998, mas que particularmente está topografado desde o início da atual ordem constitucional vigente.

Isso porque o artigo 74 do pacto social vigente delimita como uma das matrizes do controle do gasto a comprovação da legalidade dos atos e a avaliação de resultados “quanto à eficácia e eficiência” da gestão orçamentária, financeira e patrimonial, e da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado.

Essas premissas de controle objetivam incentivar celeridade e qualidade no processo de tomada de decisão do gestor público, que deve buscar alternativas aptas a maximizarem a utilização de recursos públicos.

Para isso, a um primeiro momento, no campo da prestação de serviços públicos, ele possui como diretriz a criação de autarquias por intermédio de leis específicas, entidade da administração indireta cujo regime jurídico tem como característica marcante as regras de direito público e possuem atuação na titularidade do oferecimento de serviços públicos.

Possuem, portanto, regime publicista e são uma extensão do próprio órgão o qual está vinculado.

Descentralização à iniciativa privada

A depender da especificidade da política pública ao seu encargo, pode ser que a administração pública demande necessidade da instituição de uma descentralização à iniciativa privada.

É o caso da empresa pública, cuja característica é “entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com criação autorizada por lei e com patrimônio próprio, cujo capital social é integralmente detido pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios”, consoante dispõe o artigo 3º da Lei nº 13.303/2016, também conhecida como Lei das Estatais.

As empresas públicas podem ser de natureza unipessoal ou pluripessoal, o que significa que um ente político pode ser integralmente o titular do poder decisório, ou, a depender do caso, nas plúrimas, existe uma conexão de interesses, o que realça a ideia de federalismo de cooperação.

Por outro lado, as sociedades de economia mista possuem caráter eminentemente voltado ao capital e só possuem uma natureza jurídica possível, que é a de sociedade anônima e não se submetem aos privilégios da fazenda pública, como é o caso do regime de precatórios.

Uma diferença singular entre empresa pública e sociedade de economia mista é a titularidade do capital. Na empresa pública o capital é inteiramente público, ao passo que na sociedade de economia mista o poder público é sócio majoritário.

Observa-se, assim, que a empresa pública denota um interesse público relevante e deve preencher lacunas que o mercado não possui interesse, caso, por exemplo, da entrega de produtos em territórios alhures, que os correios, por exemplo, devem realizar, mesmo que a atividade econômica prestada lhe seja economicamente inviável.

Sistema S

Conquanto a organização administrativa se caracterize, em linhas gerais, da forma acima delineada, a jurisdição constitucional permite uma ramificação mais ampla com entidades de direito privado, caso do Sistema S, também conhecido como serviço social autônomo.

Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “Essas entidades não prestam serviço público delegado pelo Estado, mas atividade de interesse público (serviços não exclusivos do Estado). Exatamente por isso, são incentivadas pelo Poder Público. A atuação estatal, no caso, é de fomento e não de prestação de serviço público” [1].

Os serviços sociais autônomos, possuem como principal premissa o sistema S (Sesi, Sebrae, Senac e Sesc, por exemplo), mas vai além disso. Embora o Sistema S exista em regime de serviço social, há casos de atuação, por exemplo, de serviços sociais autônomos exclusivamente em serviços públicos de saúde.

Os serviços sociais autônomos não estão no marco regulamentar da organização administrativa da União, que é o Decreto-Lei nº 200/1967, o qual prevê, por exemplo, no seu artigo 3º, a possibilidade da existência de autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações.

Para Floriano de Azevedo Marques Neto e Carlos Eduardo Bergamini Cunha “os serviços sociais autônomos são entes associativos não fundacionais, de direito privado e sem fins lucrativos, e que, portanto, não integram a estrutura da administração pública, seja a administração direta ou a indireta. São em regra criados por lei e têm como objetivo a execução de atividades de interesse público não econômicas, o que justifica o fomento prestado pelo poder público” [2].

São diferentes das organizações sociais, regidas pela Lei 9.637/1998, as quais dependem, para a sua existência, da qualificação do Poder Executivo, o que implica o reconhecimento de que as suas atividades, voltadas ao ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e  saúde estejam em sintonia com o então interesse público.

Mutação administrativa

A criação por lei que outorga aos serviços sociais autônomos, embora sejam pessoas jurídicas de direito privado, finalidade pública, confere legitimidade no sentido de terem um aporte de recursos públicos em regime de contratualização a ser disposto mediante a necessidade, conveniência e a oportunidade, além da disponibilidade orçamentária e financeira, do respectivo órgão da administração direta.

Por essa razão, os serviços sociais autônomos podem ser entendidos como uma mutação administrativa sem previsão estruturante em diretrizes gerais, caso do Decreto-Lei nº 200/1967, criados por lei que lhe titularizam a finalidade pública, conquanto sejam pessoas jurídicas de direito privado, destinados a exercerem as suas atividades para serem um suporte na prestação de serviços públicos.

Serviço social anômalo

A principal base do serviço social autônomo é a sua natureza jurídica de direito privado, mas a eminente prestação de serviço público quase lhe faz similar a uma autarquia, o que pode inclusive legitimar uma ressignificação conceitual para serviço social anômalo.

Além disso, causa estranheza a nomenclatura de serviço social autônomo se essas entidades dependem de financiamento do poder público, seja por contribuição parafiscal, seja por contrato de gestão. Por que autônomo, se efetivamente não há autonomia?

Sobre contratação, embora não se submetam ao concurso público propriamente dito, os serviços sociais autônomos, cujo vínculo institucional é celetista, devem fazer processo seletivo simplificado, consoante entendimento do Supremo Tribunal Federal no tema de Repercussão Geral 569 [3], o qual fixou a tese de que “os serviços sociais autônomos integrantes do denominado Sistema ‘S’ não estão submetidos à exigência do concurso público para contratação de pessoal, nos moldes do artigo 37, II, da Constituição Federal”.

Prestação de contas

No que diz respeito à prestação de contas, embora possuam natureza jurídica de direito privado, os serviços sociais autônomos são submetidos à jurisdição dos tribunais de contas por força do artigo 70, parágrafo único da Constituição, para quem “Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária”.

Nesse sentido o TCU (Tribunal de Contas da União) possui o entendimento, quanto ao serviço social autônomo oriundo do Sistema S, de que “Os serviços sociais autônomos se sujeitam ao controle do TCU, uma vez que administram recursos públicos de natureza tributária, advindos de contribuições parafiscais e destinados ao atendimento de fins de interesse público”, nos termos do Acórdão 1.507/2020-Plenário, da relatoria do ministro Marcos Bemquerer.

Mas pode ser que alguns serviços sociais autônomos não tenham como fonte de receita as contribuições parafiscais, previstas pelo artigo 240 da Constituição, por exemplo.

No âmbito da União recentemente foi criado um serviço social autônomo voltado à prestação de serviços públicos de saúde, que é a Agência Brasileira de Apoio à Gestão do SUS (AgSUS), cuja competência diz respeito a promover, em âmbito nacional, a execução de políticas de desenvolvimento da atenção à saúde indígena, nos diferentes níveis, e da atenção primária à saúde, nos termos do artigo 6º da Lei nº 14.621/2023.

A respeito do seu financiamento basilar, prevê o artigo 14 daquela lei que a agência “firmará contratos de gestão com o Ministério da Saúde” para a execução das suas finalidades, o que atrai a competência do TCU para fins de auditoria do gasto e instância sobre responsabilidade administrativa.

Conclusão

Conforme se vê, os serviços sociais autônomos são estratégias de descentralização administrativa com o intuito de promover celeridade à prestação de serviços públicos, cujos titulares são pessoas jurídicas.

Embora sejam pessoas jurídicas de direito privado, por possuírem como receitas eminentemente dinheiro público, quer seja por contribuição parafiscal, ou por intermédio da pactuação de atividades com o poder público, caso dos contratos de gestão, a responsabilidade administrativa dos gestores dos serviços sociais autônomos gravita na órbita dos tribunais de contas.

 


Referências bibliográficas

BRASIL. Supremo Tribubal Federal,. Recurso Extraordinário 789874. Relatoria do Ministro Teori Zavascki.

_______. Tribunal de Contas da União. Acórdão 1507/2020-Plenário. Relatoria do Ministro Marcos Bemquerer

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31ª edição. Editora Forense. 2018.

MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. CUNHA, Carlos Eduardo Bergamini. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, V. 263, p. 135-174.

[1] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31ª edição. Editora Forense. 2018, p. 628

[2]  MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. CUNHA, Carlos Eduardo Bergamini. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, V. 263, p. 135-174, maio/ago 2013.

[3] Recurso Extraordinário 789874. Relatoria do Ministro Teori Zavascki.

Autores

  • é advogado, mestre em Constituição e Garantia de Direitos, especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

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