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O exame judicial da classificação fiscal de mercadorias (parte 3)

11 de julho de 2024, 6h04

Por Simone Anacleto

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Nos dois artigos anteriores (aqui e aqui), busquei evidenciar que: a) a classificação fiscal de mercadorias é uma atividade eminentemente jurídica, ainda que dependa de subsídios técnicos para a averiguação das condições físicas e funcionais das mercadorias; b) na esfera administrativa, essa atividade insere-se na competência privativa da Secretaria da Receita Federal; e c) em qualquer âmbito, as perícias técnicas que visam fornecer subsídios para a classificação fiscal de mercadorias possuem um escopo limitado. [1]

Reprodução

Outrossim, também afirmei que, se a classificação fiscal de mercadorias depende de interpretação e aplicação da legislação pertinente a cada mercadoria, sem dúvida, é uma atividade de cunho jurídico que pode ser submetida ao crivo do Poder Judiciário, face ao princípio constitucional da inafastabilidade do controle judicial (artigo 5º, inciso XXXV, da CRFB/88). Em qualquer caso, exige-se do intérprete, seja ele o auditor fiscal ou o juiz, que examine a matéria frente a toda a legislação efetivamente aplicável.

Essa última afirmação pode parecer um truísmo, mas a verdade é que quem milita perante a Justiça Federal constata que, infelizmente, há decisões judiciais que se distanciam dos parâmetros acima mencionados.

Na impossibilidade de examinar decisões de várias instâncias judiciárias para demonstrar essa constatação, passa-se a seguir a fazer a análise de um caso específico apreciado justo pela instância superior, a saber, o REsp nº 1.555.004/SC [2].

Por oportuno, importante ressaltar, desde logo, que não há muitos precedentes no STJ versando sobre classificação fiscal de mercadorias a serem examinados, tendo-se escolhido, dentre todos, apenas o referido por se entender que não aplicou ele o melhor Direito à espécie, face ao que suas razões merecem ser superadas pela jurisprudência vindoura.

Em primeiro lugar, confira-se a ementa do acórdão então prolatado:

TRIBUTÁRIO. PRODUTO IMPORTADO. SABÃO ANTIACNE. CLASSIFICAÇÃO PERANTE À ANVISA COMO COSMÉTICO. AUTORIDADE ADUANEIRA QUE ENTENDE SER MEDICAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. ATRIBUIÇÃO DA AUTORIDADE SANITÁRIA (ANVISA) NA CLASSIFICAÇÃO DO PRODUTO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

  1. Incumbe à ANVISA regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam à saúde pública (art. 8o. da Lei 9.782/99).
  2. Não pertence às atribuições fiscais e aduaneiras, alterar a classificação de um produto, inclusive porque os seus agentes não dispõem do conhecimento técnico-científico exigido para esse mister.
  3. Produto classificado pela ANVISA como cosmético. Atribuição privativa da Autoridade Sanitária, que refoge à competência da Autoridade Aduaneira.

Da simples leitura dessa ementa, já se depreende que a Corte Superior deu prevalência a um entendimento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que é aplicável no país para efeitos da fiscalização relativa à saúde pública [3], em detrimento do posicionamento da Receita Federal, que possui competência privativa para a classificação fiscal de mercadorias [4].

Ora, uma coisa são as classificações adotadas pela Anvisa tendo em vista a preocupação com os riscos à saúde pública; outra coisa bem diferente são as classificações adotadas em matéria fiscal. Recorde-se que a classificação fiscal de mercadorias, na verdade, se vale da nomenclatura internacional de mercadorias adotada pela Convenção de Bruxelas da qual o Brasil é signatário e que tem o intuito exclusivo de padronizar a terminologia adotada no comércio internacional. Trata-se, pois, de âmbitos de atuação distintos e que podem levar a resultados aparentemente divergentes, mas que se justificam, na medida em que se prestam a atender a finalidades diversas.

Assim, para efeitos de proteção à saúde pública, o sabonete antiacne pode ser considerado um mero cosmético; já em vista da necessidade de padronização da terminologia adotada no comércio internacional de mercadorias, classificam-se os sabonetes que são compostos por determinadas substâncias químicas como “sabões medicinais”.

Note-se que o próprio voto do eminente relator do REsp nº 1.555.004/SC consignou o seguinte:

  1. O Tribunal Regional Federal da 4a. Região reformou a sentença para classificar o produto no parágrafo único do art. 94 do Regulamento Aduaneiro (Decreto 6.759/2009) que estabelece que para fins de classificação das mercadorias, a interpretação do conteúdo das posições e desdobramentos da Nomenclatura Comum do Mercosul será feita com observância das Regras Gerais para Interpretação, das Regras Gerais Complementares e das Notas Complementares e, subsidiariamente, das Notas Explicativas do Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias, da Organização Mundial das Aduanas (Decreto- Lei no 1.154, de 1o de março de 1971, art. 3o, caput). Dessa forma, entendeu que as Regras Gerais para Interpretação, as Regras Gerais Complementares e as Notas Complementares não elucidavam a questão e, assim, aplicou as Notas Explicativas do Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias que classifica como sabonete medicinal aqueles que contiverem ácido bórico, ácido salicílico, enxofre e sulfamidas (Capítulo 34, I, d do Decreto 435/1992) – os grifos não constam do original.

Como se pode perceber, o TRF da 4ª Região havia levado em conta, em sua decisão, as regras vigentes relacionadas ao Sistema Harmonizado para concluir que o sabão antiacne, por ser composto por ácido salicílico e ácido glicólico, para fins de classificação fiscal, deveria ser considerado na NCM 3401.11.10, que se refere a “sabões medicinais”.

Em especial, foram destacadas pelo Tribunal Regional as seguintes  Neshs (Notas Explicativas do Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias), aprovadas pelo Decreto nº 435/1992) ao Capítulo 34 da NCM:

Considerações gerais
(…)
I – Sabões
Incluem-se aqui especialmente:
(…)
1) Os sabões medicinais, que contêm substâncias medicamentosas, tais como ácido bórico, ácido salicílico, enxofre e sulfamidas.

Uma vez que as Nesh determinam que devem ser considerados como sabões medicinais todos os que contêm ácido salicílico e, visto que foi constatada a presença de tal substância na mercadoria em exame na lide, data maxima venia, foi absolutamente acertada a decisão adotada pelo TRF da 4ª Região. Afinal, para fins de classificação fiscal, pouco importa se o produto oferece, ou não, risco à saúde pública. O que interessa, tendo em vista as regras jurídicas aplicáveis, é apenas a sua composição química!

O fato de que, para a Anvisa, o sabão antiacne deva ser considerado um mero cosmético é perfeitamente compreensível, na medida em que se trata de um produto que oferece muito menos risco à saúde pública que tantos medicamentos com efeitos colaterais. Portanto, claramente a Anvisa adotou o entendimento quanto ao referido produto não em função de suas características físicas ou químicas, mas, sim, em decorrência de seus objetivos institucionais.

Já do ponto de vista da classificação fiscal, o que importa analisar são, tão somente, as regras pertinentes, ou seja, as Regras Gerais de Interpretação do Sistema Harmonizado, as Notas de Seção, de Capítulo e de Subcapítulo, as Neshs e as Soluções de Consulta e de Divergência da Receita Federal.

Nesse sentido e de forma irretocável havia sido o entendimento do TRF-4. Todavia, lamentavelmente, nenhuma das referidas normas foi considerada no julgamento do mencionado RESP nº 1.555.004/SC pelo STJ, o qual, além disso, concessa maxima venia, confundiu as atribuições de órgãos públicos com competências distintas.

Para arrematar, o voto proferido nesse julgado da Corte Superior ainda vaticinou: “…se a aduana pudesse classificar livremente os produtos importados, é evidente que as alíquotas aplicadas seriam sempre as mais elevadas.”

Como visto acima, não há liberdade para a classificação de produtos importados na medida em que ela precisa observar um número muito grande de normas decorrentes da convenção internacional a que o País aderiu. Ademais, pedindo-se a máxima vênia à corte julgadora, não faz sentido desconfiar da lisura da atividade empreendida pela Receita Federal, acoimando-a de sempre pretender a fixação das alíquotas mais elevadas aos contribuintes em geral. Isso seria desconhecer a seriedade e a complexidade da atuação em matéria de classificação fiscal de mercadorias.

Por fim, é evidente que, em discussões judiciais, só se trata dos casos em que os contribuintes pretendem outra classificação para reduzir o montante das alíquotas a serem aplicadas. Isso não significa que, em toda e qualquer divergência relativa a alguma classificação fiscal, a Receita “force” a interpretação para buscar a alíquota aplicável mais elevada.

Todas essas considerações podem ser resumidas numa única crítica ao precedente do STJ aqui enfocado: ele equivocadamente deixou de considerar como jurídicas as normas que determinam o procedimento para a classificação fiscal de mercadorias. Não obstante ele não seja mais passível de revisão, já tendo havido o trânsito em julgado, merece ser analisado criticamente, como precedente isolado que é, de modo que seu raciocínio não seja reproduzido em julgados futuros que versem sobre outras hipóteses de classificação fiscal de mercadorias.

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[1] Esses temas também foram tratados no Parecer Normativo Cosit nº 6, de 20-12-2018, disponível em http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=97551. Aqui, todavia, é dado um enfoque diferente e adstrito à visão da autora. Acesso em 16-06-2024.

[2] STJ, 1ª Turma, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. em 16-02-2016.

[3] Observe-se que, de acordo com o art. 8º da Lei nº 9.782/1999, incumbe à ANVISA, “respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública”.

[4] Confira-se a fundamentação mais aprofundada sobre a alegada competência privativa da Receita Federal no artigo “Apontamentos para o Exame Judicial da Classificação Fiscal de Mercadorias 2”, disponível em …