Opinião

Vagas para PcD em concursos públicos de entes sem legislação específica

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10 de julho de 2024, 16h19

Já está sedimentada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que a pessoa com deficiência (PcD) tem direito a ser a quinta convocada para assumir cargo ou emprego público em concursos públicos. Contudo, em diversos entes federativos, em especial municípios, é comum a reserva de vagas para PcD sem previsão em legislação local, valendo-se apenas de menções à legislação federal e regras específicas de cada edital.

123RF

A circunstância de uma certa vinculação à legislação federal e, ao mesmo tempo, instituição de novas regras pelo edital gera uma série de dúvidas a respeito de como devem ser interpretados os direitos das PcD no caso concreto. É o caso, por exemplo, de quando o edital do concurso público simultaneamente se vincula à legislação federal e prevê uma ordem de convocação diferente daquela que os tribunais entendem mais acertada a partir da interpretação da Constituição e da legislação federal.

Diante disso, faz-se necessária uma incursão nas bases constitucionais e legais dos direitos de PcD em concursos públicos, notadamente quanto à ordem de nomeação, ponto de grande relevância e maior divergência.

Normas

A CRFB/88 estabeleceu, em seu artigo 37, VIII, que a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão. Além disso, é competência administrativa comum da União, estados, Distrito Federal e municípios cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência, conforme artigo 23, II, da CRFB/88.

Por sua vez, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que tem status de Emenda Constitucional, em seu artigo 27, estabelece garante que as PcD terão salvaguardados e promovidos o direito ao trabalho, inclusive protegendo da discriminação em condições de recrutamento (alínea a); protegendo iguais oportunidades e remuneração por trabalho de igual valor (alínea b); promovendo oportunidades de emprego e ascensão profissional para pessoas com deficiência no mercado de trabalho, bem como assistência na procura, obtenção e manutenção do emprego (alínea e) e empregando pessoas com deficiência no setor público (alínea g).

A Lei Federal nº 13.146, de 6 de julho de 2015, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), reforçou os mesmos preceitos referida da convenção, como se pode verificar no artigo 34, § 2º, por exemplo. Contudo, o estatuto vai ainda além ao estabelecer:

1) no artigo 35 que é finalidade primordial das políticas públicas de trabalho e emprego promover e garantir condições de acesso e de permanência da pessoa com deficiência no campo de trabalho;

2) no artigo 37, que constitui modo de inclusão da pessoa com deficiência no trabalho a colocação competitiva, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas;

3) no artigo 38, que a entidade contratada para a realização de processo seletivo público ou privado para cargo, função ou emprego está obrigada à observância do disposto nesta lei e em outras normas de acessibilidade vigentes.

Aplicação subsidiária da lei federal

No âmbito local, por diversas vezes, não há normas no âmbito municipal ou estadual quanto ao ingresso da PcD em concursos da administração pública. Para garantir o mínimo de proteção e, também, fazer cumprir os ditames constitucionais e legais anteriormente referidos, especialmente o artigo 38 do referido estatuto, é forçosa a aplicação supletiva da legislação federal.

Essa interpretação é ainda mais acertada quando a própria administração reconhece a aplicação supletiva da legislação federal, na medida em que a menciona como vinculante em seus editais.

A jurisprudência do STF é farta de julgados que estabelecem a vinculação de um edital, desde que de acordo com o direito, para o administrado e a administração pública, vejamos alguns excertos: “desde que consentâneo com a lei de regência em sentido formal e material, obriga candidatos e Administração Pública (RE 480.129/DF, relator: ministro Marco Aurélio);

“Um edital, uma vez publicado — norma regente, interna, da competição, na linguagem de Hely Lopes Meireles —, gera expectativas nos administrados; expectativas essas que hão de ser honradas pela administração pública. Ela também está vinculada aos termos do edital que redigiu e publicou” (RE 480.129/DF, rel. min. Marco Aurélio).

Caso a vinculação ao edital de acordo com a lei não seja observada, o STF entende que haverá violação à proibição do comportamento contraditório, que é “[…] derivada dos princípios da confiança e da boa-fé objetiva, que visam obstar, nas relações jurídicas, práticas incoerentes por parte daqueles que incutem, em outrem, em razão de conduta por eles concretizada (no caso, o Poder Público), expectativas legítimas que, no entanto, vêm a ser posteriormente frustradas em função de uma inesperada mudança de atitude conflitante com a conduta inicial” (MS 31.695 AgR, rel. min. Celso de Mello, 2ª Turma, julgado em 3/2/2015, Processo Eletrônico DJe-067, divulg. 9/4/2015, public. 10-04-2015).

Cabe dizer também que a interpretação de aplicação subsidiária da legislação federal é a mais moderna e mais aderente à jurisprudência do STF, pois é aquela mais favorável e que dá máxima eficácia das declarações internacionais e proclamações constitucionais de direitos das PcD, conforme podemos verificar, em caso que se discutiu como devem ser interpretadas normas de direitos humanos de PcD:

“[…] HERMENÊUTICA E DIREITOS HUMANOS: O PRINCÍPIO DA NORMA MAIS FAVORÁVEL COMO CRITÉRIO QUE DEVE REGER A INTERPRETAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. – O Poder Judiciário, no exercício de sua atividade interpretativa, deve prestigiar, nesse processo hermenêutico, o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional de direitos humanos como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), extraindo, em função desse postulado básico, a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana. Precedentes: HC 93.280/SC, rel. min. Celso de Mello, v.g..” (RMS 32732 AgR, relator(a): Celso de Mello, 2ª Turma, julgado em 03-06-2014, Processo Eletrônico DJe-148, divulg 31/7/2014  public. 1/8/2014 RTJ VOL-00228-01 PP-00466).

Ordem correta

A regulamentação federal atual estabelece o mínimo de 5%, conforme artigo 1º, § 1º do Decreto Federal n° 9.508/18 [1]. O patamar máximo, por sua vez, é em 20% das vagas oferecidas no concurso, vide artigo 5º, § 2º, da Lei Federal nº 8.112/90.

Confirma-se, portanto, que a administração estabeleceu a nomeação de 20% das vagas para PcD. Contudo, questão bastante relevante é qual a ordem correta de nomeação de candidatos PcD. Entende-se que é um assunto complexo, por isso deve ser explicado com detalhes.

O STF estabeleceu no MS nº 31.715/DF, a partir de voto da ministra Rosa Weber, que, para a nomeação de PcD devem ser observados quatro critérios: 1) piso; 2) teto; 3) arredondamento e 4) previsão editalícia.

No caso de aplicação subsidiária da legislação federal, o piso é de 5% e o teto de 20% (vinte por cento). Deve haver previsão editalícia para reserva de vagas para PcD. Quanto ao critério de arredondamento, estabeleceu-se que frações de números devem ser arredondados para o próximo número inteiro a fim de se estabelecer a quantidade de vagas para PcD.

Quanto à ordem de convocação, a jurisprudência do STF (MS 31.715/DF, MS 30.861/DF; MS 26.310/DF e RMS 27.710/DF) estabeleceu, para os parâmetros federais, a seguinte ordem: quinta vaga, 21ª vaga, 41ª vaga, 61ª vaga, 81ª vaga e assim por diante, sempre de 20 em 20 vagas.

O raciocínio por trás dessa ordem de nomeação parte da seguinte premissa: não é possível dizer, a priori, quantos cargos serão nomeados, então não é possível prever se serão contemplados teto, piso e arredondamento no caso concreto. É possível que o concurso não nomeie candidatos o suficiente para que se chegue à vaga determinada pelo edital como a primeira a ser ocupada por candidato convocado a partir da lista especial para PcDs.

Como exemplo, digamos que o edital estabeleça a convocação de PcD para ocupar a vigésima vaga. Essa regra, na prática, poderá dificultar demasiadamente ou até tornar ineficaz o exercício do direito da PcD à reserva de vagas.

Assim, para respeitar o princípio da isonomia/igualdade e, por decorrência, os requisitos de proporcionalidade e alternância de que fala a jurisprudência, é preciso estabelecer uma ordem de nomeação na prática.

Se, por exemplo, forem nomeados quatro candidatos da lista geral e um da lista PcD, será observado o piso, o arredondamento, o teto e a previsão editalícia. O piso pode ser fracionado em menos do que uma vaga, já que há o arredondamento, mas não pode, ao mesmo tempo, superar o teto estabelecido. O primeiro número inteiro surge na proporção 1 em 5, equivalente a 20%. A partir da quinta convocação é que passa a ser respeitado, proporcionalmente, o teto de 20%. Trata-se de uma situação em que o mínimo coincidirá com o máximo.

De forma mais detalhada, a ministra Rosa Weber explica em seu voto:

“Percebe-se que (i) o art. 5º, § 2º, da Lei 8.112/90 estipula o teto de até 20% das vagas a portadores de deficiência, enquanto que (ii) o art. 37, § 1º, do Decreto 3.298/99, determina o piso de 5%. O parágrafo 2º desse mesmo dispositivo impõe, ainda, (iii) o arredondamento, para cima, até o primeiro número inteiro subsequente, da fração resultante da divisão do número de vagas pelo percentual mínimo previsto; e a previsão editalícia, contida no item 3.1, antes transcrita, (iv) obriga o respeito a tais determinações inclusive em relação às vagas que vierem a ser criadas durante o prazo de validade do concurso, questão do maior relevo em face da formação de cadastro de reserva.

Esses quatro aspectos piso, teto, arredondamento e previsão editalícia quanto ao cadastro de reserva hão de ser obrigatoriamente atendidos para que se tenha por efetivado o direito constitucional de inclusão profissional dos portadores de deficiência no mercado de trabalho, na esfera governamental. E a observância há de se fazer de forma conjunta, vale dizer, obrigatório o atendimento simultâneo dos quatro aspectos a cada nomeação, sob pena de se ter por negada, ou concretizada de modo insuficiente, a previsão constitucional.

Assim, na presente hipótese, não basta, v.g ., que observado o percentual de cinco por cento das vagas em uma primeira nomeação em bloco se, a partir daí, não respeitada a preferência também para as vagas preenchidas pelo cadastro de reserva; também insuficiente que reservada uma vaga, em cada vinte, se, diante da expiração da validade do concurso, a ordem de nomeações vier a impedir a efetividade da previsão constitucional; e igualmente de nada resolve o arredondamento, para o primeiro número inteiro subsequente à divisão do número de vagas pelo coeficiente de reserva, se aprioristicamente definida a posição das nomeações, antes que se saiba quantos candidatos serão chamados durante o prazo de validade do certame.

[…] Fossem quinze as vagas disponibilizadas em chamada única, esgotando-se com isso a eficácia do concurso, não haveria maiores problemas práticos, levando-se em conta que, para este cargo, e assim como ocorre com a maioria deles, a antiguidade na carreira não é fator condicionante de situações jurídicas

futuras. Quatorze nomeados seriam indicados pela lista geral, e um, pela lista especial. Nesta proporção, ter-se-ia, ainda que por via transversa, o correto cumprimento dos dispositivos legais.

Ocorre que, havendo uma única vaga original no concurso, 5% dela é 0,05 vaga. O art. 37, § 2º, do Decreto 3.298/99 obriga o arredondamento dessa fração para o primeiro número inteiro subsequente, o que dá 1. Mas 1 é 100% de uma

vaga disponível; portanto, não há vagas para deficientes, dado o teto de 20% das vagas previsto no art. 5º, § 2º, da Lei 8.112/90.

[…] Na vigésima primeira vaga, porém, tem-se que 5% delas representa 1,05 vaga. Aplicando-se a regra do arredondamento, ter-se-ão duas vagas previstas para a lista de deficientes físicos, que representam cerca de 9,52% de vinte e uma vagas. Portanto, esta vaga também deve ser ocupada pelo segundo colocado na lista especial (DJe de 4/9/14).” (RMS 27710 AgR, relator(a): Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 28-05-2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-128 DIVULG 30-06-2015 PUBLIC 01-07-2015).

Vê-se, portanto, que, após quinta convocação a partir da lista geral, o ente só atenderá aos quatro critérios novamente na 21ª convocação. A partir daí, as próximas vagas PcDs surgirão a cada 20 convocações.

Na hipótese de o ente em questão não respeitar a ordem de convocação conforme o entendimento do STF, haverá a preterição na ordem de nomeação, o que poderá ensejar mandado de segurança ou ação ordinária.

Súmula e tese

Essas medidas judiciais encontram fundamento na Súmula nº 15 do STF, a qual garante, dentro do prazo de validade do concurso, que o candidato aprovado tem direito à nomeação, quando o cargo for preenchido sem observância da classificação.

No mesmo sentido, a tese nº 784 fixada em regime de repercussão geral, garante que o direito subjetivo à nomeação do candidato aprovado em concurso público em que surjam novas vagas exsurge na hipótese de preterição na nomeação por não observância da ordem de classificação.

Preterido no seu direito a nomeação, a PcD tem direito a requerer a declaração do seu direito subjetivo a nomeação e a condenação do ente a nomeá-la imediatamente para o cargo ou emprego público permanente em que foi aprovada mediante concurso público.

 


[1] Correspondente ao antigo art. 37 do Decreto Federal n° 3.298/1999.

Autores

  • é advogado, mestre em Direito pela Faculdade de Direito da USP e bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

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