Consultor Jurídico

Comunidades quilombolas de Alcântara e a democracia constitucional no Brasil

10 de julho de 2024, 11h18

Por Vanessa Santos do Canto

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Este artigo apresenta como proposta para o clássico debate entre sociologia do direito e história do direito, uma reflexão a partir do pensamento social negro elaborado por Beatriz Nascimento, no diálogo com os historiadores e sociólogos Clóvis Moura, Abdias Nascimento e Flávio Gomes, intelectuais negros que se preocuparam em pesquisar os quilombos enquanto forma de resistência ao pacto colonial baseado na utilização de mão de obra de escravizadas negras e escravizados negros e indígenas no continente americano.

Agência Brasil

O problema central que permeia este artigo consiste na seguinte indagação, mais abrangente: de que maneira o pensamento social negro brasileiro contribui para o pensamento jurídico brasileiro, notadamente, no que se refere à defesa da democracia e das instituições republicanas? E, dessa maneira, indagamos especificamente: como os quilombos, a partir da reflexão elaborada por Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, Beatriz Nascimento e Flávio Gomes contribuem para a atualização do debate existente entre sociologia do direito e história do direito? Esse debate de alguma forma pode fundamentar narrativas por direitos de comunidades tradicionais quilombolas no Brasil?

Diante dessas indagações, a reflexão aqui desenvolvida parte do caso Brasil vs. Comunidades Quilombolas de Alcântara, situadas no estado do Maranhão, tendo em vista que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) apresentou perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no ano de 2022, o caso da violação da propriedade coletiva de 152 comunidades de quilombolas que viviam na região de Alcântara, no Maranhão, em face da não emissão de títulos de propriedade das suas terras, bem como a instalação de uma base aeroespacial sem consulta e consentimento prévios.

Segundo a CIDH, as terras foram expropriadas sem que o Estado realizasse um processo de reassentamento adequado e não houve indenização integral, tampouco estudos socioambientais para identificar o impacto sobre os direitos das respectivas comunidades. A comissão ressaltou que as restrições e proibições impostas impediram o livre acesso das comunidades às suas terras e lugares sagrados, violando suas tradições e sua sobrevivência cultural e espiritual.

Escolha do tema e objetivos do estudo

Assim, este artigo também se baseia na leitura da manifestação da Clínica Interamericana de Direitos Humanos do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que participou das audiências entre os dias 24 a 26 de abril de 2023, na qualidade de amicus curiae na ação das comunidades quilombolas de Alcântara.

Na referida manifestação, os advogados da Clínica Interamericana de Direitos Humanos do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos da UFRJ desenvolvem argumentos jurídicos atrelados a aspectos históricos relativos aos quilombos e citam brevemente as obras de Beatriz Nascimento e Clóvis Moura para fundamentar os argumentos em defesa das comunidades quilombolas do Maranhão.

A escolha do tema deste artigo também está relacionada ao fato de que esperamos contribuir para os debates sobre a necessidade de implementação de uma educação jurídica antirracista politicamente engajada nos cursos de graduação e pós-graduação em Direito no Brasil, tendo em vista a proposta de Adilson Moreira, Philippe Almeida e Wallace Corbo neste sentido [1].

Além disso, as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Bacharelado em Direito (DCNs), de 2018, também possibilitam pensar estratégias de implementação de uma educação jurídica antirracista, tendo em vista a inserção da obrigatoriedade de inserção de ensino de história afro-brasileira e africana, de maneira transversal nos cursos jurídicos [2].

Nesse sentido, nosso trabalho resolve explorar alguns aspectos acerca da obra de Beatriz Nascimento e sua importância para os estudos dos quilombos no Brasil, notadamente, no que se refere às suas preocupações metodológicas que podem contribuir muito para a disciplina história do Direito.

Assim, este artigo busca explicitar, através do método dedutivo, a necessidade de o pensamento jurídico retomar algumas questões relativas ao compromisso de produção de conhecimento com um horizonte de projetos de liberdade elaborados por pessoas negras ao longo da história do país, notadamente, a partir da problematização da situação jurídica das comunidades remanescentes de quilombos, fundamentada no artigo 68 do ADCT e, ainda, na Convenção 169, da OIT.

Dessa forma, este trabalho discute a relação existente entre políticas públicas de enfrentamento ao racismo no Brasil e democracia constitucional a partir da disciplina história constitucional, como forma de estabelecer um diálogo entre sociologia do direito e história do direito, com ênfase na perspectiva da historiadora sergipana, negra e quilombola, Beatriz Nascimento.

Diálogo

Maria Beatriz do Nascimento nasceu em Aracaju, Sergipe, no ano de 1942, e morreu no Rio de Janeiro, em 1995. Historiadora, professora, escritora, ativista do movimento negro e feminista. Intelectual e militante comprometida com o reconhecimento das contribuições da população negra para a formação do Brasil, ela desenvolveu trabalho aprofundado sobre os quilombos nas Américas.

A autora estudou os quilombos como fenômenos históricos de resistência negra na África Central, recriado nas Américas ao longo da experiência da escravização de pessoas negras no âmbito do tráfico transatlântico de escravizados. Ela estabelece importante diálogo com a obra de Abdias Nascimento e Clóvis Moura, que divergiram teoricamente sobre o papel a ser desempenhados no contexto da luta por direitos de pessoas negras no Brasil, no período do pós-Abolição.

Enquanto Abdias Nascimento defendia o quilombismo, como forma de luta centrada na ideia de cultura negra desde uma perspectiva pan-africanista [3] (Nascimento, 2019), Clóvis Moura defendia o aquilombamento centrado na luta de classes, não obstante saber que a cultura desenvolvida nos quilombos nas Américas e que receberam diferentes denominações ser importante para essas organizações [4] (Moura, 2019, 2020, 2022). Apesar de ambos divergirem acerca do papel a ser desempenhado pela cultura negra na relação com os quilombos na contemporaneidade, o fato é que ambos consideravam o papel dos quilombos enquanto reminiscência de lutas coletivas históricas de pessoas negras no Brasil e demais países das Américas.

Sendo assim, o objetivo deste trabalho é abordar algumas reflexões elaboradas pela intelectual negra no âmbito da produção de conhecimento histórico, a fim de ressaltarmos alguns aspectos relativos ao processo de elaboração da agenda de políticas de enfrentamento ao racismo que constitui a sociedade brasileira, com ênfase nas comunidades remanescentes de quilombos.

Isso porque consideramos que o enfrentamento ao racismo por parte do Estado e da sociedade é fundamental para a consolidação da democracia e do projeto de sociedade estabelecido pelo pacto constitucional previsto no texto promulgado em 5 de outubro de 1988, a partir dos debates realizados na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988.

Atlântico negro

Neste sentido, a historiadora Beatriz Nascimento pode ser considerada uma intelectual negra que indica algumas pistas para a reelaboração da cultura jurídica brasileira a partir da crítica realizada em relação ao monopólio da produção de conhecimento histórico sobre a população negra e os efeitos desse monopólio na produção de estereótipos raciais baseados no período da utilização de mão de obra escravizada negra no país e seus efeitos posteriores. Mas ela não foi a primeira a defender a necessidade de uma “história feita por mãos negras” [5].

No entanto, sua contribuição está relacionada com o manejo das fontes históricas, na abordagem sobre quilombos e o uso de recursos audiovisuais para expressar suas ideias, nas décadas de 1970 e início dos anos de 1980, antecipando a renovação nos estudos históricos brasileiros de meados dos anos de 1980 e ao longo dos anos de 1990.

Além disso, o antropólogo Alex Ratts ressalta o caráter “atlântico” da obra de Beatriz Nascimento [6], e, dessa forma, ela talvez antecipasse aquilo que, nos anos de 1990, Paul Gilroy denominará de “atlântico negro” [7], ao centrar sua análise na tradição intelectual negra anglo-saxônica para estudar a cultura negra desde a perspectiva da diáspora africana nas Américas.

Lutas coletivas

Mas qual a relação dessas questões com as políticas públicas de enfrentamento ao racismo e com a democracia constitucional?

Desde o meu ponto de vista, a obra de Beatriz Nascimento possibilita ressaltar uma tradição do pensamento social negro brasileiro sobre a importância política das lutas coletivas para alcançar anseios individuais das pessoas negras, expressas a partir da experiência política dos quilombos no Brasil. Beatriz Nascimento [8] dialoga com Abdias Nascimento e Clóvis Moura, intelectuais negros que debateram e divergiram sobre o papel político a ser desempenhado pelos quilombos como símbolos da resistência negra para a elaboração de projetos de liberdade de pessoas negras.

Além disso, o legado intelectual de Beatriz Nascimento para os estudos históricos sobre a importância política dos quilombos, nas dimensões material e simbólica, tem sido pouco debatido. Historiadores, tais como, Flávio dos Santos Gomes [9], talvez devam mais a ela do que se imagina, tendo em vista a obra desse historiador voltada à pesquisa de comunidades quilombolas no Brasil ao longo dos séculos 18 e 19.

A defesa das comunidades remanescentes de quilombos, elaborada por ativistas e intelectuais ligados à luta antirracista ao longo dos anos de 1990 e dos anos 2000 — para garantir a efetividade do artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) e da legislação infraconstitucional e internacional que dispõem sobre essas comunidades —, é um aspecto importante para pensarmos sobre possibilidades e limites das políticas públicas de enfrentamento ao racismo no Brasil e sua relação com a democracia constitucional.

Dessa forma, o caso das Comunidades Quilombolas de Alcântara, no Maranhão, em curso na CIDH demonstra a possibilidade de ensino de maneira transversal de história afro-brasileira e africana, conforme dispõem as DCNs de 2018. Podem ser articuladas de maneira transversal disciplinas como história do direito, cireito constitucional, direitos humanos e direito administrativo e direito civil, de maneira crítica e inovadora, propiciando uma educação jurídica antirracista politicamente engajada e voltada à defesa da democracia constitucional e das liberdades.

 


Referências

GOMES, Flávio dos Santos. Mocambos e quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015.

GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro – Século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (Séculos XVII-XIX). São Paulo: Editora UNESP, 2005.

GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 24, 2012.

MOREIRA, Adilson José; ALMEIDA, Philippe Oliveira de;  CORBO, Wallace. Manual de Educação Jurídica Antirracista. São Paulo: Editora Contracorrente, 2022.

MOURA, Clóvis. Os Quilombos e a Rebelião Negra. São Paulo: Editora Dandara, 2022.

MOURA, Clóvis. Quilombos: resistência ao escravismo. São Paulo: Expressão Popular, 2020;

MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019.

NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo: Perspectiva, 2019.

NASCIMENTO, Beatriz.  Uma Historia Feita Por Mãos Negras. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. In: RATTS, Alex. Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: São Paulo: Imprensa Oficial / Instituto Kuanza, 2007.

RATTS, Alex. Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: São Paulo: Imprensa Oficial / Instituto Kuanza, 2007.

REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companha das Letras, 1996.

[1] MOREIRA, Adilson José; ALMEIDA, Philippe Oliveira de;  CORBO, Wallace. Manual de Educação Jurídica Antirracista. São Paulo: Editora Contracorrente, 2022.

[2] Tal obrigatoriedade está baseada na incorporação do texto da Lei n. 19.639/2003, às DCN´s de 2018.

[3] NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo: Perspectiva, 2019.

[4] MOURA, Clóvis. Quilombos: resistência ao escravismo. São Paulo: Expressão Popular, 2020; MOURA, Clóvis. Os Quilombos e a Rebelião Negra. São Paulo: Editora Dandara, 2022; MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019.

[5] NASCIMENTO, Beatriz.  Uma Historia Feita Por Mãos Negras. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. Esta coletânea oferece um panorama amplo de seu pensamento, reunindo alguns de seus principais artigos, ensaios e resenhas, escritos entre os anos de 1974-94.

[6] RATTS, Alex. Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: São Paulo: Imprensa Oficial / Instituto Kuanza, 2007.

[7] GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 24, 2012.

[8] NASCIMENTO, Beatriz.  Uma Historia Feita Por Mãos Negras. São Paulo: Companhia das Letras, 2021; NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. In: RATTS, Alex. Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: São Paulo: Imprensa Oficial / Instituto Kuanza, 2007.

[9] GOMES, Flávio dos Santos. Mocambos e quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015; GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro – Século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006; GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (Séculos XVII-XIX). São Paulo: Editora UNESP, 2005; REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companha das Letras, 1996.