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Riscos na securitização de direitos creditórios prevista pela LC 208/2024

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  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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9 de julho de 2024, 8h00

Vigente há uma semana, a Lei Complementar nº 208, de 2 de julho de 2024, rege todos os entes políticos, mas, às vésperas do processo eleitoral deste ano, traz consigo o risco de um estouro de manada na gestão das receitas tributárias e não tributárias dos municípios, sobretudo nos últimos 90 dias [1] de mandato dos atuais prefeitos. Isso porque os gestores locais racionalmente buscarão se reeleger ou emplacar seu sucessor, tentando fazer caixa em volumes incomensuráveis para supostamente aplicá-los em despesas associadas ao regime de previdência social (no mínimo 50% dos valores levantados) e em investimentos [2].

A LC 208/2024 inseriu artigo 39-A na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, para “dispor sobre a cessão de direitos creditórios originados de créditos tributários e não tributários dos entes da Federação”; bem como alterou a Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), para “prever o protesto extrajudicial como causa de interrupção da prescrição e para autorizar a administração tributária a requisitar informações a entidades e órgãos públicos ou privados”.

Aludida cessão de direitos creditórios a pessoas jurídicas de direito privado ou a fundos de investimento regulamentados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) visa à antecipação de recebíveis, inscritos ou não em dívida ativa, usualmente com deságio para o erário, daí porque se fala em securitização de tais direitos creditórios na forma de debêntures ou congêneres instrumentos financeiros no mercado de capitais.

Na forma do inciso V do §1º do artigo 39-A acrescido à Lei 4.320/1964, a cessão dos direitos creditórios (que, segundo o §4º do mesmo dispositivo, configura sua “venda definitiva”) abrange “apenas o direito autônomo ao recebimento do crédito”, recaindo “somente sobre o produto de créditos já constituídos e reconhecidos pelo devedor ou contribuinte, inclusive mediante a formalização de parcelamento”.

Tal alienação do direito autônomo ao recebimento do crédito, segundo os incisos I, II e do citado artigo 39-A, deverá “preservar a natureza do crédito de que se tenha originado o direito cedido, mantendo as garantias e os privilégios desse crédito”; “manter inalterados os critérios de atualização ou correção de valores e os montantes representados pelo principal, os juros e as multas, assim como as condições de pagamento e as datas de vencimento, os prazos e os demais termos avençados originalmente entre a Fazenda Pública ou o órgão da administração pública e o devedor ou contribuinte”; bem como “assegurar à Fazenda Pública ou ao órgão da administração pública a prerrogativa de cobrança judicial e extrajudicial dos créditos de que se tenham originado os direitos cedidos”.

Contorcionismo

 

Em uma tentativa de fugir das amarras do regime jurídico aplicável à administração pública e, concomitantemente, manter suas prerrogativas processuais, gerou-se uma espécie de hibridismo sem paralelo nessas operações de “venda definitiva do patrimônio público” (§4º), abrangido pelo “direito autônomo ao recebimento do crédito” (inciso V do §1º, do artigo 39-A acrescido à Lei 4.320/1964).

Antes da LC 208/2024, o instituto vinha sofrendo impugnações, porque tinha natureza de operação de crédito por antecipação de receita e burlava as vinculações arroladas no artigo 167, IV da Constituição de 1988 e as balizas da Lei de Responsabilidade Fiscal. Para ambos os impasses, a recente lei complementar ofereceu respostas um tanto controversas.

Spacca

Para escapar das restrições ao regime das operações de crédito (de que tratam os incisos III e IV do artigo 29 e o artigo 37 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000), tal cessão de direitos creditórios passou a ser reputada como “operação de venda definitiva de patrimônio público”, na forma do artigo 39-A, §4º [3] acrescido à Lei 4.320/1964. Eis a razão pela qual agora se fala em “receita de capital”, mesmo sendo sua origem majoritariamente lastreada em receitas tributárias. A destinação dos recursos em investimentos e em regimes de previdência, na forma do §6º do artigo 39-A e do artigo 44 da LRF, decorre, pois, desse contorcionismo conceitual de que a cessão de direitos creditórios seria uma espécie de alienação de bens e direitos públicos.

Em relação às vinculações constitucionais, houve falseamento no §5º do artigo 39-A acrescido à Lei 4.320/1964, conjugadamente com os §§2ºe 3º do mesmo artigo. Para os fins do artigo 167, IV da Constituição, a cessão, que, na verdade, é transferência total de domínio de direitos creditórios, passa a ser considerada como “atividades da administração tributária” em relação aos créditos originados de impostos, com a ressalva de que devem ser respeitados os §§ 2º e 3º do artigo 39-A, abaixo transcritos:

“§ 2º. A cessão de direitos creditórios preservará a base de cálculo das vinculações constitucionais no exercício financeiro em que o contribuinte efetuar o pagamento.

§3º. A cessão de direitos creditórios não poderá abranger percentuais do crédito que, por força de regras constitucionais, pertençam a outros entes da Federação.”

Burla

É sintomática, por sinal, a diferença de regime jurídico entre ambos os parágrafos: o §2º que trata dos pisos em saúde e educação estabelece garantia condicional e a posteriori, uma vez que tais deveres de gasto mínimo serão respeitados apenas se e quando o contribuinte efetuar o pagamento, em exercício financeiro incerto e não sabido, ainda que os entes políticos já tenham recebido antecipadamente o montante desde o ato da cessão (alienação) de direitos creditórios. Já o §3º resguarda ex ante o montante de transferências obrigatórias na federação, excluindo-o da incidência da securitização em comento.

Além de definir o regime jurídico aplicável ao instituto daqui em diante, o artigo 3º da LC 208/2024 [4] implicitamente também convalidou as operações anteriormente empreendidas, até porque muitas delas vinham sendo impugnadas nas instâncias competentes de controle judicial e externo de direitos creditórios.

Quando oficiei no Balanço Geral da Companhia Paulista de Securitização (CPSEC), relativo ao exercício de 2020, tive a oportunidade de apontar como irregular a cessão de direitos creditórios por vícios de inconstitucionalidade e ilegalidade do modelo de securitização adotado pelo estado de São Paulo. Naquela ocasião, suscitei que a CPSEC promovia operação de crédito por antecipação de receita fora dos permissivos legais, mediante burla aos pisos em saúde e educação, bem como em regime de onerosidade excessiva ao erário paulista.

A convalidação do artigo 3º da LC 208/2024 visa a acobertar o frágil regime jurídico de entidades como a CPSEC e congêneres, que historicamente vinham sendo acusadas de afrontarem o princípio da indisponibilidade do interesse público na gestão das receitas governamentais e, por conseguinte, ensejarem risco de dano ao erário. A esse respeito, aliás, é oportuno resgatar o alerta proferido pela 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no julgamento da Apelação Cível nº 1001566-75.2018.8.26.0053:

“[…] existem outros pedidos de declaração de nulidade das cessões de créditos da dívida ativa objeto de parcelamento em favor da CPSEC e da emissão de debêntures pela CPSEC, com o retorno ao status quo ante e de condenação dos réus a reparar o prejuízo causado ao Erário por conta da emissão de debêntures.”

Nos autos do TC-10308.989.16-9 (como se pode ler aqui), o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo reconheceu que a securitização de dívida ativa proposta pelo município de Ribeirão Preto contrariava o artigo 167, IV da Constituição de 1988, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Resolução nº 17, do Senado Federal:

“Como bem enfatizou o Ministério Público de Contas não se mostra possível a separação os atributos indisponíveis do crédito tributário do fluxo financeiro de sua cobrança “[…] na medida em que tais recursos apenas ingressam nos cofres públicos em razão de sua natureza tributária, que legitima a imposição da cobrança aos particulares, pelo Estado, com uma série de prerrogativas legais. É dizer, dito “fluxo financeiro resultante da cobrança da dívida ativa” tributária nada mais é do que o próprio tributo pago a destempo”. Assim, em razão de não se cuidar da transferência de receita de impostos, reconheceu que a vinculação de tal espécie de receita tributária contraria a Constituição e a Lei Orgânica de Ribeirão Preto.

Como bem destacado pelo Parquet, existem prerrogativas que individualizam o crédito tributário, que é passível de execução por normas e procedimentos próprios.

Nesse passo, concordo plenamente com toda instrução, que apontou violação ao artigo 144 da Lei Orgânica do Município de Ribeirão Preto, que expressamente veda a vinculação de receita de impostos a operações de crédito como a que ora se pretende.

Por conseguinte, possuindo a Lei Orgânica fundamento de validade na Constituição Federal, a operação contraria o inciso IV do artigo 167 da Constituição Federal.”

Investidores serão beneficiados

Aplacar a insegurança jurídica, sobretudo quanto à natureza de operação de crédito por antecipação de receita, potencialmente danosa ao erário e contrária ao artigo 167, inciso IV da Constituição de 1988, foi claramente o intuito do Projeto de Lei Complementar nº 204/2016 (renumerado como PLP 459/2017 em sua tramitação na Câmara dos Deputados), o qual deu origem à LC 208/2024. A justificação do projeto, exarada por seu propositor, senador José Serra, já o confessava:

“Este projeto de lei complementar tem por objetivo autorizar e regulamentar operações de cessão de direitos creditórios inscritos ou não em dívida ativa pelas três esferas de governo. Para tanto, propomos alterações na Lei 4.320, de 1964. Com isso, as operações de cessão de direitos creditórios, que hoje já são efetuadas por alguns estados e municípios, ganharão maior segurança jurídica.

[…] Ocorre que tais operações, por seu caráter inovador, requerem aperfeiçoamentos na legislação de finanças públicas, para lhes garantir maior segurança, reduzir seus custos, evitar dificuldades operacionais e eliminar potenciais controvérsias jurídicas. Um marco legal mais preciso e específico também tem a vantagem de delimitar mais claramente os contornos desejáveis para tais operações, reduzindo ou até mesmo eliminando a possibilidade de mau uso do instrumento pelos entes federados.”

 Na essência, persiste a natureza jurídica das operações realizadas para captar recursos financeiros junto ao mercado, mediante a cessão onerosa (“venda definitiva”) do direito de receber o crédito, primordialmente, tributário, sem mudar a sua natureza jurídica ou o sujeito ativo do tributo.

Se realmente fosse para valer a conversão plena da titularidade, incontornáveis seriam os proibitivos legais, daí porque se busca tanto a camuflagem da nova modalidade de operação de crédito por antecipação de receita orçamentária. Afinal, para que a natureza da relação jurídica seja mudada, não basta dizer que a cessão de direito creditório não é operação de crédito, como o faz o §4º do artigo 39-A acrescido à Lei. 4320/1964, pois, conforme antigo brocardo latino, ‘verba non mutant substantiam rei’, ou seja, a palavra não muda a substância da coisa.

Para além do nome de que se revista, na essência do negócio, os entes federados tendem a transferir, com grande deságio, o domínio do direito autônomo de recebimento do crédito, enquanto os investidores que adquirirem os ativos securitizados serão os grandes beneficiados na operação.

Principal risco

Nesse sentido, cabe trazer excerto da decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, relativo à licitação do Departamento de Água e Esgotos de Ribeirão Preto (Daerp) que objetivava o implemento de “operação de securitização do fluxo de recuperação de débitos inadimplidos junto ao Daerp”:

“[…] Não bastasse, uma superficial leitura do edital e anexos do Pregão n.º 38/2015 revela disposições tendentes, em tese, a ensejar, a médio prazo, sérios prejuízos ao erário. Isso porque, abstraída a discussão acerca da ainda incerta legalidade da securitização da dívida pública a macular, também em tese, o próprio objeto licitado não há no instrumento convocatório por sinal, dotado de inúmeras expressões vagas e imprecisas, rico em referências e remissões truncadas, além de disposições aparentemente desproporcionais em detrimento do contratante e do interesse público, sem qualquer exigência de garantia de adimplemento pela contratada, por exemplo elementos que permitam aferir, com a segurança necessária não só aos licitantes, como também aos administrados e à própria Administração, os reais e efetivos custos e benefícios advindos do contrato a ser porventura firmado, o que violaria os princípios da publicidade e transparência, além do próprio princípio da licitação.” (TJ-SP, 13ª Câmara de Direito Público, Agravo de Instrumento nº 2117078-25.2016.8.26.0000, relatora: desembargadora Flora Maria Nesi Tossi Silva, j. 15/2/2017, grifos acrescidos ao original).

Por mais que se diga que seriam “venda definitiva de patrimônio público”, as cessões de direitos creditórios para ulterior emissão de valores mobiliários no mercado e captação de recursos, a bem da verdade, constituem operações de crédito, que tendem a frustrar finalisticamente os correspondentes limites da LRF e as vinculações constitucionais que amparam os direitos à saúde e à educação.

Mesmo com a edição da LC 208/2024, persiste a percepção de que o instrumento é opaco e controvertido. O maior risco é que haja o comprometimento intergeracional do orçamento público, até porque os gestores racionalmente tendem a buscar apenas o bônus da receita antecipada no presente, enquanto legam a perda da arrecadação e os encargos de derivativos de securitização para os futuros mandatários e, o mais grave, para o conjunto da sociedade. Às vésperas de um processo eleitoral como o que se avizinha, esse risco é majorado ainda mais, não apenas pelo instinto de sobrevivência política dos atuais incumbentes, mas também porque a LC 208/2024 rompe uma barragem que continha volumoso conjunto de pressões, muitas delas escusas, na gestão das receitas governamentais.

 


[1] Prazo limítrofe dado pelo inciso VII do §1º do art. 39-A acrescido à Lei 4.320/1964 pela LC 208/2024:

“Art. 39-A […]

§1º. Para fins do disposto no caput, a cessão dos direitos creditórios deverá:

[…] VII – realizar-se até 90 (noventa) dias antes da data de encerramento do mandato do chefe do Poder Executivo, ressalvado o caso em que o integral pagamento pela cessão dos direitos creditórios ocorra após essa data.”

[2] Como prevê o §6º do art. 39-A acrescido à Lei 4,320/1964: “§ 6º A receita de capital decorrente da venda de ativos de que trata este artigo observará o disposto no art. 44 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), devendo-se destinar pelo menos 50% (cinquenta por cento) desse montante a despesas associadas a regime de previdência social, e o restante, a despesas com investimentos.”

[3] Cujo inteiro teor é o seguinte: “§ 4º As cessões de direitos creditórios realizadas nos termos deste artigo não se enquadram nas definições de que tratam os incisos III e IV do art. 29 e o art. 37 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), sendo consideradas operação de venda definitiva de patrimônio público.”

[4] Como se pode ler em “As cessões de direitos creditórios realizadas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios em data anterior à publicação desta Lei Complementar permanecerão regidas pelas respectivas disposições legais e contratuais específicas vigentes à época de sua realização”.

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