Opinião

Reforma tributária privilegia venda de dispositivos médicos e prejudica locação

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8 de julho de 2024, 20h45

O texto atual do projeto de regulamentação da reforma tributária, divulgado pelo grupo de trabalho da Câmara, apresenta inconstitucionalidade ao reduzir a carga tributária somente para a venda de dispositivos médicos, mas não estender o mesmo benefício à locação desses dispositivos [1]. Esta diferenciação não está em conformidade com a emenda constitucional que deu início à reforma, além de gerar preocupações sobre a razoabilidade e a eficiência da medida, especialmente quando se considera o impacto na saúde pública e no acesso a equipamentos médicos por pequenos municípios e hospitais privados de menor porte.

Rovena Rosa/Agência Brasil

A venda de dispositivos médicos é uma transação que exige um desembolso significativo de capital por parte do comprador. Para grandes hospitais e centros de saúde em regiões metropolitanas, essa exigência de capital pode ser administrável. No entanto, para pequenos municípios e hospitais privados de menor porte, essa barreira financeira é muitas vezes intransponível. A redução da carga tributária sobre a venda é uma medida positiva, mas não suficiente para democratizar o acesso a esses equipamentos.

Por outro lado, a locação de dispositivos médicos apresenta-se como uma alternativa viável e econômica. A locação requer um investimento inicial significativamente menor em comparação com a compra, permitindo que pequenos municípios e hospitais tenham acesso a equipamentos modernos e de alta tecnologia sem a necessidade de grandes desembolsos de capital.

Além disso, a locação inclui a manutenção dos equipamentos, transferindo a responsabilidade para o locador. Esta característica é particularmente benéfica para instituições que não possuem recursos técnicos para realizar a manutenção adequada dos dispositivos médicos. Segundo o datasus[2], há atualmente no Brasil mais de 7.680 equipamentos ociosos, o que evidencia a ineficiência do modelo de compra, posto que no modelo de locação a ociosidade seria rapidamente resolvida pelo locador, sob pena de não ter receitas de locação.

A exclusão da locação de dispositivos médicos da redução tributária proposta prejudica diretamente os pequenos municípios e hospitais privados, que são muitas vezes os mais necessitados de soluções econômicas para a atualização de seus equipamentos.

A locação permite uma gestão mais eficiente dos recursos disponíveis, possibilitando a renovação contínua e o acesso a tecnologias de ponta, essenciais para a prestação de um serviço de saúde de qualidade.

Para o Sistema Único de Saúde (SUS), a possibilidade de locação com redução tributária poderia acelerar significativamente a renovação e o aumento do parque de equipamentos médicos. A locação oferece uma solução mais flexível e menos onerosa, permitindo que o SUS responda rapidamente às demandas de saúde emergentes. Além disso, a inclusão da manutenção nos contratos de locação garante que os equipamentos permaneçam em condições operacionais ideais, reduzindo o tempo de inatividade e aumentando a eficiência do atendimento.

Locação é menor parte do mercado

Spacca

É importante destacar que atualmente a locação representa uma parte ínfima do mercado de dispositivos médicos, que é majoritariamente dominado pelas operações de venda. Dessa forma, contemplar a locação na redução da carga tributária não deve afetar nenhuma previsão orçamentária, visto que a venda já está contemplada no projeto. Portanto, não há mudança real no orçamento ao incluir a locação nas mesmas condições tributárias favorecidas da venda.

Nos demais artigos que tratam de redução de alíquota [3], o projeto usa a palavra “fornecimento” [4] e não “venda”. A palavra “fornecimento” englobaria também a locação, sugerindo que a exclusão da locação pode ser um mero erro na elaboração do projeto, que ignorou a existência das operações de locação de dispositivos médicos.

Além disso, está claro que os artigos específicos dos dispositivos médicos (artigos 126 e 139) não estão em consonância com os dispositivos gerais (artigos 123 [5] e 138 [6]), que listam os itens sujeitos a redução de alíquota e alíquota zero, sem fazer nenhuma distinção de operações de venda e locação, o que revela a invalidade das limitações para as operações de locação.

Esta invalidade é ainda mais reforçada diante da inexistência de discriminação entre operações de locação e venda pela Emenda Constitucional 132, de 2023, que inaugurou a reforma tributária no ordenamento jurídico nacional.

O artigo 9º [7] da emenda é expresso no sentido de que as operações com dispositivos médicos serão beneficiadas com a redução de 60% da alíquota e que poderão ser beneficiadas com a redução de 100%, não fazendo distinção alguma entre operações de locação e venda. Portanto, privilegiar as operações de venda e onerar as operações de locação representaria patente violação da Constitucional, norma de hierarquia superior, que tornaria inválida a regulamentação da reforma tributária neste ponto e atrairia desnecessário contencioso tributário no âmbito judicial.

Vale notar que, além da locação, o projeto também está excluindo das reduções de alíquota os serviços de manutenção dos dispositivos médicos, o que também não está em conformidade com artigo 9º da Emenda Constitucional 132, de 2023, que atribui os mesmos benefícios para os bens e serviços que lista.

Facilitando o trabalho do governo

Por fim, é relevante lembrar que uma das promessas de campanha do presidente Lula [8] foi reduzir a fila do SUS, sendo tal promessa, inclusive, seguida de uma iniciativa oficial posterior a eleição [9].

Isso seria muito mais fácil com o uso amplo da locação de equipamentos médicos pelo governo, pois permitiria uma atualização mais rápida e eficiente do parque de equipamentos médicos sem a necessidade de concentrar grande parte do capital na aquisição desses equipamentos. A locação possibilitaria ao governo otimizar seus recursos financeiros, focando em outras áreas essenciais da saúde pública.

A Constituição, em seu artigo 196, estabelece que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Além disso, o artigo 197 reforça que “são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”.

Esses artigos ressaltam a obrigação do Estado em assegurar o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde. A inclusão da locação de dispositivos médicos na redução da carga tributária está alinhada com esses preceitos constitucionais, pois facilita o acesso a equipamentos essenciais para a promoção da saúde em todo o território nacional.

A exclusão da locação de dispositivos médicos das hipóteses de redução de alíquotas no âmbito da regulamentação da reforma tributária representa contrassenso e clara violação da emenda constitucional a ser regulamentada. Esta omissão, para além da invalidade jurídica, ignora as vantagens econômicas e operacionais da locação, particularmente para pequenos municípios, hospitais privados de menor porte e o próprio SUS.

Para que a reforma tributária alcance seu pleno potencial de promover a eficiência e equidade no acesso a equipamentos médicos, é imperativo que a locação de dispositivos médicos seja incluída na redução da carga tributária. Somente assim será possível garantir que todos os setores da saúde possam se beneficiar de maneira justa e equilibrada, promovendo uma melhoria significativa na qualidade do atendimento à saúde no Brasil, em consonância com os princípios constitucionais que tratam a saúde como um direito de todos os cidadãos.

 


[1] Art. 126.  Ficam reduzidas em 60% (sessenta por cento) as alíquotas do IBS e da CBS incidentes sobre a venda dos dispositivos médicos relacionados no Anexo IV, com a especificação das respectivas classificações da NCM/SH. …  Art. 139. Ficam reduzidas a zero as alíquotas do IBS e da CBS incidentes sobre a venda dos dispositivos médicos relacionados:

[2] CnesWeb – Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (datasus.gov.br)

[3]  Art. 127. Ficam reduzidas em 60% (sessenta por cento) as alíquotas do IBS e da CBS incidentes sobre o fornecimento dos dispositivos de acessibilidade próprios para pessoas com deficiência relacionados no Anexo V, com a especificação das respectivas classificações da NCM/SH. …  Art. 137. Ficam reduzidas em 60% (sessenta por cento) as alíquotas do IBS e da CBS sobre o fornecimento, à administração pública direta, autarquias e fundações púbicas, dos serviços e dos bens relativos a soberania e segurança nacional, segurança da informação e segurança cibernética relacionados no Anexo XII, com a especificação das respectivas classificações da NBS e da NCM/SH.  … Art. 140. Ficam reduzidas a zero as alíquotas do IBS e da CBS incidentes sobre o fornecimento dos dispositivos de acessibilidade próprios para pessoas com deficiência relacionados: …

[4] Art. 3º  Para fins desta Lei Complementar, consideram-se: I – bem: qualquer bem material ou imaterial, inclusive direito; II – fornecimento: a) entrega ou disponibilização de bem material; b) instituição, aquisição, transferência, cessão, concessão, licenciamento ou disponibilização de bem imaterial, inclusive direito; c) prestação ou disponibilização de serviço;

[5] Art. 123.  Ficam reduzidas em 60% (sessenta por cento) as alíquotas do IBS e da CBS incidentes sobre operações com os seguintes bens e serviços, desde que observadas as definições e demais disposições deste Capítulo: … III – dispositivos médicos;

[6] Art. 138.  Ficam reduzidas a zero as alíquotas do IBS e da CBS incidentes sobre operações com os seguintes bens e serviços, desde que observadas as definições e demais disposições deste Capítulo: I – dispositivos médicos;

[7] Art. 9º A lei complementar que instituir o imposto de que trata o art. 156-A e a contribuição de que trata o art. 195, V, ambos da Constituição Federal, poderá prever os regimes diferenciados de tributação de que trata este artigo, desde que sejam uniformes em todo o território nacional e sejam realizados os respectivos ajustes nas alíquotas de referência com vistas a reequilibrar a arrecadação da esfera federativa. § 1º A lei complementar definirá as operações beneficiadas com redução de 60% (sessenta por cento) das alíquotas dos tributos de que trata o caput entre as relativas aos seguintes bens e serviços: I – serviços de educação; … III – dispositivos médicos; … § 3º A lei complementar a que se refere o caput preverá hipóteses de: I – isenção, em relação aos serviços de que trata o § 1º, VII; II – redução em 100% (cem por cento) das alíquotas dos tributos referidos no caput para: a) bens de que trata o § 1º, III a VI;

[8] Na Saúde, reduzir filas do SUS é prioridade de Lula – Vermelho

[9] Lula lança programa para redução de filas com R$ 600 mi para estados e municípios — Planalto (www.gov.br)

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