ERROU, PAGOU

Imunidade do presidente por atos oficiais é menor no Brasil do que nos Estados Unidos

Autor

8 de julho de 2024, 8h52

A Suprema Corte dos Estados Unidos, de certa forma, ampliou a imunidade do presidente do país na última segunda-feira (1º/7). No Brasil, por outro lado, a blindagem ao chefe do Poder Executivo é bem mais restrita. E o Supremo Tribunal Federal, ao longo dos anos, impôs limites a atos que extrapolem as competências do cargo.

Donald Trump

Suprema Corte disse que Trump pode ter imunidade por contestar eleições de 2020

A decisão do tribunal americano se deu no caso Trump v. United States, em que o ex-presidente, e novamente candidato ao cargo, Donald Trump responde criminalmente pela tentativa de subverter o resultado das eleições de 2020 — que culminou na invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021.

A Suprema Corte decidiu, por 6 votos a 3, reenviar o processo para a juíza de primeira instância para ela decidir quais acusações contra Trump são válidas e quais devem ser descartadas — de acordo com o entendimento do tribunal sobre a imunidade de ex-presidentes.

O voto da maioria dos magistrados dividiu em três partes a resposta à questão apresentada pela defesa de Trump: ex-presidentes têm imunidade absoluta contra todo e qualquer processo criminal? O entendimento que prevaleceu foi o de que ex-presidentes:

1) Têm imunidade absoluta por seus atos no exercício de seus poderes constitucionais essenciais (ou no âmbito de sua autoridade constitucional conclusiva e preclusiva);

2) Têm pelo menos uma presunção de imunidade por (quaisquer outros) atos oficiais;

3) Não têm imunidade alguma por seus atos não oficiais.

Assim, a Suprema Corte atribuiu à juíza federal Tanya Chutkan, que preside o julgamento de Trump no caso das tentativas do ex-presidente de anular o resultado das eleições de 2020, a missão de decidir quais, entre as acusações, referem-se a atos oficiais e quais são atos não oficiais.

Repercussão negativa

O entendimento fixado pela Suprema Corte gerou fortes críticas de políticos e juristas. O principal argumento é de que a imunidade por atos oficiais torna o presidente um cidadão acima da lei, uma espécie de rei — algo rejeitado pela Declaração de Independência e pela Constituição dos EUA, no século 18.

A ministra Sonia Sotomayor escreveu no voto dissidente, ao qual aderiram as duas outras ministras liberais da corte, Elena Kagan e Ketanji Brown Jackson, que “a decisão da maioria que garante ao ex-presidente imunidade criminal reforma a instituição da Presidência”. “Ela zomba do princípio, fundamental para nossa Constituição e para o sistema de governo, de que nenhum homem está acima da lei”, continuou a magistrada.

Sotomayor ironizou o fato de a decisão da maioria ter ignorado um princípio inventado pelo ministro Samuel Alito na decisão que extinguiu o direito ao aborto em todo o país. Ela escreveu que a imunidade para atos oficiais “não tem base sólida no texto constitucional, nem na história ou precedente”.

A magistrada elencou uma série de atos que o presidente poderá praticar sem ser responsabilizado por eles, de acordo com a tese da maioria. Entre esses atos, ordenar que militares assassinem um político rival, organizar um golpe militar para permanecer no poder ou receber propina em troca de conceder perdão a alguém.

“A relação entre o presidente e as pessoas que ele serve mudou irrevogavelmente. Em cada uso do poder oficial, o presidente é agora um rei acima da lei”, declarou Sotomayor.

No Brasil é diferente

No Brasil, o presidente da República, durante o mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções, conforme diz o artigo 86, parágrafo 4º, da Constituição Federal.

Porém, o chefe do Executivo pode ser submetido a julgamento por crimes comuns (no Supremo Tribunal Federal) ou de responsabilidade (no Senado), desde que admitida a acusação por dois terços da Câmara dos Deputados.

Os ex-presidentes Fernando Collor e Dilma Rousseff foram condenados por crimes de responsabilidade e perderam o cargo. Já o ex-presidente Michel Temer foi denunciado por crimes comuns pela Procuradoria-Geral da República duas vezes durante seu mandato, mas a Câmara impediu a abertura de ação penal nos dois casos.

Quando o presidente deixa o cargo, pode responder por atos que praticou no exercício da função, e o processo tramitará no foro competente. Por exemplo, o ex-presidente Jair Bolsonaro é investigado no STF pelos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 e por omissão durante a epidemia de Covid-19. Além disso, ele foi condenado pela Justiça paulista, em primeira e segunda instâncias, por ofender jornalistas e declarado inelegível duas vezes pelo Tribunal Superior Eleitoral por disseminar fake news sobre as urnas eletrônicas a embaixadores e pelo uso dos festejos de 7 de setembro em prol de sua campanha à reeleição.

Ou seja, a imunidade do presidente do Brasil é bem mais restrita do que a do seu colega dos EUA, conforme a decisão da Suprema Corte, segundo Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ele ressalta que o prazo prescricional para os atos praticados no exercício do cargo de chefe do Executivo brasileiro só começa a contar após o fim do mandato.

O jurista Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá, critica a ampliação da imunidade do presidente dos EUA.

“A decisão da Suprema Corte é inusitada e bizarra. Transforma o presidente em rei absolutista (the king can do no wrong) para atos oficiais. Quer dizer: se ele mandar invadir o Brasil, não poderá ser punido por isso. Nem se tentar um golpe de Estado. Por aqui, o STF não tem histórico nesse sentido.”

Freio do STF

Pelo contrário: o Supremo, em diversas ocasiões, restringiu o poder do presidente da República, anulando atos que considerou terem extrapolado as competências do cargo.

O STF barrou as indicações de Luiz Inácio Lula da Silva para ministro da Casa Civil e de Cristiane Brasil para ministra do Trabalho, feitas respectivamente por Dilma e Temer. A corte entendeu que havia desvio de finalidade nas nomeações e ofensa ao princípio da moralidade administrativa.

Com fundamento semelhante, o Supremo anulou a graça concedida por Bolsonaro ao ex-deputado federal Daniel Silveira, condenado por ameaçar ministros do tribunal. O STF entendeu que a concessão de perdão a aliado político pelo simples vínculo de afinidade pessoal e ideológica não é compatível com os princípios norteadores da administração pública. Além disso, avaliou que o indulto não pode ser conferido com o objetivo de atacar outro poder de Estado.

Por concluir que a extinção da pena de condenados por corrupção e por envolvimento no massacre do Carandiru contrariava o interesse público, o Supremo anulou trechos dos indultos natalinos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Após idas e vindas, a corte validou o decreto de Temer, entendendo que é prerrogativa do presidente da República conceder indultos sem que sofra interferências do Judiciário.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!