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Coisa julgada, mudança do Estado de Direito e precedentes vinculantes

7 de julho de 2024, 8h00

Por Mary Elbe Queiroz, Antonio Carlos de Souza Jr.

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O tema da coisa julgada nas relações de trato sucessivo, especialmente no âmbito tributário, vem, ao longo das últimas duas décadas, sendo objeto de muitos debates doutrinários e “encontros/desencontros jurisprudenciais”, que afetou profundamente a prática jurídica tributária. Recentemente, a questão foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos Temas nº 881 e nº 885.  [1]

Em linhas gerais, a dificuldade em se chegar a um consenso decorre da baixa compreensão da comunidade jurídica (senso comum jurídico) sobre a existência de regimes distintos da coisa julgada, qual seja: (i) coisa julgada nas relações estáticas (período determinado); (ii) coisa julgadas nas relações estabilizadas processualmente com efeitos futuros (período indeterminado).

Outro aspecto que dificulta a harmonia é a compreensão de que, no sistema jurídico brasileiro atual, a edição de alguns precedentes qualificados como vinculantes pela Constituição Federal, pela legislação processual civil e pela legislação tributária poderão modificar o estado de direito até então estabilizado, com possíveis consequências ao regime da coisa julgada nas relações com efeitos futuros. O tema foi analisado com profundidade em alguns estudos dos autores, motivo pelo qual não pretendemos retomar toda a discussão [2].

A definição da questão pelo STF nos Temas nº 881 e nº 885 não eliminou todas as discussões. O reconhecimento do precedente do STF como uma mudança de estado de direito abriu o questionamento a respeito dos efeitos dos demais precedentes vinculantes previstos no artigo 927 do CPC sobre o sistema jurídico, especialmente os precedentes vinculantes do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

No contexto das relações estáticas, a legislação processual, especialmente no campo do cabimento da ação rescisória, considera as manifestações vinculantes dos tribunais superiores (STF e STJ) como elemento fundamental para solução do caso concreto, isto é, não observar a interpretação vinculante equivale a violar manifestamente a norma jurídica.

Infelizmente, o artigo 505 [3] do CPC não foi dotado de parágrafo semelhante ao artigo 966, §5º [4], motivo pelo qual não se estabeleceu com clareza se o precedente vinculante do STJ pode ser considerado uma mudança do estado de direito para fins de definição dos marcos temporais da coisa julgada nas relações de trato sucessivo.

Todavia, a resposta pode ser encontrada nos mecanismos de vinculação dos precedentes judiciais criados pela própria legislação tributária dos entes federativos. No âmbito da União, é possível identificá-los em legislação administrativa própria, como, por exemplo, os artigos 19 e 19-A da Lei nº 10.522/2002.

No artigo 19, inciso VI, e artigo 19-A da Lei nº 10.522/2002, o precedente do STJ em matéria infraconstitucional e julgado em sede de recurso repetitivo possui o condão de alterar a dinâmica da tributação na medida em que pode vincular a Receita Federal e a própria Procuradoria da Fazenda Nacional. Todavia, não é a simples edição do precedente que promove tal vinculação. A própria norma que instituiu o mecanismo de vinculação dispõe sobre as formalidades que devem ser observadas no âmbito da administração tributária federal para sujeição ao entendimento vinculante.

Mudança de Estado de Direito

Em suma, em exercício sistemático de interpretação da legislação processual e tributária, é possível concluir que apenas os precedentes do STJ em recursos repetitivos em matéria estritamente infraconstitucional poderão ser qualificados como uma mudança do Estado de Direito, desde que assumam uma feição estritamente infraconstitucional e sejam revestidos das formalidades exigidas pela legislação.

No entanto, há uma questão de ordem constitucional que deve ser considerada para o enfrentamento do tema, qual seja: a repartição constitucional das competências dos tribunais superiores, notadamente a divisão entre o STJ (matéria infraconstitucional) e STF (matéria constitucional).

Isso porque, no desenho institucional realizado pela Constituição, o STJ (artigo 105 da CF) ficou com a competência de uniformizar a interpretação da legislação infraconstitucional, especialmente no contexto do julgamento do recurso especial. Ao STF coube a função de guardião da Constituição, especialmente exercida com o julgamento de ações diretas e recursos extraordinários (artigo 102 da CF). O mencionado desenho possibilita, como sabido, a interposição simultânea de recursos especial e extraordinário, bem como o manejo do extraordinário em decorrência de decisão do STJ (CPC — artigo 1.029 e seguintes).

Essa peculiaridade institucional permite que uma questão julgada em sede de recursos repetitivos pelo STJ (precedente vinculante conforme artigo 927, inciso III [5], do CPC) seja levada, por meio do recurso extraordinário, ao STF, que analisará a existência ou não de questão constitucional.

O contexto acima suscita uma discussão se o precedente repetitivo do STJ poderá configurar, por si só, uma mudança do estado de direito ou necessitará de uma verificação posterior do STF sobre a existência de questão constitucional. Em outras palavras, após a edição do precedente do repetitivo do STJ, a modificação do estado de direito se opera ou deve aguardar a manifestação da corte sobre eventual questão constitucional suscitada em recurso extraordinário? E mais, caso o STF reconheça a existência de questão constitucional e repercussão geral, a configuração da mudança do estado de direito deveria aguardar o julgamento definitivo da questão pelo STF?

Entendemos que somente haverá a mudança do estado de direito em virtude de precedente vinculante editado pelo STJ quando o STF reconhecer a ausência de questão constitucional e/ou repercussão geral passível de atrair a competência do tribunal. Caso seja reconhecida a existência de questão constitucional/repercussão geral, a mudança do estado de direito somente ocorrerá após o julgamento da questão pelo plenário do STF, ainda que a solução jurídica adotada seja idêntica àquela editada pelo STJ.

Para ilustrar a questão, destacamos a discussão envolvendo a incidência do IPI na revenda de produtos importados. O STJ, em julgamento de recurso repetitivo (Tema 912 [6]) ocorrido em 2015, definiu que os produtos importados estão sujeitos a uma nova incidência nas saídas para revenda do estabelecimento importador, mesmo que não tenha sido submetido a processo de industrialização no Brasil. Após o julgamento, o STF reputou existente questão constitucional e afetou o caso para julgamento no Plenário, motivo pelo qual a questão foi julgada sob o regime de repercussão geral (Tema 906 [7]) em 2020.

Como visto, a decisão do STF analisou a questão na ótica constitucional e concluiu pela possibilidade de incidência do IPI na revenda de produtos importados, isto é, o resultado foi no mesmo sentido do repetitivo firmado pelo STJ. Porém, a definição de qual o momento da modificação do estado de direito impacta diretamente o recolhimento do tributo, visto que existe um intervalo temporal de aproximadamente 5 anos entre a decisão do STJ e a do STF.

Ao nosso sentir, o momento exato da modificação do estado de direito foi a decisão emanada pelo STF. Inclusive, no julgamento da Ação Rescisória nº 6.015, a Primeira Seção do STJ considerou que a mudança do estado de direito somente ocorreu com a publicação da ata de julgamento do precedente do STF submetido ao rito da repercussão geral (RE 946.648).

O problema fica ainda mais complexo quando analisamos a possibilidade de a jurisdição constitucional ser provocada por uma ação direta (ADC, ADI e ADPF). Em tal situação, a modificação do estado de direito somente poderá ocorrer após o julgamento realizado pelo STF, ainda que o mérito da ação não tenha sido apreciado.

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[1] Recurso Extraordinário 949.297 — Tema 881: 1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.

Recurso Extraordinário 955.227 — Tema: 885: 1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.

[2] Cf. SOUZA JÚNIOR, Antonio Carlos de. Coisa julgada nas relações tributárias sucessivas e a mudança do estado de direito decorrente do precedente do STF.  In: Novo CPC: doutrina selecionada. vol. 2: processo de conhecimento e disposições finais e transitórias. DIDIER JÚNIOR, Fredie et al. Salvador: Juspodivm, 2015. QUEIROZ, Mary Elbe. SOUZA JÚNIOR, Antonio Carlos de. Necessidade de ação de modificação para sustação da coisa julgada nas relações de trato sucessivo. In: Estudos de direito processual e tributário em homenagem ao ministro Teori Zavascki. Belo Horizonte: D’Plácido Editora, 2018. QUEIROZ, Mary Elbe. SOUZA JÚNIOR, Antonio Carlos de. Coisa julgada nas relações tributárias sucessivas e a mudança do Estado de Direito decorrente do Precedente do STF: limites jurídicos para aplicação no âmbito do CARF. In: Segurança jurídica: irretroatividade das decisões judiciais prejudiciais aos contribuintes. Sacha Calmon Navarro Coelho (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2013.p.147-174. QUEIROZ, Mary Elbe. SOUZA JÚNIOR, Antonio Carlos de. Coisa julgada tributária, mudança do estado de direito e precedentes vinculantes do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: Mary-Elbe-Queiroz_Antonio-Souza.pdf (ibet.com.br)

[3] Art. 505. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo:

I – se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;

II – nos demais casos prescritos em lei.

[4] Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:

V – violar manifestamente norma jurídica;

  • 5º Cabe ação rescisória, com fundamento no inciso V do caputdeste artigo, contra decisão baseada em enunciado de súmula ou acórdão proferido em julgamento de casos repetitivos que não tenha considerado a existência de distinção entre a questão discutida no processo e o padrão decisório que lhe deu fundamento.

[5] Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

[6] EREsp 1.403.532 – Tema 912/STJ: Os produtos importados estão sujeitos a uma nova incidência do IPI quando de sua saída do estabelecimento importador na operação de revenda, mesmo que não tenham sofrido industrialização no Brasil.

[7] Recurso Extraordinário 946.648 – Tema 906/STF: Violação ao princípio da isonomia (art. 150, II, da Constituição Federal) ante a incidência de IPI no momento do desembaraço aduaneiro de produto industrializado, assim como na sua saída do estabelecimento importador para comercialização no mercado interno.