Opinião

Boa-fé objetiva no anteprojeto de reforma do Código Civil

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7 de julho de 2024, 17h24

No mito de Creso, o governante mítico da região da Lídia, na Ásia Menor, teria perguntado ao oráculo de Delfos se deveria ir à guerra contra os persas. Eis o prognóstico: se a Lídia atacasse a Pérsia, um grande império cairia. O rei interpretou a profecia como certeza da derrota inimiga. Foi, no entanto, somente após a destruição do reino da Lídia, em decorrência da guerra contra os persas, que Creso percebeu a armadilha: o oráculo jamais se referira à destruição da Pérsia, mas à do próprio país de Creso. [1]

Spacca

O mito do rei dos lídios nos chama a atenção para o poder das palavras: significados diversos podem ser extraídos de uma mesma frase e, muitas vezes, mudanças vocabulares sutis são capazes de provocar grandes alterações de sentido. É preciso refletir com cuidado sobre as implicações interpretativas das palavras que escolhemos, em particular se estivermos discutindo normas jurídicas. Afinal, o legislador não faz uso de palavras inúteis, como nos ensina consagrado princípio da hermenêutica jurídica.

É com este olhar que nos propomos a analisar algumas modificações às normas atinentes à boa-fé objetiva sugeridas pela comissão de juristas que preparou o anteprojeto de reforma do Código Civil apresentado ao Senado em abril deste ano.

A boa-fé objetiva — com matriz no princípio constitucional da solidariedade social — incide sobre as mais diversas relações jurídicas. Impõe às partes deveres de conduta, limita o exercício de direitos, bem como estabelece determinados parâmetros para interpretação dos negócios jurídicos. Deve fazer-se presente na fase de negociação dos contratos, no momento de sua celebração, durante sua execução e, também, no período de eficácia pós-contratual. Portanto, quaisquer alterações, ainda que singelas, às regras que determinam o “modus operandi” da boa-fé objetiva podem ter repercussões sistêmicas.

No direito, as palavras são, antes de tudo, performáticas, isto é, dotadas de eficácia jurídica própria. Diante de modificações legislativas — ainda mais quando versam sobre disposições que compõem o centro gravitacional do direito obrigacional brasileiro, como é o caso da boa-fé objetiva — cabe ao intérprete identificar as novas potencialidades normativas e averiguar a configuração de um novo modelo jurídico.

A ideia de modelo se diferencia do que se entende por “fontes” do direito. Enquanto as fontes são estáticas, os modelos são dinâmicos, caracterizando o conteúdo das estruturas normativas formadas a partir das fontes do direito. Assim é que as modificações legislativas — mesmo quando alegadamente pensadas para consolidar entendimentos já sedimentados — têm o condão de produzir eficácias sociais próprias, sequer originalmente cogitadas quando da proposição de alteração a determinada lei [2].

Não por outra razão, a modificação nas disposições sobre a boa-fé objetiva inseridas no Código Civil — antes de conservar de modo estático a visão atual — tem propulsão modeladora, trazendo novas cargas de eficácia. Com isso em mente, nossa atenção deve recair sobre as propostas de modificação do artigo 422 do Código Civil — a chamada cláusula geral de boa-fé — e inclusão do artigo 422-A ao diploma normativo.

O artigo 422, na nova redação do anteprojeto de reforma, passaria a dispor que “os contratantes são obrigados a guardar os princípios da probidade e da boa-fé nas tratativas iniciais, na conclusão e na execução do contrato, bem como na fase de sua eficácia pós-contratual”. O artigo 422-A, por sua vez, teria o seguinte enunciado: “os princípios da confiança, da probidade e da boa-fé são de ordem pública e sua violação gera o inadimplemento contratual.

Em leitura apressada, pode parecer que as modificações sugeridas não estão apartadas da visão dominante sobre a boa-fé objetiva. Afinal, é amplamente reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência a atuação da boa-fé objetiva tanto na fase pré-contratual quanto na pós-contratual; igualmente, o caráter de ordem pública da boa-fé objetiva não gera maiores debates; por fim, não há dúvidas de que, durante a execução do contrato, a violação de deveres derivados da boa-fé objetiva caracteriza inadimplemento contratual — seja mora (se atrelada à violação de dever derivado da boa-fé objetiva ligado a interesse de prestação), seja a violação positiva do contrato (quando há violação de dever derivado da boa-fé objetiva atrelado a interesse de proteção).

Caráter performático dos conceitos jurídicos

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No entanto, a potencialidade normativa das modificações propostas é significativamente mais ampla. A leitura conjunta dos dispositivos traz questionamentos sobre a natureza da violação dos deveres derivados da boa-fé objetiva na fase pré-contratual e na fase pós-contratual. O artigo 422-A, na redação proposta, qualifica, indiscriminadamente, a violação de deveres decorrentes da boa-fé objetiva como “inadimplemento contratual”.

Eis o caráter performático dos conceitos jurídicos. Se é essa a qualificação proposta no anteprojeto de reforma, sem haver maiores distinções, parece que o direito brasileiro passará a se filiar à visão contratualista da culpa in contrahendo.

É indubitável que a natureza da responsabilidade pré-contratual é fruto de debate. Em parecer publicado antes da vigência do Código Civil de 2002, Antônio Junqueira de Azevedo sustentou a natureza contratual da responsabilidade atrelada à violação de deveres pré-contratuais [3].

Judith Martins-Costa, diversamente, sustenta que, diante da inexistência de vínculo contratual, a tutela dos interesses se dará mediante os quadros dogmáticos propostos pela responsabilidade civil extracontratual [4], posição que pareceu prevalecer, até agora, em termos doutrinários.

No entanto, tudo indica que o propósito do legislador foi contratualizar tanto a responsabilidade pré-contratual quanto a responsabilidade pós-contratual, afastando-as dos quadros da responsabilidade aquiliana. Nesse sentido, estaria configurado um novo modelo prescritivo acerca de tais institutos. E, consequentemente, há a potencialidade de trazer aos casos de violações de deveres decorrentes da boa-fé nas fases pré e pós-contratual todo o arcabouço próprio da teoria do inadimplemento — que vai desde a presunção de culpa, necessidade de interpelação em caso de mora ex persona, até os consectários da mora.

É curioso que tal modificação abrupta de posicionamento tenha carecido de maiores justificativas, módicas ao explicar que “a boa-fé mantém seu papel de destaque no direito contratual, com eficácia pré-contratual, contratual e pós-contratual a guiar as partes e a credenciar determinadas reações do direito, como as provenientes do inadimplemento (arts. 422 e 422-A)”.

Para além da atribuição de natureza contratual à responsabilidade pré-contratual (e pós-contratual), o anteprojeto prevê, indistintamente, o inadimplemento como consequência jurídica para violações a deveres derivados da boa-fé objetiva. É questionável a compatibilidade deontológica do arcabouço do inadimplemento com determinadas figuras, tipicamente derivadas do artigo 422 do Código Civil, como o dever de renegociar e o dever de mitigação do próprio prejuízo.

Mitigação de prejuízos

Em termos práticos: se o dever de mitigação de prejuízos é um dever de proteção derivado da boa-fé objetiva, a sua não observância ensejará inadimplemento caso aprovada a alteração proposta no anteprojeto de reforma. No entanto, parece haver incompatibilidade entre os remédios tipicamente associados ao inadimplemento contratual e o dever de mitigar os prejuízos, cuja atuação é precipuamente na fase de quantificação do dano indenizável, quando da sua liquidação.

Perde-se, portanto, a flexibilidade que tipicamente marcou o desenvolvimento da cláusula geral da boa-fé objetiva no direito brasileiro. Se o intuito do Código Civil de 2002 foi a consagração de um modelo jurídico aberto, que permitisse ao intérprete a contínua ressignificação e adaptação da boa-fé à luz do caso concreto, o propósito da Reforma traz amarras ao prever uma única consequência jurídica (inadimplemento) para um vasto manancial de situações jurídicas de violação de deveres derivados da boa-fé objetiva nas diversas fases do vínculo obrigacional.

Outro problema de ordem prática é o prazo prescricional aplicável. Havendo, conforme a proposta prevista no anteprojeto de reforma, configuração de inadimplemento de dever pré-contratual, incidirá o prazo prescricional decenal (caso não seja aprovada a unificação do prazo prescricional em cinco anos). Assim, um caso de culpa in contrahendo, derivado de omissão de informação na fase pré-contratual, poderá resultar em pretensão indenizatória até dez anos depois do fato.

Igualmente, havendo configuração de inadimplemento contratual que possa colocar em xeque o interesse útil do credor, restará em aberto a possibilidade de resolução do contrato formado após a omissão de informação devida no período pré-contratual. E, diante da previsão do caráter de ordem pública da norma e, portanto, da indisponibilidade do remédio previsto (inadimplemento), cláusulas de sole remedy poderão tornar-se impotentes para impedir a desconstituição do vínculo contratual, até dez anos após a sua formação, diante da violação de dever pré-contratual de informar. Estaríamos admitindo patente insegurança jurídica.

Em síntese, as propostas de modificação do modelo jurídico previsto para a boa-fé objetiva no Código Civil, tal como constam do anteprojeto de reforma elaborado no Senado, suscitam algumas perguntas, descritas, de forma não exaustiva, nestas breves notas, com as quais os intérpretes poderão se deparar em casos práticos. Antes de propor qualquer resposta definitiva, nossa preocupação foi a de demonstrar que modificações na disposição considerada o centro gravitacional do direito obrigacional brasileiro, muito diferente da hipótese de serem inofensivas ou apenas consolidarem determinado entendimento doutrinário, têm o condão de produzir um novo modelo prescritivo, dotado de cargas eficaciais próprias e geradoras de dúvidas sobre as quais doutrina e jurisprudência terão de meditar antes de ensaiar qualquer resposta.

Talvez esta reflexão, se feita em momento ainda preliminar da discussão do anteprojeto de reforma, auxilie o legislador na tomada de decisões conscientes, seja para afirmar ou para negar a redação proposta para os artigos 422 e 422-A do Código Civil. Compreender os impactos de um novo modelo jurídico traz os mesmos desafios que Creso teve ao interpretar as palavras do oráculo de Delfos. Assim como na profecia, a novidade proposta pela alteração legislativa pode parecer positiva, mas o verdadeiro sentido e os impactos dela decorrentes somente poderão ser averiguados ex post, quando poderá ser muito tarde, como percebeu o rei dos lídios após o destino já ter sido decidido em favor dos persas.

 


[1] Conforme relatos do historiador clássico Heródoto, em seu livro “Histórias”.

[2] À luz da teoria tridimensional do direito proposta por Miguel Reale, em termos analíticos, a estrutura do modelo jurídico irá pressupor: a) dado campo de atos ou fatos da experiência social; b) uma ordenação normativa racionalmente garantida; c) o propósito de realizar valores ou impedir desvalores, de conformidade com a natureza de cada porção de realidade objeto da investigação científica, vide: REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito. Para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 48.

[3] “Pessoalmente, tendo em vista nossa idéia de que o contrato é um processo (uma sucessão de “tempos”, como ocorre com o próprio negócio jurídico), que vai, desde a fase pré-contratual, passando à fase contratual, distribuída em três fases menores (conclusão do contrato, eficácia do contrato e execução/adimplemento do contrato), e indo até a fase pós-contratual, todas subordinadas à boa-fé objetiva, pensamos que, embora surgindo de ato ilícito, a responsabilidade pré-contratual, por se tratar de descumprimento de deveres específicos, gerados pela boa-fé objetiva, deva se submeter ao tratamento da responsabilidade contratual; haverá lugar, portanto, para presunção de culpa, capacidade contratual, prescrição idem etc… Os danos emergentes e os lucros cessantes devem ser os do interesse negativo.” (AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Responsabilidade Pré-Contratual no Código de Defesa do Consumidor: estudo comparativo com a responsabilidade pré-contratual no direito comum. Revista de Direito do Consumidor, vol. 18, p. 23-31, abr./jun. 1996, DTR n.º 1996/162, p. 2).

[4] MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: Critérios para a sua Aplicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 420.

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