Opinião

Overruling do precedente Chevron inaugura novo e incerto tempo do Judiciário

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6 de julho de 2024, 6h05

No último 28 de Junho, a Suprema Corte dos Estados Unidos sepultou a doutrina Chevron. Desde 1984, a doutrina originada do julgado Chevron USA Inc v.  Natural Resources Defense Council impôs um dever de contenção do Judiciário ao apreciar decisões dos órgãos administrativos, quando tomadas dentro da margem conferida pelo legislador.

Floriano de Azevedo Marques

Mais do que uma deferência judicial à capacidade técnica das agências, o precedente consolidou o chamado “Estado Administrativo”. Com ele, reconheceu-se ao executivo um espaço próprio e alargado para definir parâmetros regulatórios não limitados às permissões explícitas da lei.

Não é exagerado dizer que em grande parte a independência das agências norte-americanas foi construída a partir deste precedente. Só para se ter uma ideia da sua importância, em pouco mais de 20 anos (até 2005), o precedente havia sido citado, só em julgados da Suprema Corte, 7.233 vezes, superando Marbury v. Madison.

Porém, na decisão do caso Loper Bright Enterprises Et Al. V. Raimondo, por 6 a 3, a Corte decidiu por superar Chevron. Na verdade, foi além de negar que o Judiciário deva deferência à interpretação técnica que um órgão executivo dê à lei ou à sua capacidade de preencher os vácuos deixados pelo legislador.

A nova decisão afirma que as cortes “não podem aquiescer deferentemente com a interpretação de uma agência simplesmente por que a lei é ambígua”.   Na prática, isso significa negar a discricionariedade técnica das agências, ao mesmo tempo em que lhes retira a competência integrativa sobre as franjas deixadas pelo legislador. A decisão, portanto, não apenas afasta o dever de deferência.

Gustavo Binenbojm

Ela interdita a competência regulamentar supletiva sobre campos sujeitos a conceitos indeterminados ou mesmo à discrição técnica. O precedente Loper Bright inaugura, assim, uma nova era de intrusão judicial na esfera administrativa e de exigência por normas editadas pelo legislador.

Com o que foi decidido em Loper Bright, a configuração do Estado-administrativo americano retrocede para antes do advento de Chevron. Como se dava na Era Lochner, vigente até o New Deal, o Judiciário reassume o papel de definir os parâmetros corretos para preencher lacunas normativas deixadas pelo legislador.

Visão simplista

Alguns analistas se apressam em dizer que a decisão é fruto da composição atual da Suprema Corte, mais conservadora, ou do alinhamento de juízes com o movimento trumpista. Esta é uma simplificação. Ao longo dos últimos 40 anos, juízes mais conservadores defenderam a aplicação de Chevron.

Um dos seus maiores defensores foi o juiz Scalia, conservador indiscutível. Atos administrativos dos governos Bush e Reagan foram preservados com o emprego da doutrina. Igualmente, a superação do precedente pode ser um problema para um eventual novo governo Trump.

Se, vencedor, o republicano vier a implementar sua anunciada reforma radical na arquitetura administrativa do Executivo (reinaugurando o spoil sistem do século 19 para, como tem afirmado, sepultar o deep State), um governo Trump poderá ter seus atos questionados e desconstituídos por um juiz federal, sem qualquer deferência á natureza técnica da decisão.

Difícil dizer, neste momento, quais serão os efeitos concretos de Loper Bright no funcionamento dos poderes nos EUA. Mas, a contar pela influência de Chevron, não será pouco. Desde já, porém, é possível antever dois problemas. Um, foi já apontado no voto divergente da Justice Elena Kagan: o deficit de conhecimento do juiz para decidir (e, no caso a ele submetido, normatizar) questões que envolvem expertise técnica. Como registrado no seu voto, “juízes não são especialistas no campo [posto para decisão]”.

O outro problema é que, sob o pretexto de reforçar o poder do legislador, Loper Bright confere ao Judiciário um poder extraordinário: preencher as zonas de sombra deixadas pela lei, avocando a si a discricionariedade administrativa. Afora conferir um poder desproporcional, o precedente poderá produzir uma fragmentação decisória especialmente inconveniente num modelo de Estado federativo como o americano.

Como dito, é cedo para avaliarmos os efeitos da superação de Chevron. Até porque Loper Bright acena com algum grau remanescente de respeito pelas  interpretações e avaliações feitas pela Administração, embora sem clareza quanto aos critérios. Já o seu impacto no Brasil merecerá um texto a parte. Até porque, por aqui, a teoria da deferência só tem sido aplicada quando conveniente. Mas algo já desponta nessa terceira década do século 21: após Loper Bright, possivelmente veremos surgir um Estado-judicial.

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