Diário de Classe

Menos revolução e mais Constituição!

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6 de julho de 2024, 8h00

Afinal, como sempre diz o professor Lenio Streck: cumprir a Constituição é hoje uma atitude revolucionária! O texto que escrevo hoje é uma resposta à parte da academia que acredita que estamos em um mato sem cachorro teórico se, no fim das contas, não propormos uma revolução que acabe com a instituição burguesa do Direito. É uma provocação às ideias “revolucionárias” de intelectuais como Vladimir Safatle, Alysson Mascaro e Silvio Almeida que afirmam que, sem uma revolução de tendência proletária, não teremos mudanças substantivas em nossa realidade social. O que esses autores têm em comum? Todos são adeptos de um realismo jurídico de tendência marxista que ressuscita ideias do jurista soviético Evguiéni Pachukanis.

De maneira sintética: Pachukanis apresentava uma visão distinta sobre o Estado e o Direito dentro da teoria marxista. Ele concordava com outros marxistas que o Estado e o Direito têm um caráter de classe e estão intrinsecamente ligados ao processo de exploração do trabalho. No entanto, Pachukanis propõe que esses elementos não são meros instrumentos de domínio de classe em geral, mas são específicos do modo de produção capitalista.

Ele argumenta que a forma jurídica é resultado de uma sociabilidade específica, ou seja, de uma relação social particular, e não apenas de um conjunto de normas. Ele enfatiza que a existência de normas em modos de produção pré-capitalistas não implica a existência de relações jurídicas ou do Direito. Somente quando há a generalização e o predomínio real de um tipo específico de relações sociais, pode-se afirmar a existência da forma jurídica.

A relação social significativa a que o teórico se refere é a troca de mercadorias no sentido marxiano. Segundo ele, a existência de sujeitos de direito, subjetividade jurídica, relações jurídicas e todo o arcabouço jurídico contemporâneo decorre do processo histórico de generalização das trocas mercantis, que só se verifica com o advento do capitalismo.

Assim, para Pachukanis, a forma mercadoria e a forma jurídica são indissociáveis e surgem simultaneamente em um determinado momento da história. Ele sustenta que a formação do Direito propriamente dito está intimamente ligada ao desenvolvimento do capitalismo, onde as relações de troca mercantil se tornam predominantes e estabelecem as bases para as relações jurídicas modernas.

Em resumo, Pachukanis vê o Direito como uma construção histórica específica do capitalismo, emergindo das necessidades e práticas do intercâmbio mercantil. E que o direito — como um todo, e não só parte do direito civil — está contaminado por seu caráter burguês.

Minhas pesquisas enquanto pesquisador da filosofia do Direito têm em comum com esses autores a sua insurgência no sentido de que não devemos nos conformar com o imposto. No entanto, difere diante de certo comodismo, pois acredito que devemos lutar pelos valores e conquistas dentro de nossa Constituição e de nossas possibilidades e não simplesmente nos conformarmos enquanto uma “revolução não acontecer”.

Como Habermas, Dworkin, Fraser, Gama, entre outros, acredito que a luta por mais dignidade deve ocorrer pelo sistema democrático e não fora dele. Se olharmos para a história recente pós Constituição de 1988, nunca tivemos tantos avanços sociais como melhoras em índices de IDH, de mortalidade infantil, de analfabetismo e acesso à saúde, etc. Basta ver o que diz o IBGE. Essa visão é muito otimista?

Na verdade, é um pessimismo extremo em relação às propostas de fim do capitalismo. O próprio filósofo marxista Slavoj Žižek, frequentemente citado por Mascaro, diz que é mais fácil o mundo acabar do que o capitalismo. Trabalhemos dentro de uma realidade em que o mundo não acabou e não de uma insurgência constante contra até mesmo avanços importantes.

Luis Alberto Warat — que não era um marxista — enfatizava a necessidade de confrontar o instituído, destacando a importância de expor os poderes estabelecidos aos conflitos que os desestabilizam, a fim de fazer do Direito uma prática descentrada e desierarquizada do político, transformando o saber e os sentimentos em um espaço simbólico sem proprietários. Compartilho dessa ideia e acredito que a luta por mais dignidade é pelo sistema jurídico constitucional e não fora dele.

Disputa em torno do conceito de direito

Mascaro, que é mentor de alguns influencers do TikTok de esquerda (conforme sua própria página da Wikipedia), bem como do ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, sustenta uma certa divisão acadêmica (a meu ver reducionista) entre (1) positivistas, (2) adeptos das teorias de Carl Schmitt, (3) Foucault e (4) Heidegger.

Não é isso que a academia jurídica em sua ampla maioria acredita. As teses sustentadas no seu livro sobre Filosofia do Direito partem de um aporte teórico ultrapassado que passa longe das compreensões de autores contemporâneos complexos. Na verdade, faz uma confusão enorme de vários conceitos, como dizer que Habermas é um positivista conservador (?) e que Foucault tem tendências neoliberais (Mascaro, 2021, p.279). É claro que existem níveis de discurso político e acadêmicos, mas em um manual de filosofia do Direito precisamos de precisão acadêmica. E me parece que o autor nem deve saber que o positivismo jurídico (uma tradição de 500 anos) enfrentou uma cisão após o debate Hart-Dworkin, autores basicamente ausentes em sua obra.

É evidente que as instituições democráticas contemporâneas não são perfeitas, tal como quaisquer outras que já existiram no mundo, mas são as mais próximas de garantir dignidade para o maior número de pessoas que já tivemos. Ou vamos dizer que um sistema marxista, tal como o da União Soviética — que executou o próprio Pachukanis em 1937 por ir de encontro com as ideias do regime — era melhor ou mais adequado a objetivos que devemos perseguir?

Lanço alguns desafios legítimos que julgo que a obra dos autores não enfrenta e talvez se beneficiasse se tentasse enfrentar:

  1. Como os juízes devem decidir, devem usar sua própria consciência?
  2. Como acomodar pessoas com diferentes identidades dentro do mesmo estado?
  3. Como garantir o devido processo legal?
  4. Como garantir um sistema de pesos e contrapesos?
  5. Como garantir um judiciário com certo grau de autonomia?
  6. Como lidar com as liberdades individuais?

Esforços teóricos para aperfeiçoar nossas instituições são sempre necessários e bem-vindos, mas anunciar que as instituições estão falidas e só servem aos interesses burgueses e do capital não gera respostas adequadas a estas questões e não serve para melhorar a vida de ninguém.

Críticas ao realismo jurídico marxista

As críticas de teor realista-marxista vão na contramão de críticas mais densas ao institucionalismo liberal pós-2ª Guerra. Elas não propõem nada além de uma ampla desconstrução de todas as instituições democráticas sem oferecer alternativas viáveis. Exemplos de pensadores que desenvolveram críticas construtivas ao sistema jurídico contemporâneo incluem Peter Lerche com sua constituição dirigente e Konrad Hesse com sua força normativa da constituição.

O manual do professor Mascaro possui capítulos inteiros dedicados a Lukacs, Althusser, Bloch e Pëtr Stutchka, isso em si não é um problema, mas não fazer menção a grandes mulheres pensadoras contemporâneas do direito, da democracia e da organização social como Nancy Fraser, Martha Nussbaum e Iris Young é um problema. O manual também não faz nenhuma citação ao jusfilósofo mais importante e mais lido das últimas décadas: Ronald Dworkin, nem que seja para rebatê-lo.

Progresso histórico e constitucionalismo

Não somos maiores que nosso momento histórico. As críticas a Habermas e às suas divergências com seus antecessores revolucionários da Escola de Frankfurt ilustram bem o paralelo que quero traçar. Os autores se esquivam das verdadeiras grandes perguntas para o Direito. A palavra democrática é quase sempre suprimida dentro de seus escritos, pois, de certo, a democracia (tal como o direito) está contaminada pelos ideais burgueses e deve ser desconstruída a partir de suas raízes.

Indico como remédio ao realismo jurídico: Dworkin, Fraser, Nussbaum, Peter Lerche, Konrad Hesse, Habermas e Ulysses Guimarães e menos Althusser e Lukacs (não precisamos excluir os autores, mas acho que protagonismo nestes temas atribuídos a eles é indevido). Que coloquemos arreios nesse sistema e o usemos para puxar os avanços de nossa sociedade, mas sem esquecer que ele é -tal como qualquer sistema político- uma besta que precisa ser controlada. Não somos maiores do que o nosso tempo histórico. Nosso constitucionalismo pós-88 é insurgente. Para os céticos do direito — que dizem que o direito é indeterminado — eis minha contribuição:

  • O Direito não é o que os tribunais dizem que é;
  • Termos uma teoria da decisão é importante;
  • Todos temos um direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada (Streck, 2017);
  • Cumprir a constituição é hoje uma atitude revolucionária (Streck, 2017).

Portanto, evitemos teorias prêt-à-porter que apenas perpetuam debates estéreis e foquemos em construir uma democracia mais justa e efetiva dentro dos marcos constitucionais existentes.

Acredito que o Ministro dos Direitos Humanos de nosso país (um intelectual da mais alta qualificação e capacidade) deveria se pautar e escrever mais sobre nossa Carta Magna e sobre como ela pode melhorar a nossa sociedade. Penso que Dworkin, Streck, Fraser, Nussbaum, Hesse, Lerche e outros têm mais a nos ensinar hoje em dia do que camaradas realistas jurídicos como Pachukanis e Mascaro. Politicas de estado não podem ter seu aporte teórico em textos apócrifos, as ideias importam.

Luiz Gama tem muito mais a ver com nossa realidade social do que Althusser e Pachukanis (Gama era um liberal e usou essas ideias “burguesas” para melhorar a vida de milhares de pessoas. Em muitas obras dos professores, vemos citações frequentes de Althusser e Safatle, mas nem sequer uma de Gama.)

Cumprir a nossa Constituição — que garante teto, comida, cultura, educação e dignidade a todos — e usar mecanismos legais para consolidar suas promessas através de políticas públicas é muito mais revolucionário e que gerou muito mais resultados do que qualquer coisa que Pachukanis ou Mascaro propõem. Proponho- tal como Habermas e os autores que citei- lutarmos pelos valores e conquistas dentro do sistema democrático, aprimorando-o e adaptando-o às necessidades do nosso tempo. A saída não é jogar fora o direito, até podemos (devemos) jogar fora a água suja, mas não podemos jogar a criança junto, precisamos levar os direitos a sério.

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Referências:

ALTHUSSER, L. P. Aparelhos Ideológicos de Estado. 7ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998.

ALMEIDA, Silvio. Prefácio in HAIDER, Asad. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. Tradução por Léo Vinicius. Liberato. São Paulo: Editora Veneta. 2018

ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Jandaíra, 2021.

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tradução de Nelson Boeira.

São Paulo: WMF, 2017.

STRECK, Lenio. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do Direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2017

MASCARO, Alysson. FILOSOFIA DO DIREITO. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2021. 560p.

PACHUKANIS, Evguiéni. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo, Acadêmica, 1988.

WARAT, Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2000.

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