Opinião

Novidades nos juros e correção monetária após a Lei 14.905/2024

Autor

5 de julho de 2024, 16h31

Em recente alteração promovida pela Lei 14.905/2024, passou-se a indicar expressamente a taxa legal de correção monetária e de juros aplicáveis às relações de direito privado.

Gesrey/Freepik

Os renovados artigos 398, parágrafo único, e 406, §1º, ambos do CC, estipularam que, quando não houver convenção entre as partes ou legislação especifica, a atualização monetária seguirá o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Os juros de mora seguirão a taxa Selic, deduzindo-a do índice de atualização monetária acima.

A alteração legislativa foi justificada em ser a taxa Selic uma taxa de juros nominal, que já embute as expectativas inflacionárias. Logo, “tendo em vista que haverá correção monetária pelo IPCA-E (sic), não é o mais adequado aplicar, sobre uma mora que já ocorreu e foi corrigida, uma taxa que embute expectativas de preço futuros”. (texto do Projeto de Lei 1086, de 2022, do Senado).

Apesar da necessária unificação do tema, pois o Código Civil fixava a aplicação de índices correcionais não tão claros (com a jurisprudência do STJ sendo vacilante em sua tese final), a aparente simplificação legislativa final (havia outra proposta que era mais complexa e condicionada, criando duas taxas — utilizar-se-ia a menor delas: uma delas atrelada da taxa de juros real das Notas do Tesouro Nacional Série B – NTN-B, e a outra seguindo a aplicação da taxa Selic) merece algumas críticas.

Desde o anteprojeto do Código Civil, em 1975, almejava-se estipular uma taxa anual fixa na redação do artigo 406, CC [1]. Por meio da Lei 14.905/2024, fixou-se, de uma só vez, a taxa de juros e o índice de correção monetária aplicável na maioria dos casos, sempre as partes não acordarem índice diverso.

No plano contratual (e de sua responsabilidade), o inadimplemento obrigacional implica no dever de arcar com os prejuízos que sua mora der causa e ainda pelos juros moratórios, os quais são devidos independentemente de prova da existência ou não de dano para o lesado pelo inadimplemento. Há uma presunção legal absoluta de prejuízo [2].

A mora ex re do artigo 397, CC, indica a adoção da regra dies interpellat pro homine (o tempo interpela em lugar do credor) para as obrigações a termo, positivas e líquidas. Já nas obrigações positivas e líquidas, mas que exijam constituição em mora, os juros de mora incidem desde a recepção da interpelação, notificação ou protesto (ato recesptício) — mora ex persona. Afinal, nesses casos, “a pretensão ao adimplemento existe, a obrigação também, mas falta a mora”. [3]

Na responsabilidade extracontratual, por sua vez, o artigo 398 do CC trata da mora presumida.

Em todos eles, sempre que não houver previsão contratual diversa, a atualização monetária deverá ser por meio do IPCA, segundo o artigo 389, parágrafo único, CC.

O Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) é o índice de preços ao consumidor ampliado, baseando-se na cesta de consumo de famílias com renda entre um e 40 salários mínimos, pesquisado entre o dia 1º e 30 de cada mês, em 11 regiões metropolitanas (Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Brasília, Goiânia, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre), com coleta de preços quantitativa similar ao INPC.

Uma variação do IPCA é o Índice de Preços ao Consumidor Amplo — Série Especial — IPCAe, que é apurado entre os dias 16 do mês anterior e 15 do mês de referência em onze capitais brasileiras e divulgado trimestralmente (Medida Provisória 812, de 30/12/1994). Ainda que este índice tenha sido mencionado no Parecer do Senado, acredita que houve uma confusão em seu uso, afinal, a proposta inicial sempre lançou preferência pelo IPCA.

Taxa de juros para aplicar

No entanto, a solução apenas do índice de correção monetária faria surgir outro problema: qual taxa de juros aplicar?

O então vigente artigo 406 do CC, norma-chave, tratava dos juros moratórios legais e dos juros moratórios convencionais sem taxa estipulada. Para os últimos, já se defendera a aplicação da taxa de 1% ao mês, conforme artigo 161, § 1º, do CTN. Em sentido diverso, prevalecia, nos últimos anos, a posição atual do STJ, consolidada no tema repetitivo 176, em cuja delimitação constam os maiores esclarecimentos:

“Conforme decidiu a Corte Especial, ‘atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido dispositivo [art. 406 do CC/2002] é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC, por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais (arts. 13 da Lei 9.065/95, 84 da Lei 8.981/95, 39, § 4º, da Lei 9.250/95, 61, § 3º, da Lei 9.430/96 e 30 da Lei 10.522/02)’ (EREsp 727.842, DJ de 20/11/08)” (REsp 1.102.552/CE, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, no regime do art. 543-C do CPC).

Por isso, atualmente se utilizava a taxa Selic, apesar de diversas tentativas em se desfazer o precedente acima.

O STJ, por seu Conselho Especial, já se preparara, algumas vezes, para reanalisar a matéria[4], onde a aplicação da taxa Selic era impugnada sob o argumento de contar juros e correção monetária embutidos. Na tentativa mais recente (STJ — Corte Especial, Resp. 1.795.982, relator ministro Mauro Campbell Marques (vencido), relator vencedor ministro Raul Araújo, julgamento em 06.03.2024) após polêmica procedimental, por 6×5, manteve-se a aplicação da taxa Selic.

O posicionamento pela inaplicabilidade da taxa Selic para atualização da condenação de dívidas civis, notadamente em se tratando de danos morais decorrentes de responsabilidade extracontratual decorria, sobretudo, da impossibilidade de se conciliar os marcos diversos de incidência de juros moratórios — evento danoso — e de correção monetária — data do arbitramento — Súmulas 54 e 362, STJ).

Nessa linha, é preciso esmiuçar o que compõe a taxa Selic.

O Selic (Sistema Especial de Liquidação e de Custódia) é um sistema eletrônico que registra operações com títulos emitidos pelo Tesouro Nacional, em contas específicas em nome dos participantes, anotando operações de compra e venda, ofertas públicas, resgates e juros, com as respectivas transferências financeiras. [5]

Essas operações compromissadas são verdadeiros contratos de empréstimo realizados entre instituições financeiras e destas com o Banco Central, por meio de operações de venda de títulos da dívida pública com compromisso de recompra assumido pelo vendedor, conjugadamente com compromisso de revenda assumido pelo comprador, para liquidação no dia útil seguinte [6].

As operações compromissadas são verdadeiros contratos definitivos de compra e venda de títulos públicos atrelados a um contrato definitivo de venda e compra dos mesmos títulos, com a execução deste ocorrendo em data posterior ao primeiro. Na prática, assemelha-se a um aluguel de títulos públicos negociados.

Registro de negociações entre bancos

Portanto, o Selic funciona como um registro oficial de todas essas negociações entre bancos e entre eles e o Banco Central [7]. Esse patamar almejado e obtido (forçadamente ou não) é fixado pelo Banco Central, não se apresentando como condição potestativa pura (artigo 122, CC), nem como uma indeterminação potestativa, posto estar previsto expressamente em lei sua aplicação, não dependendo do puro arbítrio de uma das partes.

Prova disso é a adoção do mesmo índice nas compensações e restituições tributárias perante a União, em reforço à isonomia [8].

Mesmo assim, inexiste uma lei que institua, defina ou demonstre como deve ser calculada a taxa Selic [9], embora não haja consenso sobre como isso repercuta necessariamente em sua invalidação. O novo artigo 406, §2º, CC, relega a metodologia de cálculo ao CMN, numa verdadeira cláusula aberta.

Portanto, a interpretação de que correção monetária estava supostamente internalizada na Selic, decorria da acertada conclusão de ela não ser juro, pura e simplesmente. Todavia, é mister ressaltar que taxa Selic não é também genuinamente correção monetária.

Esse instituto jurídico ainda não enquadrado perfeitamente, representa um misto de ganho de capital e neutralização dos efeitos da inflação. A rigor, não se pode dizer que a taxa Selic seja correção monetária, pois, esta é o fator de readaptação do valor monetário corroído pelos efeitos da inflação, que apenas pode ser aferida a posteriori, por metodologia própria centrada notadamente na variação de preços dos produtos e serviços escolhidos para esse fim. A taxa Selic é apurada segundo a taxa média das operações com títulos públicos federais calculados com base nas operações de financiamento (overnight) do mercado aberto.

No entanto, nas hipóteses em que ela é aplicada para os juros de mora, somá-la a qualquer índice correcional, ainda que mais avalizado, seria um erro que, ao invés de corrigir a situação, a desfiguraria por completo.

O STJ[10], mesmo com reservas em relação à aplicação da Selic [11], sempre que a adotou, rechaçou explicitamente a cumulação dessa taxa com a correção monetária.

A taxa Selic não tem fórmula de cálculo completamente clara, podendo variar por interesses políticos e/ou econômicos. No cenário atual, é importante se atentar que, se ela estiver baixa (ou o IPCA, que reflete a inflação, estiver alto), os juros efetivos serão próximo de zero!

Nesse norte, a aplicação da taxa Selic como remissão do artigo 406, CC/2002, com a exclusão do índice correspondente à inflação no valor da taxa Selic, poderia representar uma utópica busca pela taxa de juros legal real.

Por outro lado, essa operação poderia parecer teorética e sem razão, afinal, sobre o principal também incidirá correção monetária (excluir para depois incluir). Mas é justamente o contrário: ela se justifica diante das situações nas quais o termo a quo dos juros e da correção monetária são diversos, fato comum em demandas judiciais (e que sempre foi combatido pelo STJ)!

Exclusão de correção monetária

Dito isso, defendi continuamente que, quando os termos iniciais dos juros de mora e correção fossem diversos, para se evitar prejuízo ao devedor (se o termo de correção monetária fosse posterior à citação) ou enriquecimento indevido dele (se o termo a quo da correção fosse anterior à citação), fosse excluída a correção monetária do período em que fixados apenas juros moratórios.

E sobre esse período, deveria ser utilizada a taxa Selic do período, subtraída da média entre o INPC e o IPCA. O resultado seria apenas os juros do período, que incidiriam no lapso acima. Ao contrário e por interpretação reflexa, quando os juros moratórios se iniciassem em termo posterior à correção monetária, a situação também refutaria a aplicação integral da taxa Selic. Utilizando-se da mesma lógica acima, utilizar-se-ia no período em apreço apenas a média entre o INPC e o IPCA [12].

Essa solução decorria daquilo que foi indicado pelo ministro Raul Araujo, em seu voto vista proferido no Recurso Especial 1.025.298/RS (STJ — 2ª Seção).

No entanto, em ambas as hipóteses, já se alertava que o ministro Raul Araújo não teria se pautado pelo artigo 1º, I e II, do Decreto 1.544/1995, o qual indicava a utilização da média entre o INPC e o IGP-DI.

Certamente, a preferência pelo IPCA (em substituição ao IGP-DI) decorreu da população-alvo de ambos (o IGP-DI tem um alcance bem mais restrito), o que reflete a busca por um padrão decisório nacional.

Na mesma linha, a solução legislativa ignorou a média legal entre o INPC e o IGP-DI, optando-se por uma via mais simples e ampla: IPCA, o que não merece críticas.

O artigo 406, §3º, CC, ainda impôs que caso a subtração resulte em um valor negativo, a taxa de juros será zero, privilegiando o princípio do nominalismo (artigo 315, CC; artigo 1º da Lei 10.192/2001), mas sem assegurar qualquer índice mínimo de juros. Num cenário de inflação e taxa Selic próximas (os juros reais ficariam próximo de zero), a solução pode desmotivar o empréstimo, afinal, os juros são exatamente a remuneração do capital num dado período de tempo.

A Lei 14.905/2024 ainda afasta do limite máximo da lei de Usura apenas as obrigações contratadas entre pessoas jurídicas, as representadas por títulos de crédito ou valores mobiliários, aquelas realizadas nos mercados financeiro, de capitais ou de valores mobiliários, entre outras. Com isso, reafirma-se a vigência harmônica, ainda que limitada, do Decreto 22.626/1933 com o CC/2002.

A consequência pode ser a limitação dos empréstimos de capitais quando houver pessoa física no polo da relação (ou tão somente, a previsão de índices diversos da taxa Selic, subtraída do IPCA; o que não exclui eventual abusividade).

Num cenário onde a aplicação da taxa Selic como índice único (correção monetária e juros de mora) foi recentemente posto nas ações fazendárias, por meio da EC 103/2021 (artigo 3º), provavelmente surgirão discussões para que se aplique, mesmo nas relações de direito público, a regra de se excluir o IPCA (ou outro índice público mais adequado, como a TR) da taxa Selic, para se obter os ‘juros puros’. A semente foi lançada.

 


[1] MATTIETTO, Leonardo. Os juros legais e o artigo 406 do Código Civil. Revista Trimestral de Direito Civil, Ano 04, Volume 15, Julho/Setembro de 2003, p.93.

[2] OLIVEIRA, James Eduardo. Código Civil anotado e comentado. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p.316

[3] MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil. Volume V, tomo II – Do inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.403.

[4]. STJ – Corte Especial, REsp 1.081.149 / RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, julgamento em 01/02/2019.

[5]. NEWLANDS JUNIOR, Carlos Arthur. Sistema Financeiro e bancário. 4ª edição. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014, p.67.

[6]. Costuma-se dizer que as compromissadas são remuneradas pela Selic. Entretanto, essas operações são contratadas a taxas prefixadas, mas como essas taxas se baseiam na Selic no instante em que são fixadas e como os prazos acertados são curtos, na prática, o resultado é a quase coincidência entre as taxas contratadas e a Selic.

[7]. Disso, sempre que se observar uma taxa média diferente da almejada, o Banco Central intervém no mercado, vendendo ou comprando títulos suficientes para alcançar o patamar almejado.

[8]. STJ – 1ª Seção, ERESP 398182/PR, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, julgamento em 18/10/2004.

[9]. Para se utilizar a taxa Selic em matéria tributária, é necessária lei estabelecendo os critérios para sua exteriorização, pelo princípio de que o contribuinte deve previamente saber como será apurado o quantum debeatur da obrigação tributária.

[10] STJ – EDcl no REsp 1.025.298/RS, Rel. originário Min. Massami Uyeda, Rel. para acórdão Min. Luis Felipe Salomão, julgamento em 28/11/2012, DJe 01/02/2013.

[11] Um dos principais argumentos, como foi visto, é que a Selic não é a taxa que necessariamente reflete com perfeição o somatório dos juros moratórios e a real depreciação da moeda, que a correção monetária visa recompor. Haveria um forte viés político na formação desse índice, afetando até a inflação para o futuro.

[12] RODRIGUES, Rodrigo Cordeiro de Souza. JUROS e CORREÇÃO MONETÁRIA JUDICIAIS. Salvador: Juspodivm, 4edição, 2024.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!