Opinião

Imposto Seletivo e a progressividade pelo critério de teor alcoólico

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5 de julho de 2024, 11h25

Vem aí, como sabemos, o Imposto Seletivo (IS), novidade da reforma tributária em curso que incidirá sobre o consumo de bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Embora a redação final da Emenda Constitucional nº 132/2023 haja abandonado a menção expressa à “finalidade extrafiscal” do imposto, não temos dúvida dessa sua vocação.

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Convenhamos, a materialidade reservada ao IS seria para lá de insólita se o imposto viesse ao mundo com finalidade precipuamente arrecadatória. Que tão especial capacidade contributiva o consumo desses bens revela, a ponto de atrair o interesse do legislador tributário?

A nosso ver, o IS presta-se principalmente — não exclusivamente, pois todo tributo, afinal, também arrecada, e a extrafiscalidade admite nuances — a desestimular o consumo, pela população, de bens e serviços nocivos à saúde e ao meio ambiente.

Coube ao PL nº 68/24 selecionar, dentre a vasta gama de segmentos elegíveis ao IS, aqueles que efetivamente a ele submeter-se-ão. O PL foi até que parcimonioso nesta seleção. Elegeu um rol razoavelmente pequeno de alvos, deixando de fora fortes candidatos ao imposto — defensivos agrícolas, alimentos ultraprocessados etc.

Entre os segmentos selecionados (artigo 393 do PL), estão as bebidas alcoólicas, que, juntamente com produtos fumígenos, eram as grandes pedras cantadas dessa convocação.

Por imposição da EC 132/23, as efetivas alíquotas do IS serão fixadas por lei ordinária, a ser minutada e votada mais adiante no Congresso. A lei complementar instituidora do IS, porém, tem a prerrogativa de desde já definir parâmetros e regras a serem obedecidos pela lei ordinária no desempenho dessa sua missão constitucional.

Spacca

O PL 68/24 não se omitiu a respeito. Para as bebidas alcoólicas, prescreveu duas diretrizes muito importantes (artigo 406, §1º, II). A primeira: incidirão sobre tais produtos, concomitantemente, alíquotas ad valorem (uma porcentagem sobre o preço de comercialização da bebida) e alíquotas ad rem (um valor monetário fixo por volume da bebida). A segunda, que aqui nos interessará mais de perto: a alíquota ad rem será progressiva em razão do teor alcoólico da bebida.

Assim, as bebidas com menor teor alcoólico terão uma alíquota ad rem menor (por exemplo, R$1/litro), enquanto as de maior teor terão essa alíquota majorada (digamos, R$10/litro). Essa opção legislativa tem respaldo na experiência internacional e seu racional é atacar, mais assertivamente, aquele específico ingrediente do produto efetivamente prejudicial à saúde — neste caso, por óbvio, o álcool.

Progressão por teor alcoólico

O tema tem rendido polêmica, e o próprio Conselho Nacional de Saúde (CNS) do governo federal posicionou-se contrariamente a essa política (Recomendação nº 4/24, item VI)[1]. Dois argumentos principais têm sido lançados contra a progressividade do IS por teor alcoólico.

O primeiro é o de que não adianta tributar mais pesadamente bebidas de maior teor se, no Brasil, o consumo de álcool origina-se essencialmente das cervejas, sabidamente uma bebida de menores teores. Esse é, aliás, o argumento encampado na referida resolução do CNS:

“VI – Garantir que o imposto seletivo não varie conforme o teor alcoólico das bebidas alcoólicas, tendo em vista que esta medida reduziria significativamente o impacto sobre a cerveja, responsável por 90% do consumo de álcool no País;”

A este soma-se um segundo argumento, talvez até mais sofisticado. Diz-se que a tributação mais severa de bebidas de alto teor não assegura um menor consumo de álcool, pois isso dependerá do volume total de bebida consumido pela pessoa. Afinal, o sujeito pode se sentar na mesa do bar, tomar 15 garrafas de cerveja, e de lá sair mais alcoolizado do que se houvesse consumido três doses de vodka. Por que então aliviar a alíquota do IS para as cervejas, se ela pode, no final do dia, causar o mesmo ou até maior dano à saúde do consumidor?

Os dois argumentos são tentadores mas, a nosso ver, escoram-se em premissas equivocadas.

O primeiro deles pressupõe que uma alíquota ad rem única seria calibrada no teto de uma hipotética escala progressiva, arrastando a tributação das cervejas para esse topo e, assim, “nivelando por cima” a oneração de todas as bebidas alcoólicas.

Sucede que essa pressuposição não é necessariamente correta. Pode ocorrer o fenômeno exatamente oposto, a depender da mão do legislador ordinário. Obrigado a trabalhar com uma única alíquota, poderia vir a fixá-la, inadvertidamente até, mais próxima do piso da escadinha progressiva. Como consequência, ao invés de dificultar o acesso às cervejas, a alíquota única teria o efeito de facilitar o acesso à vodka, ao absinto. No médio e longo prazos, essa realidade poderia fomentar uma absolutamente indesejada mudança de hábito do brasileiro, cuja preferência por bebidas de menor teor alcoólico deve ser celebrada — sim, sim, o ideal seria que o nosso hábito preferencial fosse consumir apenas água de coco, mas o bom é inimigo do ótimo…

A progressividade da alíquota ad rem, enfim, não implicará necessariamente uma baixa tributação absoluta das cervejas — que é o receio do CNS —, mas apenas uma menor tributação relativa, em comparação com bebidas potencialmente mais ameaçadoras à nossa saúde. Daí porque esse argumento sufragado pelo órgão federal nos parece frágil.

Passemos, então, ao segundo argumento introduzido acima, segundo o qual as pessoas podem, conforme o volume de bebida ingerido, acabar consumindo mais álcool com bebidas de menor teor. Essa é uma ilação absolutamente razoável, que pode perfeitamente se concretizar nos botequins País afora. Apenas que não desautoriza a legitimidade e conveniência da norma extrafiscal, cuja eficácia apenas limitada é-lhe inerente.

A ideia remete às maneiras possíveis de intervenção do Estado nos domínios econômico e, mais abrangentemente, social. O Estado atua por “direção” quando o faz por meio de comandos imperativos, sem conceder aos jurisdicionados margem para pautar suas condutas.

Atuação por indução

Já quando intervém por “indução”, o Estado não impõe ao jurisdicionado que adote uma única conduta possível e, sim, franqueia-lhe alternativas, embora decididamente estimulando-o a optar por uma delas.

A esse respeito, Schoueri dirá que “o agente econômico não se vê sem alternativas; ao contrário, recebe ele estímulos e desestímulos que, atuando no campo de formação de vontade, levam-no a se decidir pelo caminho proposto pelo legislador. Este, por sua vez, sempre deve contar com a possibilidade de seus incentivos/desincentivos não serem suficientes (…), assegurada a possibilidade [do contribuinte] adotar comportamento diverso, sem que por isso recaia no ilícito”[2].

A atuação por direção é recomendada quando se espera que a totalidade dos jurisdicionados mantenha um mesmo e único comportamento, enquanto a atuação por indução adota-se quando o Estado admite condutas de intensidades variadas dentro de uma margem tolerável.

Pois a norma extrafiscal é do tipo indutora, portanto o fato de a progressividade do IS não alcançar sempre o pretendido desestímulo não pode desautorizá-la, pois essa é uma característica inerente a essa função normativa. Se o formador de políticas públicas quer a certeza de que não haverá consumo excessivo de álcool, não induza o comportamento, prescreva-o. Edite, então, uma lei simplesmente estipulando um consumo diário máximo permitido para cada tipo de bebida…

Induzir o consumo de bebidas de menor teor alcoólico significa, sim, inegavelmente, induzir o consumo de menos álcool pela população. Induzir, não assegurar. Assim são as normas extrafiscais indutoras.

Não vai aqui nenhuma ode às cervejas propriamente, mas, no máximo, às bebidas em geral com menor teor de alcoólico; algumas cervejas especiais, aliás, chegam a 28% de teor alcoólico[3], compatível com outras bebidas mais comumente associadas a esse padrão. A progressividade mira o alvo certo, sem favorecer necessariamente esta ou aquela bebida.

Por tudo isso, entendemos que a progressividade por teor alcoólico representa uma eficaz ferramenta para alcançar a finalidade extrafiscal do IS, merecendo aplauso a opção feita pelo PL 68/24.

* Paulo Roberto Andrade é sócio de Contencioso Tributário Judicial e Administrativo do Madrona Fialho Advogados


[1] https://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/3373-recomendacao-n-004-de-14-de-marco-de-2024 (acessado em 23.6.24).

[2] SCHOUERI, Luís Eduardo. Contribuição ao estudo do regime jurídico das normas tributárias indutoras como intervenção sobre o domínio econômico. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2002, p. 60.

[3] https://www.rarebeerbrasil.com.br/MLB-3613514681-samuel-adams-utopias-2023-_JM

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