Opinião

A Fazenda Pública em juízo e os múltiplos circuitos executivos

Autor

  • José Henrique Mouta Araújo

    é pós-doutor doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA) professor do Centro Universitário do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP/DF) procurador do estado do Pará e advogado.

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5 de julho de 2024, 20h51

Este ensaio é um breve resumo do assunto pretendo abordar nas 14ª Jornadas Brasileiras de Direito Processual, promovidas pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), em homenagem aos professores Teresa Arruda Alvim e Luiz Guilherme Marinoni e que ocorrerão entre 18 e 20 setembro de 2024, em Curitiba.

A questão a ser discutida refere-se à existência de múltiplos circuitos executivos, incluindo o desmembramento do objeto litigioso nas demandas contra a Fazenda Pública e seus reflexos processuais.

Neste fulgor, é possível a provocação de múltiplos módulos/circuitos executivos judiciais (simultâneos ou sucessivos) na mesma relação jurídica processual, gerando variáveis formas de cumprimento e reflexos no prazo prescricional da pretensão executiva.

Aliás, aspecto extremamente importante e que gera grandes questionamentos em relação às demandas movidas contra a Fazenda Pública é a possibilidade de resolução imediata do pedido incontroverso e a formação de vários títulos executivos (ou módulos/circuitos executivos) sucessivos no mesmo processo, o que já era (timidamente) permitido pelo sistema processual anterior, e foi estimulado, inclusive com previsão expressa, no CPC/15 (artigo 356, dentre outros).

Realmente, dependendo do caso concreto e da conduta do réu, é possível a existência de fatos incontroversos/pedidos controversos (como no caso em que o réu impugna o pedido do autor, mas não os fatos constitutivos do direito suscitados na peça de ingresso); ou pedido incontroverso (casos como o de reconhecimento jurídico, transação, etc.).

Estes casos desafiam o enfrentamento da resolução de mérito (total ou parcial, enquadrando-se nas disposições dos artigos 355, I e 356, I, do CPC/15) e, em caso de formação de coisa julgada, a inauguração da fase de cumprimento, mesmo estando outro capítulo litigioso ainda na fase de cumprimento.

O desmembramento decisional ocasiona o fracionamento do objeto e a abertura de circuitos processuais diferentes (de conhecimento e executivo simultaneamente).

Aliás, como é de conhecimento geral, será possível o julgamento antecipado parcial do mérito quando um ou mais dos pedidos formulados pelo autor, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso (artigo 356, I, do CPC/15).

O caso em comento é de antecipação do próprio objeto litigioso e não apenas dos efeitos da tutela, inclusive, ensejando a formação da coisa julgada e o cumprimento parcial (do capítulo decidido) e definitivo (acaso transite em julgado), como expressamente consta no §3º, do artigo 356, do CPC.

Percebe-se, portanto, que a resolução definitiva e parcial do pedido incontroverso é absolutamente necessária quando se está diante da necessidade da busca de um processo civil de resultados, desmembrando-se o pronunciamento meritório, inclusive, com a superação do dogma da incindibilidade do julgamento de mérito — unicidade da sentença.

Resolução parcial de mérito

Spacca

Este desmembramento também ocorre nas fases procedimentais, com parte do feito ainda na de conhecimento, e a outra já resolvida em definitivo, na de cumprimento (provisório ou definitivo) — fases simultâneas na mesma relação jurídica processual, portanto.

Importante fazer a leitura do Acórdão proveniente da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, onde restaram bem demonstrados:

  • a) o objetivo e cabimento do artigo 356, do CPC/15;
  • b) a superação do dogma da unicidade da sentença;
  • c) a possibilidade de desmembramento do objeto pelos Tribunais (REsp 1845542 / PR – relatora ministra Nancy Andrighi – J em 11/05/2021 -DJe 14/05/2021) [1].

Este tema “resolução parcial de mérito” ganha fôlego especial quando se trata de demandas promovidas em face da Fazenda Pública, tendo em vista as regras ligadas à satisfação das obrigações pecuniárias apenas mediante sentença judiciária. Duas questões devem ser enfrentadas neste momento:

  • a) a resolução parcial de mérito é cabível contra a Fazenda Pública (especialmente nos casos envolvendo obrigação de pagar)?
  • b) será possível o cumprimento (provisório ou definitivo) de tal capítulo meritório (art. 356 do CPC/15) com o prosseguimento do feito em relação ao que não foi decidido neste momento?

A primeira indagação provoca a necessidade de interpretação do texto constitucional, tendo em vista a previsão de que a execução será apenas de sentença judiciária (artigo 100, da CF/88). Uma coisa é certa: a resolução de parte do mérito (julgamento antecipado parcial) ocorrerá mediante decisão interlocutória sujeita a Agravo de Instrumento (artigo 1015, II, do CPC/15), com o objetivo de evitar o trânsito em julgado (artigo 356, §§3º e 5º, do CPC/15).

Logo, há a necessidade de se ampliar o conceito previsto na CF/88, para permitir o cumprimento (parcial) de decisão interlocutória definitiva pecuniária contra a Fazenda Pública, desde que não tenha sido interposto recurso e não seja hipótese de remessa necessária. Por exemplo, sendo reconhecida a possibilidade de julgamento antecipado parcial do pedido incontroverso ligado a obrigação de pagar, nada impede que a demanda prossiga contra o ente público em relação ao pedido controvertido, ao mesmo tempo em que se promova o cumprimento definitivo do capítulo resolvido antecipadamente, com posterior pagamento através de precatório requisitório ou requisição de pequeno valor (artigo 100 da CF 88 — com uma ampliação do conceito de sentença judiciária contida no texto constitucional).

Aliás, é possível responder à segunda indagação acima afirmando que não há qualquer impedimento ao desmembramento da relação processual em demanda contra a Fazenda Pública, com um módulo ou circuito em sede de cumprimento (provisório ou mesmo definitivo) — inclusive com a possibilidade de formação de coisa julgada progressiva, enquanto o outro, talvez o objeto principal, ainda na fase de conhecimento.

Em recente julgado, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deixou claro que a coisa julgada progressiva prestigia princípios constitucionais processuais (STJ – 2ª T – AgInt no AgInt no REsp 2038959 – relator ministro Herman Benjamin –  J. 16.04.2024). A propósito, é possível a provocação do módulo executivo (cumprimento provisório ou definitivo) da decisão advinda do julgamento antecipado parcial contra a Fazenda Pública, que tenha reconhecido obrigação de fazer, não fazer ou coisa (artigo 536 a 538, do CPC), inclusive com imposição de multa cominatória, se for o caso.

É importante concluir este momento de reflexão, com a ratificação da assertiva já feita, no sentido de que o sistema processual admite a formação de múltiplos circuitos executivos sucessivos na mesma relação processual, inclusive em desfavor da Fazenda Pública, com prazos e procedimentos próprios, restando, com isso, uma parte do feito em fase (de cumprimento) distinta de outra (conhecimento).

De outra banca, é importante perceber que estes diversos circuitos executivos podem ser inaugurados em decorrência da mesma decisão judicial, inclusive em demandas que envolvem a Fazenda Pública.

Destarte, é interessante notar que determinada situação jurídica concreta pode permitir a provocação de vários módulos executivos sucessivos (como mencionado anteriormente) ou simultâneos, inaugurando o sistema de cumprimento de acordo com o procedimento previsto na lei de regência e refletindo no prazo para o exercício da pretensão executiva. Assim, seja na hipótese ligada à tutela provisória/resolução parcial de mérito (com obrigação de fazer a ser cumprida de forma provisória ou definitiva), seja em caso de sentença proferida em desfavor da Fazenda Pública com obrigação de pagar e fazer simultaneamente, o tema é o mesmo: cumprimento de múltiplos pronunciamentos judiciais no mesmo processo e as suas consequências.

Prescrição por não cumprir ordens judiciais

Superada a discussão quanto à possibilidade de múltiplos pronunciamentos de mérito e formação de coisa julgada progressiva também nas demandas envolvendo a Fazenda Pública, cumpre a analisar as consequências práticas em relação aos módulos executivos simultâneos e a ocorrência da prescrição em razão da falta de iniciativa ligada ao cumprimento de cada uma das ordens judiciais.

Visando apresentar as derradeiras observações deste texto, serão utilizados dois exemplos, o primeiro deles já tratado anteriormente:

  • a) julgamentos parciais de mérito e início da fase de cumprimento, estando outra parte do processo ainda na fase de conhecimento;
  • b) único pronunciamento judicial, contendo obrigação de fazer e pagar, cujos módulos/ circuitos executivos são diversos e autônomos , o que ocorre, por exemplo, nas decisões concessivas de segurança com reflexos pecuniários.

As observações relacionadas ao item a, servem de ponto de partida para a análise das situações em que a mesma decisão judicial permite seja inaugurado mais de um módulo executivo, com características e procedimentos próprios.

Destarte, é dever ratificar a possibilidade de existência de múltiplos títulos executivos (fazer, não fazer, coisa ou quantia) em um só processo, gerando a necessidade de estudo de qual será o procedimento a ser adotado em cada um dos circuitos de cumprimento e os reflexos em relação à fluência do prazo para o exercício da pretensão executiva.

Não se pode esquecer que determinações judiciais autônomas no mesmo processo geram início fluência de prazo e procedimentos de cumprimento também autônomos, inclusive com possibilidade de desmembramento processual.

Na Ementa do Acórdão do STJ no AgInt no EmbExeMS 8468/DF – 3ª Seção – Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca – J. em 10.08.2022 – DJe 15.08.2022, consta expressamente a seguinte passagem: “a execução da obrigação de fazer não tem o condão de interromper a fluência do prazo prescricional da obrigação de pagar”.

Este é o ponto de reflexão e observação prática: uma única relação processual pode gerar vários títulos executivos simultâneos ou sucessivos, provocando módulos executivos com procedimentos específicos e prazos diferenciados para exercício da pretensão executiva, sob pena de prescrição parcial ou total.

Portanto, a eventual provocação de um módulo executivo contra a Fazenda Pública (ex. cumprimento da obrigação de pagar quantia — artigo 524 e seguintes, do CPC) não interrompe o prazo prescricional para o exercício de outra pretensão executiva existente no mesmo processo (ex. cumprimento de obrigação de fazer — artigo 536 e seguintes, do CPC).

Estas variáveis devem ser analisadas com muito cuidado na prática forense, evitando, inclusive, a incidência da prescrição da pretensão executiva.

São estas as observações e ponderações relacionadas ao importante debate acerca das variáveis relacionadas aos múltiplos circuitos executivos em demandas envolvendo a Fazenda Pública.

 


[1] Tive oportunidade de fazer breves comentários sobre este Acórdão. Em Julgamento parcial de mérito pelos tribunais e acerto do STJ no Resp 1.845.542. Disponível em  https://www.conjur.com.br/2021-jul-31/araujo-julgamento-parcial-merito-pelos-tribunais-stj. Acesso em 02.7.2024.

Autores

  • doutor e mestre pela UFPA (com estágio de pós-doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e procurador do estado do Pará e advogado.

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