Prática Trabalhista

Terceirização: ônus da prova e responsabilização do ente público

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

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  • Leandro Bocchi de Moraes

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD) pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

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4 de julho de 2024, 11h14

Não é de hoje que o assunto envolvendo a terceirização de serviços causa inúmeros debates na Justiça do Trabalho. Além disso, muitas foram as dúvidas e as controvérsias instauradas após as recentes decisões proferidas pela Suprema Corte envolvendo a matéria.

Dito isso, surgem algumas incertezas quando o assunto envolve a terceirização de serviços na Administração Pública e o ônus da prova para a possível responsabilização do ente público.

Terceirização na Administração Pública

De início, impende destacar que o Poder Público não pode se eximir das suas responsabilidades contratuais nas questões envolvendo a fiscalização e cumprimento das obrigações assumidas perante a empresa tomadora de serviços. Contudo, essa responsabilização não é automática.

Com efeito, se encontra ainda pendente de julgamento no âmbito da Suprema Corte o Recurso Extraordinário (RE) 1.298.647/SP [1], onde se discute justamente a temática envolvendo o ônus da prova da conduta culposa do ente público no desacerto dessa fiscalização.

Spacca

Entrementes, algumas reflexões sobre o tema são necessárias: (i) Qual o posicionamento dos Tribunais Superiores em relação ao encargo probatório para a comprovação da conduta culposa da Administração Pública? (ii) Poderia o trabalhador ter que produzir eventual prova diabólica se tal ônus lhe competir? (iii) É possível presumir a culpa do agente público na fiscalização dos serviços terceirizados? (iv) A quem caberia o ônus probatório de conduta culposa: ao trabalhador ou ao tomador de serviços?

Por certo, o assunto é polêmico, tanto que a temática foi indicada por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, nesta ConJur [2], razão pela qual agradecemos o contato.

Lição de especialista

A respeito da temática, oportunos são os ensinamentos de Ricardo Calcini e Amanda Paoleli Câmara [3]:

A terceirização é uma relação triangular ou trilateral, e o ônus probatório deve considerar a possibilidade de prova de cada parte, à luz da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova e do princípio da sua aptidão, sem incidir no que a doutrina moderna vem chamando de “prova diabólica” (…).

Até a entrada da Lei 13.467/2017, somente as atividades-meios podiam ser terceirizadas, restrição alterada pela reforma trabalhista com a introdução do art. 4ª-A da Lei 6.019/74, que passou a possibilitar a terceirização da atividade principal (atividade fim), matéria confirmada pelo STF no julgamento da Arguição de Descumprimento do Preceito Fundamental 324/DF, resultando no Tema 725 da repercussão geral (Torres, 2020). Ademais, foi admitida a terceirização em quaisquer atividades do ente público federal pelo Decreto 9.507/2018, que também passou a dispor previsões sobre a gestão e a fiscalização da execução dos contratos (art. 10), imputando ao Poder Público um conjunto de ações que, entre outas questões, tenham por objetivo “verificar a regularidade das obrigações previdenciárias, fiscais e trabalhistas”, prestando o “apoio à instrução processual e ao encaminhamento da documentação pertinente (…) com vistas a assegurar o cumprimento das cláusulas do contrato” (Sako, 2019).

 Legislação

Do ponto de vista normativo no Brasil, de um lado, a Constituição estabelece em seu artigo 37, XXI [4], acerca da possibilidade de contratação de obras e serviços por meio de licitação pública; lado outro, a Lei 14.133/2021 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos) aborda em seu artigo 121, caput, § 2º [5], a responsabilidade do Poder Público nos encargos trabalhistas, em sendo revelada a falha na prestação de serviços.

Dados estatísticos

De acordo com os dados do TRT-15 em 2023, foi registrado um aumento de 6,3% no número de ações judiciais relacionadas à temática acidente de trabalho e de 9% sobre doença ocupacional, sendo que a terceirização foi apontada como um dos principais fatores, em razão da precariedade de orientação e procedimentos de saúde e segurança no trabalho [6].

De outro norte, nos últimos tempos, foi veiculado recentemente na mídia que o Brasil bateu recordes de resgates no trabalho análogo à escravidão, de sorte que para alguns a terceirização facilita este trabalho precário [7].

Spacca

Nesse diapasão, ao se falar no dever de fiscalização do ente público, esse decorre dos princípios de Direito Administrativo, muito embora não possa a Administração Pública se valer da mão de obra do trabalhador sem prezar pela contraprestação devida, assim como deve agir com noção ética e de adequação social do meio buscado para atingir a sua finalidade pública.

Aliás, o Poder Público deve dar o exemplo no que tange ao respeito dos direitos sociais ao se utilizar de tal modalidade de contratação, pois se é verdade que a terceirização pode trazer benefícios para a sociedade, de igual modo não se deve violar os direitos humanos fundamentais do trabalhador.

STF

Destarte, é forçoso ressaltar que a Suprema Corte, ao julgar o Tema 246 da Tabela de Repercussão Geral [8], fixou a seguinte tese:

“O inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71, §1º, da Lei nº 8.666/93.”

Vale dizer, o ente público, segundo a tese vinculativa, será responsabilizado pelos encargos trabalhistas, mas, para isso, o ônus de comprovar a conduta culposa na fiscalização será, pelo STF, do trabalhador.

A propósito, a referida tese foi fixada dada a divergência que se estabeleceu entre o conflito interpretativo na aplicação da orientação contida na ADC nº 16 [9] do STF e a Súmula 331 do TST [10].

TST

A tal respeito, a Corte Superior Trabalhista já foi provocada a emitir juízo de valor sobre a temática, de sorte que o entendimento caminhou, no caso concreto, no sentido de que não se pode imputar, automaticamente, a responsabilidade subsidiária à Administração Pública [11].

Em seu voto, a ministra relatora ponderou:

“Contudo, em prosseguimento, o Município de Suzano (2º reclamado) ingressou com reclamação constitucional perante o Supremo Tribunal Federal, julgada procedente em decisão proferida pelo Exmo. Ministro André Mendonça, para ” cassar o acórdão da Quinta Turma do Tribunal Superior do Trabalho no processo nº TST-Ag-AIRR-1000719-64.2020.5.02.0492 e determinar que outra decisão seja proferida com observância dos critérios estabelecidos na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16/DF e no Recurso Extraordinário nº 760.931/DF (Tema RG nº 246), no que diz respeito à responsabilidade subsidiária do ente público .” (fls. 318/319). Logo, por disciplina judiciária, impõe-se a reanálise do tema conforme tese fixada pela Suprema Corte, no sentido da impossibilidade de presumir a culpa do agente público na fiscalização dos serviços terceirizados ou sequer de lhe imputar o ônus da prova. Nessa linha, constatado que o acórdão regional imputou à Administração Pública a responsabilidade subsidiária de forma automática, além de atribuir-lhe a obrigação de comprovar a diligente fiscalização, verifica-se contrariedade à Súmula 331, V, do TST, por má-aplicação, conforme entendimento manifestado na reclamação constitucional nº 55.663/DF julgada pelo Supremo Tribunal Federal. Assim, ausente premissa fática indispensável para caracterizar a sua conduta culposa, resta demonstrada a má aplicação da Súmula 331, V, do TST.”

Conclusão

Em arremate, não obstante a terceirização seja uma realidade cada dia mais presente na sociedade brasileira, não se pode permitir retrocessos sociais e a precarização. Atualmente, o STF possui o entendimento de ser impossível a transferência automática das obrigações trabalhistas ao ente público, porém, a tese fixada não aborda especificamente sobre o ônus da prova para a fiscalização da conduta culposa, e, por isso, é importante se debruçar melhor sobre o tema, evitando-se que seja imposto ao trabalhador um encargo que não possa ser efetivamente cumprido.

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[1] Disponível em https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6048634 . Acesso em 2.7.2024.

[2] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[3] Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 27, n. 1, 2023, página 58.

[4] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (…). XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

[5] Art. 121. Somente o contratado será responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato. (…). § 2º Exclusivamente nas contratações de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, a Administração responderá solidariamente pelos encargos previdenciários e subsidiariamente pelos encargos trabalhistas se comprovada falha na fiscalização do cumprimento das obrigações do contratado.

[6] Disponível em https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2024/04/30/precarizacao-faz-aumentar-acoes-judiciais-sobre-acidente-de-trabalho-e-doenca-ocupacional-no-interior-de-sp.ghtml. Acesso em 2.7 2024.

[7] Disponível em https://www.cut.org.br/noticias/entenda-como-a-terceirizacao-e-a-porta-de-entrada-para-o-trabalho-escravo-33d7 . Acesso em 01.07.2024.

[8] Disponível em https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=246. Acesso em 2.7.2024.

[9]  RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. Subsidiária. Contrato com a administração pública. Inadimplência negocial do outro contraente. Transferência consequente e automática dos seus encargos trabalhistas, fiscais e comerciais, resultantes da execução do contrato, à administração. Impossibilidade jurídica. Consequência proibida pelo art., 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666/93. Constitucionalidade reconhecida dessa norma. Ação direta de constitucionalidade julgada, nesse sentido, procedente. Voto vencido. É constitucional a norma inscrita no art. 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666, de 26 de junho de 1993, com a redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995.

[10] Súmula nº 331 do TST CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) – Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011

I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974). II – A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988). III – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial. V – Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada. VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.

[11] Disponível em https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=1000719&digitoTst=64&anoTst=2020&orgaoTst=5&tribunalTst=02&varaTst=0492&submit=Consultar. Acesso em 2.7.2024

Autores

  • é professor, advogado, parecerista e consultor trabalhista, sócio fundador de Calcini Advogados, com atuação estratégica e especializada nos tribunais (TRTs, TST e STF), docente da pós-graduação em Direito do Trabalho do Insper, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do comitê técnico da revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD), pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (Ius Gentium Coninbrigae), da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho, da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

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