Interesse Público

Nova Lei de Licitações tem instrumento de consensualidade para chamar de seu?

Autores

  • Luciano Ferraz

    é advogado e professor associado de Direito Administrativo na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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  • João Paulo Forni

    é auditor federal de Controle Externo do TCU assessor de licitações e contratações da Secretaria-Geral de Administração do TCU (Segedam/TCU) mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília advogado e administrador.

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4 de julho de 2024, 8h00

Na disciplina Controle Consensual da Administração Pública, que é oferecida pelo professor Luciano Ferraz nos cursos de pós-graduação da Faculdade de Direito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), estudam-se diversos instrumentos de consensualidade administrativa aplicados ao âmbito da Administração Pública brasileira.

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Nessas aulas, são submetidos ao crivo de todos, reflexões e debates e disposições do direito nacional que tratam de ajustamentos de conduta e de gestão, acordos substitutivos e integrativos e outros instrumentos afins, a merecer muitas vezes propostas de leitura, releitura e aplicação prática.

Um desses instrumentos (acordo previsto no artigo 17 da Lei 12.846/13), despertou a atenção do doutorando João Paulo Forni, servidor de carreira o TCU (Tribunal de Contas da União), lotado nas áreas de licitações e contratos administrativos do órgão (o segundo subscritor deste artigo).

A partir de proposta apresentada em sala de aula, João Paulo e o professor Luciano acordaram, mercê da pertinência com a Lei 14.133/21, em revisitar um texto mais antigo intitulado “Acordos de leniência da Lei Anticorrupção cumprem diferentes papéis”, publicado pelo último aqui nesta ConJur em 23 de junho de 2015, com o objetivo de lhe dar um contorno mais atual.

No texto de 2015 (anterior à Lei 14.133/21), defendeu-se que os “acordos de leniência” previstos nos artigos 16 e 17 da Lei 12.846/2013, embora aparentemente similares, apresentavam entre si diferenças marcantes, que permitiam classificá-los como institutos jurídicos distintos, com aplicação prática também distinta.

Para auxiliar nessa compreensão, convém estabelecer três premissas:

Primeira: não haveria sentido lógico para que o legislador da Lei 12.846/13 fizesse a previsão de dois acordos diferentes nos artigos 16 e 17, se ambos tivessem idêntica aplicação;

Segunda: ao legislador é dado tratar, embora essa não seja a melhor técnica, de instrumentos diferentes na mesma lei, sem que isso venha a afetar a compreensão sistemática que se possa alcançar do tema, mediante uma leitura conectada de suas disposições com outras regras legais (no caso, a leitura do artigo 17 da Lei 12.846/13 com se ele estivesse inserido na Lei de Licitações de Contratos Administrativo — Lei 14.133/21).

Terceira: a designação acordo de leniência, que vernaculamente quer significar acordo de abrandamento, mitigação, não expressa obrigatoriamente um sentido unívoco, que se lhe é ordinariamente atribuído. É possível, a ver as disposições legais, que um acordo batizado de leniência, possa vir a assumir natureza jurídica distinta de seu homônimo, interessando mais, para efeitos interpretativos, os aspectos de substância do que os de forma.

Vistas as premissas, citem-se os dispositivos dos artigos 16 e 17 da Lei 12.846/13, respectivamente:

Artigo 16. A autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo, sendo que dessa colaboração resulte:

I – a identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber; e

II – a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração.

  • 10. A Controladoria-Geral da União – CGU é o órgão competente para celebrar os acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo federal, bem como no caso de atos lesivos praticados contra a administração pública estrangeira.

Art. 17. A administração pública poderá também celebrar acordo de leniência com a pessoa jurídica responsável pela prática de ilícitos previstos na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, com vistas à isenção ou atenuação das sanções administrativas estabelecidas em seus arts. 86 a 88.

Como se vê, o acordo de leniência do artigo 16 da Lei 12.846/13 guarda semelhança inconteste com o acordo de colaboração premiada do âmbito criminal (Lei 12.850/13), qualificando-se como negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, exigindo, entre outros, a identificação dos demais envolvidos, a cessação da prática dos atos ilícitos, o compartilhamento de elementos em prol da comprovação.

A assinatura do acordo de leniência do artigo 16 da Lei 12.846/13, cuja competência é da CGU (na esfera federal) ou da máxima autoridade do órgão ou entidade nas demais (salvo disposição diversa na legislação local) isentará a pessoa jurídica das sanções previstas no inciso II do artigo 6º (publicação extraordinária) e no inciso IV do artigo 19 (proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo mínimo de um e máximo de cinco anos) e reduzirá em até dois terços o valor da multa aplicável, sem prejuízo do dever de ressarcimento.

Já o acordo (de “leniência”) previsto no artigo 17 da Lei 12.846/201, cuja competência é atribuída genericamente à Administração Pública (administração contratante), assume um perfil completamente diferente, constituindo-se num importantíssimo instrumento, voltado ao âmbito da inexecução dos contratos administrativos no Brasil, que serve ao objetivo de isentar ou diminuir as sanções previstas na Lei 8.666/93 e na Lei 14.133/21 e nada mais. [1]

Referido acordo do artigo 17 da Lei 12.846/13 não possui natureza jurídica de acordo integrativo (como pode parecer, por exemplo, a Thiago Marrara [2]). É equivocada essa visão, permissa venia, porquanto o acordo de que se trata não tem o condão apenas de parametrizar a discricionariedade existente em potência na lei para posteriormente aplicar mitigação das sanções, mediante ato unilateral da Administração. O acordo possui natureza jurídica de acordo substitutivo, tanto que sua formulação pode até isentar o contratado da aplicação da sanção, convindo sob viés prático à correção de rumos da execução contratual (numa espécie de ajustamento de conduta).

É verdade que a Lei 14.133/2021 poderia ter trazido, em seu texto, a previsão do acordo do artigo 17 da Lei 12.846/2013, mas não o fez. Perdeu-se assim a oportunidade de endereçar de maneira mais clara um dos principais problemas que acomete a gestão contratual pública: deixar de punir um contratado que comete conduta irregular quando, nas circunstâncias do caso, um ajuste de conduta seria mais benéfico à relação contratual e, por consequência, à Administração Pública.

Entretanto, mesmo sem tal previsão, esse instrumento pode (e deve) ser utilizado, assim como poderia sê-lo também para o contexto contratual da Lei 8.666/93. Nesse sentido, o artigo 189 da Lei 14.133/2021 dispõe que ela se aplica “às hipóteses previstas na legislação que façam referência expressa à Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993”.

Logo, diante de infrações previstas e passíveis de sanção no instrumento contratual, o ajuste que se exalta neste texto possibilita que a Administração estabeleça verdadeiros concertos com a pessoa jurídica responsável pela inexecução total ou parcial de contratos administrativos, ou pelo cometimento de outras irregularidades previstas nos dispositivos na Lei 14.133/21 ou no contrato, com vistas à isenção ou atenuação das penas (advertência, multa, impedimento de licitar e contratar e declaração de inidoneidade para licitar ou contratar, previstas no artigo 156 da Lei 14.133/2021), em prol de um aprimoramento nos níveis de serviço ou da melhoria na qualidade de bens fornecidos, mediante o contrato.

A natureza consensual desse acordo e a potencialidade de utilizá-lo para colocar fim imediato a celeumas instaladas entre Administração-contratante e particulares-contratado, no momento da execução de contratos administrativos, revelando-se como importante mecanismo destinado a superar as drásticas soluções rescisórias em âmbito contratual.

Importante ressaltar, em acréscimo, que a consensualidade administrativa está prevista inclusive nos casos em que a rescisão é a alternativa mais adequada, podendo se dar por acordo entre as partes, por conciliação, por mediação ou por comitê de resolução de disputas, desde que haja interesse da Administração (inciso II do artigo 138 da NLLC). Isso reforça a diretriz geral da nova lei no sentido de privilegiar ajustes dialogados, em detrimento de imposições unilaterais, o que deve ocorrer inclusive no contexto sancionatório.

No contexto dos contratos administrativos, portanto, e a despeito da cláusula geral disposta no artigo 26 da Lindb, o acordo previsto no artigo 17 da Lei 12.846/13 ganha primazia como fundamento dos ajustes, notadamente por conta de sua especificidade, pois expressamente aplicável na seara sancionatória contratual pública.

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[1] Note-se que se uma conduta violar simultaneamente a Lei 12.846/13 e a Lei de Licitações e Contratos, por evidente o acordo cabível há se ser o do artigo 16, mas se o caso trata de inexecução contratual apenas o acordo que tem cabimento é o do artigo 17 da Lei 12.846/13. Isso porque, no caso, estar-se-á diante de violação à denominada lei anticorrupção empresarial ou lei de improbidade empresarial.

[2] Ver DI PIETRO, Maria Silvia (Coord.). Manual de Licitações e Contratos Administrativos, 3. ed., São Paulo: Forense, 2023. p. 531-532.

Autores

  • é advogado e professor associado de Direito Administrativo na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

  • é auditor federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da União (TCU), assessor de licitações e contratações da Secretaria-Geral de Administração do TCU (Segedam/TCU), mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (Ceub), advogado e administrador.

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