Opinião

Levando a emergência a sério nas contratações: interpretação do art. 75 da Lei 14.133

Autor

  • é visiting scholar pela Fordham University School of Law (New York) doutor em Direito pela UVA-RJ mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-RJ especialista em Direito do Estado pela Uerj membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio de Janeiro (Idaerj) professor titular de Direito Administrativo do Ibmec professor do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito — mestrado e doutorado do PPGD/UVA do mestrado acadêmico em Direito da Universidade Cândido Mendes de Direito Administrativo da Emerj e do Curso Forum pdos cursos de pós-graduação da FGV e Cândido Mendes procurador do município do Rio de Janeiro sócio-fundador do escritório Rafael Oliveira Advogados Associados árbitro e consultor jurídico.

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3 de julho de 2024, 7h03

As situações emergenciais, sejam elas decorrentes de eventos imprevisíveis ou previsíveis, mas de consequências desproporcionais, evidenciam a necessidade de aplicação de um regime jurídico extraordinário e flexível capaz de apresentar soluções céleres para os desafios enfrentados, distinto do regime jurídico ordinariamente aplicado às situações de normalidade social, econômica, ambiental e institucional.

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No campo das contratações públicas, destaca-se a previsão contida no artigo 75, VIII, da Lei 14.133/2021 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos), que autoriza a contratação direta, com dispensa de licitação, de empresas para prestação de serviços, fornecimento de bens e execução de obras, nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando houver risco de prejuízo ou comprometimento à segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, tanto públicos quanto particulares.

Mencione-se, ainda, a recente Medida Provisória 1.221/2024, que dispõe sobre medidas excepcionais para a aquisição de bens e a contratação de obras e de serviços, inclusive de engenharia, destinados ao enfrentamento de impactos decorrentes de estado de calamidade pública, que foi elaborada a partir da maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul, ocorrida, especialmente, nos meses de abril e maio de 2024.

O foco do presente texto é apresentar os desafios de interpretação do artigo 75, VIII, da Lei 14.133/2021, que permite a dispensa de licitação nos casos de emergência ou de calamidade pública. A compreensão adequada deste dispositivo legal é crucial, pois ele regula as condições sob as quais a administração pública pode contratar com maior agilidade em situações críticas, sem a necessidade dos procedimentos de licitação convencionais, garantindo assim uma resposta eficiente e tempestiva em momentos de necessidade urgente.

De acordo com o referido dispositivo legal, é possível a dispensa de licitação nos casos de emergência ou de calamidade pública, [1] quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a continuidade dos serviços públicos ou a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para aquisição dos bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de um ano, contado a partir da data de ocorrência da emergência ou da calamidade, vedadas a prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já contratada com base no disposto neste inciso.

A contratação emergencial, assim com os demais casos de contratação direta, exige, em regra, a observância de procedimento formal prévio, que inclui a apuração e comprovação das condições legais para dispensa de licitação, devendo o processo ser instruído com as informações e documentos indicados no artigo 72 da Lei 14.133/2021.

Em situações emergenciais, que autorizam a dispensa de licitação, afigura-se razoável, contudo, a flexibilização das exigências formais na fase preparatória, em razão da urgência da contratação para o atendimento do interesse público. Assim, por exemplo, nas contratações em situações emergenciais e de instabilidade institucional, indicadas no inciso VIII do artigo 75 da Lei 14.133/2021, é dispensado o registro no plano de contratações anual (PCA), na forma do artigo 7º, III, do Decreto 10.947/2022, bem como é facultativa a elaboração do Estudo Técnico Preliminar (ETP), com fundamento no artigo 14, I, da Instrução Normativa SEGES Nº 58/2022.

É possível sustentar, inclusive, que, em situações de extrema urgência, com a necessidade da contratação emergencial imediata, outras exigências formais da fase preparatória sejam afastadas para não comprometer o atendimento do interesse público. [2]

Prazo ampliado para contratação

Não obstante as semelhanças entre o artigo 75, VIII, da Lei 14.133/2021 e o artigo 24, IV, da revogada Lei 8.666/1993, existem, ao menos, duas importantes diferenças entre os referidos dispositivos legais, a saber: enquanto a legislação anterior estabelecia o prazo máximo de seis meses para contratação, a nova lei amplia o prazo para um ano, vedada a prorrogação para além do prazo máximo nas duas normas; e ao contrário da legislação anterior, a nova lei proíbe a recontratação de empresa já contratada emergencialmente, com fundamento no referido dispositivo legal.

Registre-se que a proibição de prorrogação se refere ao prazo máximo fixado pela legislação na contratação emergencial, mas isso não impede as prorrogações, nos contratos celebrados por prazos inferiores, até o limite legalmente fixado. Assim, por exemplo, se o contrato emergencial foi celebrado, inicialmente, por prazo inferior a um ano, o ajuste poderia ser prorrogado até completar o referido limite. Nesse caso, naturalmente, o contrato continuaria sendo executado pela mesma empresa. Ao chegar no limite máximo de um ano, o contrato não poderia ser novamente prorrogado e a administração pública não poderia recontratar a empresa que executava, até então, o contrato emergencial, na forma da previsão literal do artigo 75, VIII, da Lei 14.133/2021.

Aqui é relevante destacar que as vedações de “prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já contratada”, constantes do inciso VIII do artigo 75 da Lei de Licitações, devem ser interpretadas dentro da própria lógica inserida no referido inciso. Vale dizer: ao permitir que a contratação emergencial envolva bens, obras e serviços que possam ser concluídos no prazo máximo de um ano, o legislador acabou por permitir, implicitamente, que o contrato seja celebrado em prazo inferior, com possíveis prorrogações até o limite do prazo anual. Nesse momento, com o atingimento do prazo anual, seria aplicada a vedação da prorrogação e da recontratação da mesma empresa.

De qualquer forma, como sustentamos em outra oportunidade, entendemos que as proibições de prorrogação do prazo, após um ano de contrato emergencial, e de recontratação emergencial da mesma empresa não podem ser absolutas.[3]

É verdade que o prazo máximo de um ano para contratação diminui as chances de perpetuação da situação emergencial ou de calamidade pública para além do referido prazo, mas, em situações extremas, verificada a necessidade de manutenção da execução do objeto contratual, poderia ser relativizada a limitação temporal.

A interpretação literal do artigo 75, VIII, da Lei 14.133/2021, impediria a prorrogação ou a recontratação da mesma empresa, ainda que houvesse a necessidade concreta da contratação, em razão da permanência da emergência ou da calamidade, e resultaria na eventual celebração de novo contrato emergencial com outra empresa, mesmo que os valores apresentados e as demais condições contratuais apresentem desvantagens em relação àquelas constantes do contrato emergencial anterior.

Proibição de recontratação

A partir de uma presunção inadequada de conluio ou má-fé por parte da administração pública e da contratada, que revela a duvidosa constitucionalidade da parte final do inciso VIII do artigo 75 da Lei 14.133/2021, o legislador optou por proibir a recontratação da mesma empresa já contratada emergencialmente, independentemente da correta execução contratual pela empresa e da permanência das condições mais vantajosas que aquelas apresentadas por outras empresas potencialmente interessadas.

Não se desconsidera a notícia de desvios pontuais e contratações emergenciais irregulares no âmbito da vigência da Lei 8.666/1993, o que deveria ensejar a atuação célere e proporcional das instâncias de controle, com a aplicação de sanções aos envolvidos. O que não se pode admitir, contudo, é que a exceção seja generalizada para se transformar em regra ineficiente e antieconômica. Algo semelhante ocorre com as denominadas “emergências fabricadas”, causadas pela desídia ou falta de planejamento do gestor público, que não impedem a formalização da contratação emergencial, com objetivo de manter a continuidade dos serviços estatais, mas exigem a apuração de responsabilidade dos agentes públicos que deram causa à situação emergencial, na forma do artigo 75, § 6.º, da Lei 14.133/2021.

Eventualmente, a excepcionalização do prazo máximo de um ano, quando a situação emergencial perdurar para além desse período, com a impossibilidade devidamente justificada de realização de licitação, seria razoável a flexibilização da vedação de prorrogação e de recontratação da mesma empresa, desde que, no momento da celebração do termo aditivo de prorrogação, a pesquisa de preços demonstre que a empresa contratada anteriormente permanece com condições mais vantajosas que as empresas concorrentes.

Ainda que a interpretação retrospectiva, com apoio na legislação anterior já revogada, não seja recomendável como regra geral, certo é que, na vigência do artigo 24, IV, da Lei 8.666/1993, o prazo máximo de 180 dias do contrato emergencial, vedada a prorrogação, não impedia a excepcional e justificada prorrogação para além do prazo semestral, na linha da jurisprudência do TCU.[4]

Em suma, sustentamos a viabilidade de flexibilização excepcional das vedações contidas na parte final do inciso VIII do artigo 75 da Lei 14.133/2021, com o intuito de não prejudicar o interesse público e, portanto, os direitos fundamentais em risco nas situações emergenciais. Seria possível, nesse cenário, a excepcional prorrogação do contrato emergencial para além do prazo de um ano, a partir de justificativas robustas por parte da administração pública, com a potencial contratação da mesma empresa, se as condições forem mais favoráveis que aquelas apresentadas pelas empresas consultadas no processo de contratação direta.

Aliás, demonstrando a insuficiência do limite máximo do prazo anual, o artigo 2º, III, da MP 1.221/2024, que dispõe sobre medidas excepcionais para contratações durante o estado de calamidade pública, permite a prorrogação de contratos para além dos prazos estabelecidos na Lei 14.133/2021, por, no máximo, 12 meses, o que relativiza o limite indicado no artigo 75, VIII, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos.

Revela-se necessário levar a sério as situações emergenciais, com a fixação de normas jurídicas que não se transformem em barreiras ao célere atendimento do interesse público e dos direitos fundamentais ameaçados nos casos de emergência ou de calamidade pública. Afinal, a diferença entre o remédio e o veneno é a dose ministrada.

 


[1] Sem desconsiderar a dificuldade na distinção da emergência e do estado de calamidade, verifica-se a tentativa doutrinária de diferenciação formal e material entre as situações:  a) aspecto formal: enquanto o estado de calamidade pressupõe decretação formal pelo Chefe do Executivo, a emergência não depende, necessariamente, de decretação formal, sendo suficiente o reconhecimento pelo próprio gestor; e b) aspecto material: o estado de calamidade envolve danos mais graves, configurando situação mais crítica que a emergência. De forma semelhante: art. 2º, VIII e XIV, do Decreto 10.593/2020. SARAI, Leandro. Tratado da nova lei de licitações e contratos administrativos: Lei 14.133/2021 comentada por advogados públicos, 2 ed. São Paulo: Editora Juspudivm, 2022, p. 943; MOTTA, Fabrício. Contratação direta: inexigibilidade e dispensa de licitação. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (Coord.). Licitações e contratos administrativos: inovações da Lei 14.133 de abril de 2021, 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 285-286.

[2] No mesmo sentido: CHARLES, Ronny. Leis de licitações públicas comentadas, 12 ed. São Paulo: Ed. Juspodivm, 2021, p. 435-436.

[3] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e Contratos Administrativos: teoria e prática. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 77/79; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Comentários à nova lei de licitações e contratos administrativos. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 176/178.

[4] No contexto, da Lei 8.666/1993, o TCU admitia, em situações excepcionais e justificadas, a prorrogação para além do prazo máximo de 180 dias. Vide, por exemplo: TCU, Plenário, Acórdão 3.238/2010, Rel. Min. Benjamin Zymler, j. 01/12/2010.

Autores

  • é visiting scholar pela Fordham University School of Law (EUA), pós-doutor pela Uerj, doutor em Direito pela UVA-RJ, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-RJ, especialista em Direito do Estado pela Uerj, professor Titular de Direito Administrativo do Ibmec, professor do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito do PPGD/UVA, do mestrado acadêmico em Direito da Universidade Cândido Mendes, professor de Direito Administrativo da Emerj, do curso Forum, dos cursos de pós-graduação da FGV e Cândido Mendes, ex-defensor público federal, procurador do município do Rio de Janeiro, sócio-fundador do escritório Rafael Oliveira Advogados Associados, árbitro e consultor jurídico.

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