INTELIGÊNCIA FINANCEIRA

Em dez anos, produção de relatórios do Coaf a pedido de MP e delegados cresce 1.300%

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3 de julho de 2024, 8h52

Em dez anos, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) aumentou em 1.339,4% o número de relatórios de inteligência financeira (RIFs) produzidos por iniciativa das Polícias Civil e Federal e do Ministério Público.

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Relatórios fornecidos pelo Coaf servem para abastecer investigação criminal

Dados do Coaf mostram que, em 2014, foram produzidos 1.035 RIFs a partir de comunicações feitas por essas instituições. Em 2023, a produção chegou a 13.863, um recorde.

Isso significa que, no ano passado, o Coaf produziu e entregou aos órgãos de persecução penal 38 relatórios por dia. E sem a necessidade de qualquer controle judicial prévio.

O boom de interesse de delegados de polícia e membros do Ministério Público ocorre no momento em que o Poder Judiciário ainda discute os limites para o compartilhamento dessas informações.

Em 2019, o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional o compartilhamento, de ofício, de informações sigilosas pelos órgãos de inteligência (Coaf) e fiscalização (Receita Federal) para fins penais, sem autorização judicial prévia.

Ao interpretar as teses do STF, o Superior Tribunal de Justiça inicialmente entendeu que, quando a informação é obtida pelo caminho inverso — por iniciativa do órgão de investigação —, é necessário passar pelo crivo do juiz antes.

Essa interpretação foi derrubada pela 1ª Turma do STF neste ano. O relator do caso, ministro Cristiano Zanin, entendeu que, de ofício ou a pedido do investigador, o Coaf pode compartilhar os relatórios sem autorização judicial prévia. A 2ª Turma e o Plenário da corte não se posicionaram ainda.

O STJ, então, fez uma adequação e, recentemente, avançou na discussão ao estabelecer que esse compartilhamento só é válido se já houver inquérito instaurado — antes disso, na fase da análise de notícia de fato pelo MP ou da verificação preliminar pela polícia, não cabe a medida.

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Mapa de calor

As informações que o Coaf fornece à investigação criminal indicam apenas uma coisa: que há em sua base de dados movimentações suspeitas praticadas pelas pessoas ou empresas alvos da investigação.

Movimentações suspeitas não são necessariamente ilícitas: são aquelas que fogem dos padrões ou que ultrapassam determinados limites de valor. Elas são informadas ao Coaf por bancos e setores obrigados por lei — em regra, aqueles mais propensos a serem usados para lavagem de dinheiro.

O relatório do Coaf, portanto, não gera prova. Ele apenas indica a delegados de polícia e membros do MP onde investigar. Em palestra recente, o diretor de supervisão do Coaf, Rafael Ximenes, classificou-os como “mapas de calor”.

MPs e polícias podem solicitar dados porque tanto a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/1998) quanto o Estatuto do Coaf (Decreto 9.663/2019) autorizam o intercâmbio de informações de inteligência financeira. Também têm essa prerrogativa a Controladoria-Geral da União (CGU), órgãos do Poder Judiciário e Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs).

Para permitir esse contato, foi criado o Sistema Eletrônico de Intercâmbio (SEI-C), plataforma digital em que essas instituições registram dados sobre pessoas investigadas, ilícitos e modus operandi por elas utilizados.

Ao receber essas comunicações, o Coaf verifica nos dados que possui — aqueles já informados pelos setores obrigados a isso — se existem informações sobre os investigados. Se a resposta é positiva e há coerência entre a suspeita e as movimentações financeiras, um RIF é produzido e encaminhado.

Segundo o Coaf, os crimes que mais geraram produção de relatórios de inteligência financeira em 2023 foram tráfico de drogas, fraudes, corrupção e organização criminosa.

ConJur
Encomenda ‘de ofício’

O Coaf rejeita o jargão “RIF por encomenda”. Isso porque o relatório de inteligência financeira é produzido apenas se houver correspondência em sua base de dados e acaba compartilhado “de ofício”.

Fato é que a imensa maioria dos RIFs produzidos pelo órgão segue esse modelo. Em 2023, o Coaf produziu 16.411 relatórios, sendo 14.816 (90,2%) decorrentes de comunicações feitas pelo SEI-C.

A maioria esmagadora desses RIFs partiu de iniciativa de delegados das Polícias Civil e Federal: foram 12.013 no ano passado, ou 73,2% do total produzido pelo Coaf.

A Polícia Civil é a que mais utiliza essa ferramenta. Em 2023, enviou incríveis 11.012 comunicações ao Coaf — 29 vezes mais do que em 2014, quando foram apenas 379. E recebeu 7.055 RIFs.

Já os Ministérios Públicos, incluindo a Procuradoria-Geral da República, motivaram 11% dos relatórios concluídos em 2023. Juntos, polícias e MPs representam 84,4% de todos os RIFs do ano passado — 13.863 ao todo.

O crescimento da produção de relatórios foi possível também porque há um aumento exponencial do número de comunicações feitas ao Coaf pelos setores obrigados. Em 2023, foram mais de 7,6 milhões. Há dez anos, não alcançavam nem 1,2 milhão.

Já o número de relatórios aumentou mais de cinco vezes na última década. Em 2023, foram 16.411, contra 3.178 em 2014.

Fishing expedition

Para os advogados de defesa, o fato de delegados e MPs acessarem informações financeiras sigilosas de seus clientes sem passar pelo crivo do Judiciário é um enorme problema. A experiência mostra que os investigados só sabem que seus dados foram compartilhados quando são formalmente indiciados, denunciados ou se tornam alvos de diligências.

Antes disso, os RIFs passam por análises de setores técnicos e geram outras ações investigatórias. Diluídas e incorporadas, as informações financeiras se tornam parte de uma tese acusatória.

Quando essa tese é apresentada, cabe às defesas comprovar, entre outros tópicos, que as movimentações financeiras registradas pelo Coaf não são produtos do crime.

Para o advogado André Coura, sócio e fundador do escritório Coura e Silvério Neto, na prática há a inversão do ônus da prova. O MP apresenta uma acusação e um emaranhado de operações financeiras, e o réu que comprove que não há crime.

Ele classifica esse rito como “um convite à pesca probatória” (fishing expedition) porque a investigação migra dos fatos criminosos, que o Coaf não tem como comprovar, para a figura dos suspeitos, dos quais o órgão pode ter informações.

Além disso, há a captura da cognição do juiz. Quando a licitude do acesso aos dados do Coaf é avaliada pelo magistrado — que, até a implantação do juiz das garantias, é o mesmo que vai julgar o mérito da causa —, ele já absorveu o conteúdo e seus impactos.

“O relatório de inteligência financeira é uma ferramenta poderosa, que mereceria sindicância judicial prévia porque a investigação trabalha essas informações como melhor lhe aprouver, sem nenhum contraditório. Isso vai para o processo, instrui a denúncia e, só mais para frente, haverá controle judicial, mas para tratar do compartilhamento, não do mérito”, disse Coura.

O advogado define o Coaf como “uma verdadeira caixa preta bancária e financeira” à disposição da acusação. “É como dar a chave de acesso de um cofre com informações valiosas para o investigador.”

O caminho do dinheiro

Para a persecução penal, o relatório do Coaf é realmente um enorme aliado, especialmente em um mundo globalizado, com organizações criminosas estruturadas e com o amplo uso da tecnologia para disfarçar suas operações.

Por isso, os RIFs são apenas um ponto de partida. Eles são usados para decidir se vale a pena investigar, se há realmente indícios. E apontam o caminho do dinheiro, um dos critérios mais valiosos para a investigação.

Membro da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Márcio Gomes explica que seria um atraso o Coaf se limitar a dizer que existe movimentação atípica de determinada pessoa ou empresa.

“Não é que a polícia vá determinar que se faça algum tipo de relatório de inteligência financeira. O que há é saber se existe movimentação atípica referente a determinada situação. Não se escolhe ao léu algum CPF ou CNPJ para mandar o Coaf fazer uma busca minuciosa. Não é uma prospecção.”

Para o delegado da PF, o tema dos RIFs é pouco compreendido e precisa ser alvo de uma definição jurídica por parte dos tribunais. Ele nada mais é do que uma notícia de movimentação atípica, sem qualquer análise de mérito.

Por meio dessas movimentações, a investigação encontra caminhos para exercer uma das principais estratégias de desarticulação do crime organizado: a asfixia financeira.

“É preciso identificar para onde o dinheiro está vertendo, para que seja possível sequestrar bens e tornar essa atividade pouco interessante. Na medida em que você impede que a organização criminosa consiga seu fim último, que é o lucro pela compra de bens, negócios ou o que seja, você torna o crime uma atividade pouco atrativa.”

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