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A Casa do Jurista: os apelidos das faculdades de direito brasileiras

3 de julho de 2024, 10h21

Por Lucas Hendricus Andrade Van den Boomen

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A Faculdade de Direito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), em Belo Horizonte, é orgulhosamente conhecida como a “Casa de Afonso Pena”. Usualmente, o adjetivo “vetusta”, denotando a antiguidade e a respeitabilidade da academia, precede o apelido. Isto porque Afonso Augusto Moreira Pena (1847-1909), mineiro de Santa Bárbara e sexto presidente da República, foi também fundador e primeiro diretor da “Escola Livre de Direito”, fundada na cidade histórica de Ouro Preto em 1892. Seu governo (1906-1909) — inserido no contexto da Política do Café com Leite, na qual se revezavam no poder sempre um presidente mineiro e um paulista — coincidiu com a “época em que o regime oligárquico atingiu seu apogeu com a reforma urbana do Rio de Janeiro (1903-1906) e a exposição do centenário da abertura dos portos (1908)” (Lynch, 2021, p. 92) [1].

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O centro acadêmico dos discentes da Faculdade de Direito da UFMG também leva o nome do presidente dos tempos da República Velha (1889-1930). Por lá passaram Raul Machado Horta, Caio Mário da Silva Pereira e Washington Peluso Albino de Souza, dentre tantos outros. Devemos conhecer esses nomes e suas respectivas obras, não por amor a uma espécie de idolatria intelectual ou a uma defasada “história dos grandes homens”, mas sim devido a sua importância para a formação do operador do direito. É sabido que as doutrinas jurídicas, guardadas as críticas a rigidez dos manuais, são um importante pilar consultivo e orientativo do ordenamento jurídico.

Não obstante, a “Vetusta Casa de Afonso Pena” não é o único caso em que uma faculdade é conhecida por um apelido que homenageia seus ilustres vultos do passado. A Faculdade de Direito do Recife (da Universidade Federal de Pernambuco) também é chamada de “Casa de Tobias”.

Antes, uma nota histórica relevante. A criação dos primeiros cursos jurídicos no Brasil se deu em 1827, através da Lei Imperial de 11 de agosto, assinada por Dom Pedro I. Foram então criados dois “cursos de sciencias jurídicas e sociaes” [sic] em solo nacional, um em São Paulo e o outro em Olinda. Antes, a única opção para os brasileiros aspirantes a carreira jurídica era o curso de cânones e leis da centenária Universidade de Coimbra, em Portugal. Dentre os egressos de Coimbra estiveram Pimenta Bueno e Bernardo Pereira de Vasconcelos.

A academia inaugurada em São Paulo no longínquo ano de 1827 viria a ser conhecida por diferentes nomes: Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, Sanfran, Arcadas, sendo que atualmente seu nome oficial é Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). A Faculdade de Direito de Olinda, por sua vez, seria transferida em 1854 para a capital da então província de Pernambuco, Recife, passando a carregar o nome da nova cidade que lhe abrigara.

Como foi dito anteriormente, a Faculdade de Direito do Recife é comumente chamada de “Casa de Tobias”. A razão é que um dos principais teóricos da história da escola pernambucana foi Tobias Barreto de Meneses (1839-1889), intelectual profícuo que viveu no Brasil Império durante o século 19. Tobias Barreto encabeçou dois importantes movimentos, um jurídico-filosófico, a chamada “Escola do Recife”, e um literário, o “condoreirismo”.

“Naqueles subversivos anos recifenses” (Martins-Costa, 2013, p. 8356) [2], Tobias, um germanista nato, foi o responsável por introduzir as ideias de autores alemães como Rudolf von Ihering e Herman Post entre a jovem intelectualidade da capital pernambucana. “É reconhecido ao seu germanismo ter preservado o norte e o nordeste do estreito positivismo (comtiano) que por tanto tempo dominou outras regiões e escolas” (Martins-Costa, 2013, p. 8352). Já no campo da literatura, fundou o movimento conhecido como “condoreirismo”, integrante da terceira geração da poesia romântica brasileira, de temas republicanos e abolicionistas, cujo maior expoente foi Castro Alves (Van Den Boomen, 2021)[3].

O Direito no Império

Apesar de não ser uma faculdade de direito, o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), fundado em 1843, também teve grande relevância nas discussões político-jurídicas do Império. Vale lembrar que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) só seria criada em 1930. O IAB, mais antiga entidade representativa da classe, é apelidado de “a Casa de Montezuma”. Francisco Jê Acaiaba de Montezuma (1794-1870), nascido Francisco Gomes Brandão, era “bacharel de Coimbra, jurista, político, jornalista, orador […]. Graças ao seu entusiasmo e interesse, foi criado o Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, cujos estatutos foram aprovados por dom Pedro II aos 7 de agosto de 1843, dando-se a sua instalação solene na sala grande do Colégio Pedro II, aos 7 de setembro de 1843, com famoso discurso de Montezuma, e presença dos ministros da Justiça, dos Estrangeiros e da Marinha, legisladores, diplomatas, advogados e magistrados” (Pereira, 2001) [4].

Segundo Miguel Reale (2006, p. 184) [5], “pode-se mesmo afirmar que, enquanto a Faculdade de Direito do Recife se salientou mais no campo jurídico ou filosófico, com Tobias Barreto e Clóvis Beviláqua à frente, a de São Paulo se projetou mais nos domínios da política e das letras, muito embora, é claro, não faltem à casa pernambucana exemplos magníficos em ambas as esferas de atividade. A rigor, se tratava de duas casas irmãs, tendo contribuído para estreitar os laços nacionais, o surpreendente hábito que induzia altos espíritos, como Joaquim Nabuco, Castro Alves ou Rui Barbosa, a frequentarem ambas as faculdades” (Reale, 2006, p. 184). Dessa forma também procedeu Teixeira de Freitas.

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De fato, muitos acadêmicos de direito daquele período revezavam seu estudos nas duas únicas faculdades existentes, passando a possuir, portanto, duas alma mater. Outros realizaram o curso de direito de maneira integral em apenas uma das instituições. Lafayette Rodrigues Pereira, o Conselheiro Lafayette, bacharelou-se em São Paulo. Já Pontes de Miranda, bacharelou-se em Recife. Luís Gama, por sua vez, tentou ingressar na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, mas foi impedido em virtude do preconceito dos demais alunos. Isso não o impediu de se tornar um dos maiores rábulas da história desse país! Evaristo de Moraes também foi rábula [6] até 1916, quando se bacharelou em direito “pela Teixeirinha, como era conhecida a Faculdade de Direito Teixeira de Freitas, de Niterói” (LIMA, 2024) [7].

Em 1891, enquanto era ministro da Instrução Pública do governo provisório, Benjamin Constant Botelho de Magalhães promoveu uma reforma educacional que facilitou a criação de novos cursos superiores (a chamada “reforma Benjamin Constant”). Com essa abertura, ao longo da última década do século 19 e da primeira década do século 20, novas academias foram criadas em terras brasileiras: com maior destaque, a já citada Escola Livre de Direito, em Minas Gerais, e a Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, que só ganharia esse nome em 1937 com intuito de denotar sua importância e centralidade na então capital da república, república essa comandada com mãos de ferro por Getúlio Vargas.

Pelos bancos da escola carioca passaram Sobral Pinto, Nelson Hungria, Oliveira Viana e San Tiago Dantas, apenas a título de exemplo. Antes disso, em 1900, havia surgido a Faculdade Livre de Direito, no Rio Grande do Sul (até hoje o curso da UFRGS é chamado de “bacharelado em ciências jurídicas e sociais” e não de “bacharelado em direito”). É importante destacar que, já de início, as novas escolas passaram a formar grandes nomes da ciência jurídica. Coimbra, a Casa de Tobias e as Arcadas já não eram mais a única opção.

Por fim, temos a Faculdade Mineira de Direito, vinculada a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), carinhosamente apelidada de Casa de Lopes da Costa. Alfredo de Araújo Lopes da Costa (1885-1966) foi desembargador e um proeminente processualista. Ainda sob a égide do Código de Processo Civil de 1939, publicou o seu monumental tratado “Direito Processual Civil Brasileiro” (1941) (Teixeira, 2000) [8]. Lopes da Costa contribuiu para a fundação da Faculdade Mineira de Direito (FMD), em 1949, e foi seu primeiro diretor. Em 12 de dezembro de 1958, o então presidente da República, Juscelino Kubitschek, e o ministro da Educação, Clóvis Salgado, assinaram o decreto de criação da Universidade Católica de Minas Gerais. A FMD foi logo incorporada. O reconhecimento da Universidade Católica pelo Vaticano só veio a acontecer em 1983, quando foi aprovada a concessão do título de “Pontifícia”, título esse que só é concedido pela Santa Sé. A PUC Minas continua formando grandes processualistas, os quais ofertam importantes contributos para chamada “escola mineira de processo”. Destaca-se o professor Rosemiro Pereira Leal e a sua “teoria neoinstitucionalista do processo”.

Vimos como as academias jurídicas se tornam o lar do conhecimento imortalizado de seus grandes alunos, diretores e fundadores: a Casa de Afonso Pena, a Casa de Tobias Barreto, a Casa de Lopes da Costa… A crítica vem de uma trágica constatação de época: a ausência de nomes femininos homenageando renomadas faculdades de direito. Nomes inspiradores é o que não faltam! Quem sabe, num futuro próximo, possamos nos referir a espaços de conhecimento como a Casa de Maria Helena Diniz, Ada Pellegrini Grinover, Maria Sylvia Zanella di Pietro, Carmem Lúcia, Giselda Hironaka, Misabel Derzi…

Até lá, a prosopografia desses homens do passado continuará carregando a história de brilhantismo de todas essas instituições. Só não podemos, jamais, deixar de lado o senso crítico e o olhar para o futuro. Que as faculdades de direito possam ser, de fato, uma casa para aqueles profissionais que jurarão defender a justiça e a Constituição; uma casa para os profissionais que tenham a legalidade e a liberdade como tábuas da vocação, conforme o conselho de Rui Barbosa; uma casa sem espaço para a misoginia, racismo ou qualquer outra espécie de preconceito, por fim.

 


[1] LYNCH, Christian Edward Cyril. Entre o autoritarismo e o judiciarismo: o espectro do Poder Moderador na República (1889-1945). História do Direito, [S.l.], v. 2, n. 3, p. 82-116, mar. 2022. ISSN 2675-9284. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/historiadodireito/article/view/83606.  Acesso em: 25 jun. 2024.

[2] MARTINS-COSTA, Judith. Clóvis Bevilaqua e a Escola do Recife. Revista do Instituto do Direito Brasileiro. Lisboa, ano 2, n. 8, p. 8349-8368, 2013. Disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/ridb/2013/08/2013_08_08349_08368.pdf. Acesso em: 28 jun. 2024.

[3] VAN DEN BOOMEN, Lucas Hendricus Andrade. Direito e literatura em Tobias Barreto: uma breve reflexão. Revista Consultor Jurídico (Conjur), São Paulo, 22 out. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-22/opiniao-direito-literatura-tobias-barreto-breve-reflexao/. Acesso em: 24 jun. 2024.

[4] PEREIRA, Caio Mário da Silva. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL (OAB). In: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. 2001. Disponível em: https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/dicionarios/verbete-tematico/ordem-dos-advogados-do-brasil-oab. Acesso em: 26 jun. 2024.

[5] REALE, Miguel. Entrevista. In: MOTOYAMA, Shozo. USP 70 anos: imagens de uma história vivida. São Paulo: EdUSP, 2006.

[6] Sobre o tema vide: FILHO, Pedro Paulo. Famosos Rábulas no Direito Brasileiro. São Paulo: Editora JH Mizuno, 2007.

[7] LIMA, Albino. EVARISTO DE MORAES. In: Acadêmicos. Academia Brasileira de Direito do Trabalho. Disponível em: https://andt.org.br/academicos/evaristo-de-moraes/. Acesso em: 25 jun. 2024.

[8] TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Lopes da Costa e o Processo Civil Brasileiro. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v.3, n.11, 2000. Disponível em: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/456/lopes_costa_processo_teixeira_EMERJ_ABERTO.pdf. Acesso em: 28 jun. 2024.