Opinião

Proteção dos bens essenciais na recuperação judicial: restrições à retirada

Autor

  • Rafael Henrique Boselli

    é advogado do escritório Nakano & Berga-masco Sociedade de Advogados atuando em direito empresarial e pós-graduado em Direito Digital e Proteção de Dados pela UniBrasil.

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2 de julho de 2024, 20h54

Como é bem sabido, a recuperação judicial é um instituto jurídico que visa à reestruturação financeira de empresas em dificuldades econômicas.

De acordo com o artigo 49 da Lei nº 11.101/2005, todos os créditos existentes na data do pedido de recuperação judicial estão sujeitas ao procedimento, mesmo que não vencidos.

Art. 49 – Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.

Conforme estabelecido no § 3º do referido artigo, alguns créditos não estão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial. Isso se aplica especialmente aos credores cujos contratos possuem pacto de alienação fiduciária. No entanto, a parte final deste mesmo artigo faz uma exceção: durante o processo de recuperação judicial, não é permitida a venda ou retirada dos bens de capital essenciais do estabelecimento do devedor, preservando, assim, sua atividade empresarial.

§ 3º – Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.

Observa-se que a parte final do supracitado parágrafo estabelece uma exceção dentro da exceção, pois determina que, apesar de certos créditos não estarem sujeitos aos efeitos da recuperação judicial, o credor, ao exercer os direitos decorrentes da mora ou inadimplemento, não pode realizar a venda ou retirada dos bens de capital essenciais do estabelecimento do devedor. Estes referidos bens são considerados fundamentais para a atividade empresarial que se busca reerguer por meio da recuperação judicial.

Portanto, este artigo jurídico visa trazer à discussão um tema que está se mostrando extremamente controverso no ordenamento jurídico da atualidade, porém muito relevante para a correta aplicação da Lei de Recuperação e Falência.

No contexto jurídico em questão, visando elucidar de maneira mais aprofundada a problemática em pauta, é pertinente rememorar um episódio que vem se mostrando de extrema relevância para o escopo da Lei nº 11.101/2005, havendo que se destacar o imbróglio gerado entre uma empresa transportadora, cuja essência do seu negócio é o transporte rodoviário de cargas, e as instituições financeiras cuja frota de caminhões encontrava-se alienada fiduciariamente.

Spacca

Neste quesito, o artigo 6º da Lei nº 11.101/2005 traz algumas das consequências jurídicas que ocorrem quando da decretação de falência ou o deferimento da recuperação judicial, no sentido de auxiliar a empresa devedora nos estágios iniciais da sua reestruturação. Nestes termos, parafraseando o § 4º do artigo em referência:

§ 4º – Na recuperação judicial, as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado do deferimento do processamento da recuperação, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não haja concorrido com a superação do lapso temporal.

Retirada de bens

De bom alvitre rememorar que o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que, mesmo com o término do prazo de blindagem legal, denominado de “stay period”, previsto no artigo 6º, § 4º da Lei nº 11.101/2005, no caso de bem reconhecidamente essencial à consecução da atividade empresarial da pessoa jurídica em recuperação judicial, de rigor a manutenção da proibição de retirada dos referidos bens do estabelecimento comercial (AREsp nº 1.608.261/GO (2019/0319762-2).

Em relação a isto, segue trecho que merece destaque, de voto do ministro Antônio Carlos Ferreira, verbo ad verdum:

Esta Corte possui entendimento de que os credores cujos créditos não se sujeitam ao plano de recuperação não podem expropriar bens essenciais que afetem o patrimônio da sociedade recuperanda, consoante disciplina o art. 49, § 3º, da Lei n. 11.101/05, pois indispensáveis à preservação da atividade econômica da devedora, sob pena de inviabilização da empresa e dos empregos ali gerados.

O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é ainda mais evidente no AREsp nº 2001822 – GO (2021/0326653-3), pois a Corte consagrou a tese no sentido de que apesar do credor fiduciário de bens móveis ou imóveis não se sujeitar aos efeitos da recuperação judicial, se os referidos bens forem declarados como indispensáveis ao soerguimento da empresa devedora pelo juízo universal, restará vedada a alienação ou remoção destes bens do estabelecimento comercial da empresa em soerguimento.

Além dos que já foram mencionados, os precedentes do Superior Tribunal de Justiça acerca do tema são inúmeros (REsp nº 1.660.893/MG; REsp nº 1.668.877/DF; REsp nº 1.061.093/SP; AREsp nº 1.732.379/MS; AREsp nº 1.475.536/RS; AREsp nº 1.475.546/RS) e merecem a devida menção neste artigo para fins de estudo.

Aos olhares da Corte Superior, plenamente possível, portanto, a permanência dos bens essenciais na posse do devedor, mesmo após finalizado o período de blindagem legal, comumente referenciado como “stay period”.

Todavia, tal situação não irá ocorrer de forma automática, sendo necessário que o devedor leve ao conhecimento do Juízo Universal a necessidade de permanência na posse dos bens, utilizando-se de dados informativos atualizados e que possam servir como fundamento do pedido.

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Inclusive, antes da alteração do § 4º do artigo 6º da Lei nº 11.101/2005, e de adotar uma posição mais conservadora, o Tribunal de Justiça do estado de São Paulo, por intermédio de sua câmara reservada, possuía entendimento que possibilitava a flexibilização do “stay period”, de forma excepcional, desde que o devedor não tivesse concorrido com a superação do lapso temporal (Enunciado IV do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial).

Por sua vez, para acompanhar o pedido de permanência dos bens essenciais na posse do devedor, e para trazer mais embasamento jurídico à questão, será pertinente rememorar o instituto jurídico da manutenção de posse, abarcado pelo artigo 560 do Código de Processo Civil, ad litteris:

Art. 560 – O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação e reintegrado no caso de esbulho.

Trazendo ainda mais robustez nestes dizeres, o artigo 1.020 do Código Civil também dispõe acerca do tema:

Art. 1.020 – O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violação iminente, se tiver justo receio de ser molestado.

É consabido que o interesse de agir no caso em comento irá surgir a partir de um conflito de interesses ao qual o devedor, ao se julgar lesado ou na iminência de vir a sê-lo, busca a intervenção do Poder Judiciário para a análise e aplicação do Direito, ao qual, conforme a orientação do Superior Tribunal de Justiça (REsp n 1.637.375/SP), a obrigatória adstrição do julgador ao pedido pode ser mitigado em observância ao “brocardos da mihi factum dabo tibi ius” (dá-me os fatos que te darei o direito) e “iuria novit curia” (o juiz é quem conhece o direito).

Portanto, comprovada a necessidade de manutenção dos bens em posse do devedor, conforme reconhecido pelo juízo universal e em conformidade com as diretrizes do Superior Tribunal de Justiça, e preenchendo-se os requisitos do artigo 561 do Código de Processo Civil, entende-se ser perfeitamente viável a manutenção temporária dos bens na posse da empresa em soerguimento, visando auxiliar no processo de recuperação.

De mais a mais, mesmo que os credores fiduciários venham a alegar que possuem a propriedade sobre os bens, tal fato não acarretará em qualquer óbice para a análise do pedido, uma vez que o artigo 557, parágrafo único do Código de Processo Civil aduz claramente que o pedido não poderá ser obstado mediante a alegação de propriedade ou de outro direito sobre a coisa.

Isto, pois, rememora-se que a retirada dos bens essenciais da posse do devedor, como, por exemplo, caminhões de uma empresa cujo objeto social é o transporte rodoviário de cargas, prejudicará, por completo, a viabilidade do procedimento, indo em direção contrária ao princípio da preservação da empresa, disposto no artigo 47 da Lei nº 11.101/2005, ad litteris:

Art. 47 – A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

Como no caso que aqui está sendo citado, afigura-se evidente o caráter essencial de cavalos-mecânicos e carretas alienados fiduciariamente para a realização da atividade empresária que constitui o objeto precípuo da devedora fiduciante, em recuperação judicial. Neste exemplo, o exercício da garantia fiduciária interferirá diretamente na recuperação financeira do devedor, o que acarretará na diminuição da frota de veículos e consequente perda de capacidade de cumprir os contratos de transporte, prejudicando a relação do devedor com os seus clientes e afetando diretamente o seu faturamento.

O referido princípio visa não só a manutenção da empresa no mercado, como também a preservação da busca pelo pleno emprego, regulando-se o exercício da atividade econômica mediante a implementação de incentivos à iniciativa privada para a criação e subsistência dos empregos.

Destaca-se que a situação jurídica em comento deverá sempre ser analisada caso a caso, uma vez que nem todas as sociedades empresárias podem ser consideradas beneficiárias da excepcionalidade aqui discutida, pois nem todas utilizam os bens alienados fiduciariamente para a consecução de suas principais atividades,. Assim, para se evitar negativas generalizadas deverá o magistrado interpretar a situação concreta, mediante análise minuciosa dos fatos, fundamentos jurídicos e provas colacionadas nos autos, decidindo sempre com fulcro na preservação da sociedade empresária e na manutenção da coletividade de credores.

Por fim, rememora-se que no caso excepcional aqui discutido, a preservação da empresa e a manutenção da fonte produtora de empregos importam mais do que o direito dos credores fiduciários, que podem perseguir o adimplemento do crédito extraconcursal por vias transversas, como o ajuizamento de processo de execução.

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  • é advogado do escritório Nakano & Berga-masco Sociedade de Advogados, atuando em direito empresarial, e pós-graduado em Direito Digital e Proteção de Dados pela UniBrasil.

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