Licitação, cláusulas uniformes e monopólios artificiais
2 de julho de 2024, 11h18
Sob a égide da sepultada Lei Federal nº 8.666/1993, havia vedação à contratação de servidor, dirigente, contratante e responsável pela licitação.
Assim, previa:
“Art. 9o Não poderá participar, direta ou indiretamente, da licitação ou da execução de obra ou serviço e do fornecimento de bens a eles necessários:
(…)
III – servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação.”
Na vigência da referida lei, os debates judiciais e das cortes de contas, em sua maioria, discutiam o tema no âmbito de vereadores e prefeitos.
Não havia, àquela época, decisão do tema 1.001 do C. STF, que versou sobre os limites da legislação municipal para vedações em tais contratações.
Tema 1.001 do STF
Assim, a Suprema Corte fixou (em 30/6/2023) a seguinte tese de repercussão geral:
“É constitucional o ato normativo municipal, editado no exercício de competência legislativa suplementar, que proíba a participação em licitação ou a contratação: (a) de agentes eletivos; (b) de ocupantes de cargo em comissão ou função de confiança; (c) de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, de qualquer destes; e (d) dos demais servidores públicos municipais.”
Desta forma, o STF cristalizou aquilo que já era tendência na jurisprudência no sentido de que a legislação municipal poderia aumentar o rol de proibições previstas na Lei Federal nº 8.666/1993.
Apesar de ser anterior, a decisão do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) firmou entendimento semelhante (ainda que a contrário senso) de que não havendo lei municipal, não haveria proibição suplementar.
Assim, decidiu em 2019 a Corte Bandeirante:
“Apelações. Improbidade administrativa. Contrato celebrado entre a Prefeitura Municipal e a empresa-ré, cuja sócia-administradora, à época, era vereadora. Compra de materiais elétricos, de iluminação e ferramentas mediante pregão presencial, pelo menor preço. Cláusulas contratuais pré-fixadas em edital próprio, qualificadas como uniformes. Inexistência de lesão ao erário, superfaturamento e desrespeito aos princípios norteadores da Administração Pública. Ausência de dolo, má-fé ou deslealdade contratual. Improcedência dos pedidos que se impõe. Recursos dos réus providos, portanto.”
(Apelação 1001310-10.2015.8.26.0160, Relator: Elias Manfré, 3ª Câmara de Direito Público, julgamento: 28/05/2019, publicação: 29/05/2019-grifos nossos)
No corpo do acórdão mencionado acima consta a interpretação a contrário senso daquilo que, posteriormente, se firmou como tese de Repercussão Geral nº 1.001.
Nas apelações números: 3001696-72.2013.8.26.0484 (comarca de Promissão) e 0004988-93.2011.8.26.0482 da comarca de Presidente Prudente (município de Alvares Machado), houve reconhecimento da improbidade em razão da contratação de empresa cujos quadros societários têm parentes de servidores/vereadores. Porém, nos dois precedentes há expressa vedação na Lei Orgânica e houve contratação direta e dispensa de licitação. Ou seja, havia tendência no TJ-SP de interpretação bem semelhante, na essência, àquela que se tornou, posteriormente, tese de repercussão geral.
Em resumo, o tema da vedação de contratações interpretava o artigo 9º, III da Lei Federal de maneira restritiva, salvo se a legislação municipal instituísse outras vedações.
Como a regra de vedação tem como finalidade proibir o tráfico de influência, a jurisprudência utiliza-se da proibição constitucional dirigida àqueles que teriam maiores condições de tal prática ilícita: parlamentares. Assim é que se interpretou que a maior vedação é dirigida aos membros do Poder Legislativo, nos termos do artigo 54, I “a” da CF. Como a maior vedação existente previu a exceção para contratos com “cláusulas uniformes”, tal exceção também permanece para os cargos de menor estatura hierárquica e menor poder para a prática do tráfico de influência.
Cláusulas uniformes
Como dito, a jurisprudência acerca da mencionada vedação contratual entendia pela possibilidade de contratação no caso de contrato com cláusulas uniformes.
Não havia (e não há) consenso sobre o conceito de cláusulas uniformes. Alguns precedentes estendiam o conceito de maneira a albergar contratos administrativos firmados por pregão diante da uniformidade das cláusulas e do critério de escolha apenas pelo menor preço. Nesse diapasão, decidiu o TJ-SP, apelação 1001310-10.2015.8.26.0160.
O TSE, em 29/9/2022 decidiu (por 4 a 3) que o contrato de locação firmado com o Distrito Federal e o candidato Paulo Otávio era um contrato com “cláusulas uniformes”. A Conjur noticiou a decisão.
O tema do conceito jurídico indeterminado do que seriam “cláusulas uniformes” tende a inclinar-se no sentido de que seriam contratos onde, em síntese, não há possibilidade de negociação/remanejamento.
Em 2021 o TCU respondeu à consulta nesse sentido que destacamos. Assim:
TCU responde sobre proibição constitucional de contrato entre parlamentares e o BNDES
TCU responde consulta da Câmara dos Deputados sobre contratos com cláusulas uniformes celebrados entre parlamentares e BNDES. Apenas em situações específicas eles são considerados constitucionais
Por Secom TCU
09/03/2021
(…)
Resumo
O TCU respondeu a uma consulta da Câmara dos Deputados sobre a interpretação das cláusulas uniformes em empréstimos ou financiamentos concedidos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.
A celebração e/ou a manutenção, por deputados e senadores, de contrato com o BNDES em operações diretas, indiretas não automáticas e mistas contraria a Constituição, o que não ocorre caso as operações sejam indiretas automáticas.
No mesmo sentido, inclinou-se o TCE-SP, em 2019, em decisão da lavra da eminente conselheira Cristiana de Castro Moraes, ao analisar caso similar, nos autos do TC-004378.989.17-226:
“Em que pese a argumentação aduzida na inicial, não vejo amparo legal para acolher o pleito aduzido. Penso dessa forma porque entendo que a regra estatuída no inciso III do artigo 9º da Lei nº 8.666/93, encontra respaldo nos princípios da Administração Pública, em especial os da Moralidade e da Impessoalidade. Com efeito, uma vez que a representante tem como sócios o Sr. Vice-Prefeito e pessoa de seu parentesco, entendo vedada por completo sua participação no procedimento, sendo correta a cláusula editalícia impugnada. […] As ressalvas constitucionais suscitadas, atinentes a vedações impostas aos agentes políticos, bem como as previsões da Lei Orgânica Municipal não afastam o raciocínio ora desenvolvido. As cláusulas uniformes de contrato, que excetuariam a aplicabilidade da vedação não podem ser compreendidas como aquelas presentes em todos os contratos administrativos, caso contrário não haveria como aplicar-se o comando principal da norma, que é a efetiva vedação de que os dirigentes e agentes políticos firmem contrato com a pessoa jurídica de direito público a que pertencem.”
Em síntese, “cláusulas uniformes” seriam aquelas em que não há margem de negociação/alteração. Cláusulas “automáticas”, para usar a expressão do TCU, seria a palavra chave para definição do que seria contrato com cláusulas uniformes.
Atual Lei de Licitações
A atual lei de licitações, porém, “esticou” as vedações previstas na revogada lei 8.666/1993. Assim:
Art. 14. Não poderão disputar licitação ou participar da execução de contrato, direta ou indiretamente:
(…)
IV – aquele que mantenha vínculo de natureza técnica, comercial, econômica, financeira, trabalhista ou civil com dirigente do órgão ou entidade contratante ou com agente público que desempenhe função na licitação ou atue na fiscalização ou na gestão do contrato, ou que deles seja cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, devendo essa proibição constar expressamente do edital de licitação;
Ao invés de servidores, dirigentes e responsáveis previstos na lei anterior, a lei atual incluiu qualquer tipo de vínculo com a administração e, ainda, estendeu a vedação aos cônjuges, e parentes até o terceiro grau.
Desta forma, o conceito de “cláusulas uniformes” merece uma conceituação à luz das decisões mencionadas bem como do artigo 14, IV da Lei de Licitações.
Conceito de ‘cláusulas uniformes’
Nossa modesta sugestão é o de que o contrato com cláusulas uniformes seria todo contrato administrativo em que a manifestação de vontade do contratante é irrelevante. Assim, o conceito se coaduna com os precedentes mencionados das Cortes de Contas, apesar de não se coadunar com a integralidade dos precedentes do Poder Judiciário.
Assim, contratos de água, luz, telefone e contratos bancários são, inequivocamente, contratos com cláusulas uniformes. Da mesma forma, contratos precedidos de licitação e “engessados” também são contratos com cláusulas uniformes, se o critério de seleção for apenas o preço.
A figura do contrato de adesão do artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor é a que mais se aproxima do conceito de contrato com cláusulas uniformes ainda que o regime seja de Direito Público, no caso do contrato com cláusulas uniformes, e de direito difuso no caso do contrato de adesão.
Desta forma, o artigo 14, IV não se aplica aos contratos administrativos de registro de preços (já que não se admite alteração no percentual de 25% para serviços nem 50% para obras). Não há manifestação volitiva dos contratantes que viabilizasse o “tráfico de influência” que é a razão de ser de tais regras. Pelos mesmos motivos a dispensa com as pessoas previstas no artigo 14, IV está absolutamente vedada.
Como gostamos de mencionar, o princípio tem caráter axiológico superior às normas, conforme lição de Robert Alexy . O princípio, no caso em debate, é a vedação do tráfico de influência e do vilipêndio ao princípio da isonomia. A regra que detalha tal princípio é o artigo 14, IV da Lei de Licitações. A norma não pode suplantar um princípio sob pena de inversão axiológica indevida.
Monopólios/oligopólios artificiais
Também incluímos como contratos com cláusulas uniformes aqueles que tenham previsão expressa e inequívoca de vedação de qualquer acréscimo ou decréscimo.
Qual seria a utilidade para a administração publica em vedar alterações e “engessar” o contrato? Aumentar a competitividade, favorecendo contratações com maior número de pessoas, inclusive que tenham grau de parentesco mas não tenham manifestação relevante de vontade.
Pode parecer mera burla ao artigo 14, IV a sugestão, mas em acanhadas urbes (cidades com menos de 50 mil) onde “todo mundo é parente, a limitação de competidores acaba por criar monopólios e/ou oligopólios forçando o preço para patamares acima dos preços de mercado. Haveria ofensa ao princípio da competitividade (de elevado patamar axiológico) privilegiando uma norma (artigo 14, IV) em detrimento de um princípio (da competitividade) de gênese constitucional.
É evidente que é preferível a participação efetiva de competidores no certame licitatório (ainda que com grau de parentesco) tendo como custo o “engessamento” do que a odiosa criação de “monopólios artificiais”.
Interpretação “conforme” do artigo 14, IV
Não nos esqueçamos de que o princípio da competitividade decorre diretamente da regra constitucional da livre iniciativa (artigo 170 da CF) e a norma do artigo 14, IV deve ser lida com a “interpretação conforme” no sentido de que somente será aplicada se não fulminar a livre inciativa e sua função social: a competitividade.
O direito à propriedade deverá atender à sua função social. A livre iniciativa é manifestação do direito de propriedade em formato de empreendimento. A função social da livre inciativa é, sem sombra de dúvidas, viabilizar a competitividade.
Um conflito ético e hermenêutico surge, porém, na hipótese de haver, na prática, ampla competitividade inobstante a previsão feita pela administração pública de que havia necessidade de autorizar a participação de licitantes que, a princípio, estariam proibidos de participar. A interpretação conforme da regra do artigo 14, IV da Lei de Licitações não pode ignorar a realidade concreta.
Neste caso, na fase de julgamento, o pregoeiro deverá desclassificar aqueles que se enquadrem nas hipóteses do artigo 14, IV da Lei Federal nº 14.133/2.021.
Seria necessário novo procedimento licitatório? Não, pois inobstante vedada a efetiva contratação das pessoas previstas no artigo 14, IV deve ser afastada a proibição de que participem na qualidade de licitantes que atuam, exclusivamente, no sentido de aumento da competitividade. Trata-se de interpretação “conforme” do artigo 14 no sentido de que a proibição na fase licitatória somente permanece se não prejudicar a efetiva competitividade.
E se a previsão de participação restrita de licitantes se concretizar? Nessa hipótese a melhor proposta será sagrada vencedora, ainda que se enquadre nas hipóteses do artigo 14, IV pois referida norma deve ser interpretada no sentido de viabilizar a competitividade, função social do direito constitucional da livre iniciativa.
A administração pública não pode se dar ao luxo de adquirir produtos/serviços com a criação, por sua própria mão, de monopólios absolutamente artificiais.
Preferência aos desprovidos de vínculos de suspeição
Recomendamos que o edital , em tais hipóteses, preveja que o licitante vencedor poderá ser pessoa enquadrada nas hipóteses do artigo 14, IV da Lei nº 14.133/2.201 se houver risco ao princípio da competitividade e a melhor proposta de licitante que não se enquadra no mencionado artigo for superior a 5%. O percentual foi escolhido porque a Lei Federal nº 14.133/2.021 considera tal número como pequeno por definição para fins de nova rodada de lances (artigo 56,§4º). No mesmo diapasão é a regra do artigo 44,§2º da LC 123/2006.
Logo, a oferta por pessoa enquadra no artigo 14, IV em patamar inferior a 5% em relação à oferta de pessoa não enquadrada no mencionado artigo obriga o poder público a contratar esta última e desclassificar a proposta numericamente melhor já que a lei criou uma espécie de “preferência aos desprovidos de vínculos de suspeição”.
Conclusão
Sob a égide da lei de licitações o contrato administrativo precedido de licitação somente será enquadrado na categoria de contrato com “cláusulas uniformes” e, portanto, admitindo a interpretação “conforme” do rol do artigo 14, IV da Lei Federal nº 14.133/2.021 caso a manifestação de vontade do licitante seja irrelevante e o contrato não admita acréscimos/decréscimos por se tratar de um registro de preços ou por expressa previsão do edital, vedada a dispensa de licitação.
A regra editalícia tem especial relevância em municípios diminutos onde o parentesco reina no meio social e a competitividade seria maculada sem um número mínimo de licitantes. Nessa hipótese a competitividade (função social da livre iniciativa) deve prevalecer já que não é licito ao Poder Público criar odiosos monopólios/oligopólios artificiais.
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