Opinião

Exceções à remessa necessária previstas no CPC ao procedimento especial do MS

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2 de julho de 2024, 19h39

O instituto da remessa necessária (ou reexame necessário) condiciona a eficácia da sentença à sua confirmação pelo tribunal, de modo a assegurar que a sentença seja submetida ao duplo grau de jurisdição independentemente de interposição de apelação, não se admitindo a produção, por exemplo, da sua eficácia executiva antes do duplo grau obrigatório.

No âmbito do procedimento comum, a remessa necessária é prevista pelo artigo 496 da Lei nº 13.105/15 (CPC), tendo sua aplicabilidade excepcionada nas hipóteses dos §§ 3º e 4º, que tratam, respectivamente, de limitações em razão do valor da condenação e de fundamentação alicerçada em precedente vinculante ou entendimento vinculante emanado da própria administração pública.

Tal instituto também encontra previsão na Lei Especial do Mandado de Segurança (Lei nº 12.016/09), que, em seu artigo 14, § 1º, postula que “concedida a segurança, a sentença estará sujeita obrigatoriamente ao duplo grau de jurisdição”. A Lei do MS, entretanto, não excepciona a aplicabilidade do reexame necessário em nenhuma hipótese: há, portanto, uma antinomia, isto é, uma incompatibilidade entre as normas do CPC e da Lei do MS.

Nesse contexto, busca-se analisar o mecanismo hermenêutico de solução da antinomia verificada especificamente com relação à dispensa da remessa necessária nos casos do § 4º do artigo 496 do CPC (lei especial x lei geral), para, ao final, concluir pela aplicação da norma do CPC ao procedimento especial do mandado de segurança.

Os precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o conflito entre as normas que preveem a remessa necessária no âmbito do procedimento comum e do rito do mandado de segurança foram firmados anteriormente ao CPC/2015 e tratam especificamente das hipóteses de limitação em razão do valor da condenação. No EREsp nº 687.216/SP [1], julgado em 2008, a corte especial entendeu que havendo conflito “entre as soluções preconizadas pelos critérios cronológico e da especialidade, deve prevalecer, em regra, a resposta que resultar da aplicação deste último”. Embora o julgado tenha reconhecido que a regra lex posterior generallis non derrogat priori specciali não é de valor absoluto, concluiu que, no caso, prevaleceria a norma especial que disciplina o mandado de segurança sobre a regra geral do CPC.

Importante ressaltar, aqui, a fundamentação adotada pela corte (que, como dito, tratava da aplicação da limitação em razão do valor da condenação ao rito do mandado de segurança):

“A especificidade da regra prevista para o mandado de segurança não decorre apenas do fato de estar ela inserta em um outro diploma legal. Antes disso, justifica-se a exceção em decorrência da própria natureza do remédio constitucional. O mandado de segurança tem por objetivo levar ao Judiciário a análise da conformidade de determinada prática administrativa em relação ao ordenamento jurídico, independentemente do proveito econômico que se obtenha com a demanda. O que se tutela é a legalidade dos atos administrativos e, por isso, surge uma maior necessidade de submeter a sentença a um novo exame.”

O mesmo entendimento pode ser observado nos acórdãos de julgamento do EREsp nº 647.717/SP [2], do REsp nº 1.274.066/PR [3] e do REsp nº 1.240.710/PR [4], traduzindo a jurisprudência majoritária do STJ.

Ocorre que o caso de sentença fundada em entendimento vinculante apresenta cenário fático-jurídico diverso daquele que originou os precedentes mencionados, impondo-se a realização de distinguishing (artigo 489, §1º, VI) ao invés da mera aplicação irrefletida dos precedentes firmados pelo STJ anteriormente ao CPC/2015.

Regras para a solução das antinomias

Conforme ensina Bobbio [5], as regras fundamentais para a solução das antinomias são: o critério hierárquico; o critério da especialidade; e o critério cronológico. Ainda segundo o autor, as antinomias insolúveis (ou reais) se verificam nos casos em que não se pode aplicar nenhuma das regras pensadas para a solução das antinomias; ou se podem aplicar ao mesmo tempo duas ou mais regras em conflito entre si.

Spacca

No caso tratado, verifica-se que a Lei do MS é lei especial, enquanto o CPC é lei geral posterior, de modo que, sendo possível a aplicação simultânea de duas das regras (critério da especialidade e critério cronológico), o conflito entre as normas configura antinomia real. Tratando do conflito entre o critério de especialidade e o cronológico, Bobbio [6] ensina:

“(…) Também aqui foi transmitida uma regra geral, que soa assim: Lex posterior generalis non derogat priori speciali. Com base nessa regra, o conflito entre critério de especialidade e critério cronológico deve ser resolvido em favor do primeiro: a lei geral sucessiva não tira do caminho a lei especial precedente. (…) Essa regra, por outro lado, deve ser tomada com uma certa cautela, e tem um valor menos decisivo que o da regra anterior. Dir-se-ia que a lex specialis é menos forte que a lex superior, e que, portanto, a sua vitória sobre a lex posterior é mais contrastada. Para fazer afirmações mais precisas nesse campo, seria necessário dispor de uma ampla casuística.”

Veja-se, portanto, que, havendo conflito entre os critérios cronológico e da especialidade, há uma tendência de prevalência deste último, contudo não se trata de regra válida em todos os casos: para a solução da antinomia posta, é “necessário dispor de uma ampla casuística”. E, não obstante a Corte Especial do STJ, no julgamento do EREsp nº 687.216/SP, tenha reconhecido que a prevalência do critério da especialidade não é de valor absoluto, concluiu que, no caso da limitação em razão do valor da condenação, deve prevalecer a norma especial, considerando a própria natureza do mandado de segurança, em que se tutela a legalidade dos atos administrativos independentemente do proveito econômico que se obtenha com a demanda. Essa lógica, aplicável à questão da limitação em razão do valor da condenação, não se estende à hipótese de sentença fundada em entendimento vinculante.

Pois bem. O § 4º do artigo 496 do CPC dispõe:

“Art. 496. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença: (…)

§ 4º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em:

I – súmula de tribunal superior;

II – acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;

III – entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;

IV – entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa.”

As hipóteses de exceção à remessa necessária previstas pelo aludido § 4º se coadunam com o sistema de precedentes vinculantes trazido pelo CPC/2015, com o rito do mandado de segurança e com os princípios da celeridade e da economia processual. Ora, tendo sido a sentença fundada em entendimento vinculante ao Poder Judiciário, carece de qualquer racionalidade a submeter ao duplo grau de jurisdição obrigatório e movimentar desnecessariamente o aparato judicial apenas por se tratar de mandado de segurança: o tribunal necessariamente deverá confirmar o entendimento exposto pela sentença. A esse respeito, veja-se a previsão do artigo 927 do CPC:

“Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

II – os enunciados de súmula vinculante;

III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;

V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.”

Otimizar o sistema de Justiça

Com efeito, as hipóteses dos incisos I a III do § 4º do artigo 496 do CPC estão inteiramente abrangidas pelos incisos III e IV do supracitado artigo 927. Trata-se, portanto, de hipóteses em que, caso submetida a sentença ao reexame necessário, o tribunal necessariamente deverá confirmar o entendimento do Juízo de primeiro grau, pois é exatamente essa a lógica do precedente vinculante, ou seja, a necessidade de sua aplicação pelos juízos ordinários de modo a otimizar o sistema de Justiça como um todo[7]. Afigura-se, portanto, incompatível com a regra de coerência que permeia o ordenamento jurídico[8], a submissão da sentença ao duplo grau de jurisdição obrigatório quando alicerçada em entendimento vinculante aos juízes e tribunais.

Prosseguindo, também a dispensa do reexame necessário quando a sentença estiver fundada em “entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa” (inciso IV do artigo 496) é plenamente compatível com o rito do mandado de segurança, tendo em vista que o mandamus é impetrado em decorrência de ato coator praticado por autoridades públicas ou particulares com poderes públicos.

Tendo o próprio ente público interessado editado orientação vinculante concluindo no mesmo sentido do particular, entendimento esse adotado pelo Juízo de primeira instância, a submissão da sentença ao reexame necessário é incompatível com a própria natureza do Mandado de Segurança. A esse respeito, veja-se do teor do enunciado 312 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “o inciso IV do §4º do artigo 496 do CPC aplica-se ao procedimento do mandado de segurança”.

Por fim, destaca-se, no âmbito da União, a existência de previsão específica no § 2º do artigo 19 da Lei nº 10.522/02 (cf. redação dada pela Lei nº 13.874/19), que dispensa o reexame necessário quando a sentença estiver fundada em entendimento constante da lista de dispensa de contestar e recorrer da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. As hipóteses dessa dispensa se referem a tema objeto de parecer ou súmula do advogado-geral da União, da PGFN ou da administração tributária federal; tema cuja inconstitucionalidade tenha sido declarada pelo STF; e tema definido em sede de repercussão geral ou recurso repetitivo, conforme incisos do artigo 19 da referida lei.

Essa norma, também perfeitamente aplicável ao rito do mandado de segurança, se coaduna com a previsão do artigo 496, § 4º, do CPC, autorizando a ausência de interposição de Apelação pela PGFN, e dispensando o reexame necessário, quando a sentença se fundamente em entendimento vinculante. Trata-se, mais uma vez, de uma previsão harmoniosa com os princípios da celeridade e da economia processual, que visa a evitar a protelação da lide com a movimentação desnecessária do já sobrecarregado Poder Judiciário.

Conclui-se, pelo exposto, que a solução da antinomia existente entre a previsão da remessa necessária na Lei do MS e as exceções ao reexame necessário previstas pelo CPC depende da análise casuística de cada hipótese de dispensa do duplo grau obrigatório. As exceções trazidas pelo § 4º do artigo 496 do CPC, relativas aos casos de sentença fundada em precedente vinculante ou em entendimento vinculante emanado da própria administração pública, se aplicam ao rito do mandado de segurança, considerando a própria regra de integridade e de coerência do ordenamento jurídico e em atenção ao sistema de precedentes trazido pelo CPC/2015 e aos princípios da celeridade e da economia processual.

 


1 EREsp n. 687.216/SP, relator Ministro Castro Meira, Corte Especial, julgado em 4/6/2008, DJe de 4/8/2008.

2 EREsp n. 647.717/SP, relatora Ministra Eliana Calmon, Primeira Seção, julgado em 13/2/2008, DJ de 25/2/2008.

3 REsp n. 1.274.066/PR, relator Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 1/12/2011, DJe de 9/12/2011.

4 REsp n. 1.240.710/PR, relator Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 3/5/2011, DJe de 12/5/2011.

5 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Editora UNB. 10. ed., 1999. p. 92.

6 Ibidem, p. 108.

7 O CNJ recentemente assentou na Recomendação nº 134, de 9 de setembro de 2022, que “dispõe sobre o tratamento dos precedentes no Direito brasileiro”, que os precedentes vinculantes constituem técnica de gestão da litigiosidade, como se extrai do art. 6º: “A sistemática de solução de questões comuns e casos repetitivos, estabelecida pelo CPC/2015, deve ser utilizada com regularidade e representa uma técnica de gestão, processamento e julgamento dos processos, com a metodologia de decisão concentrada sobre questões essenciais de direito e a eventual suspensão de processos que versem sobre a controvérsia que está sendo decidida de modo concentrado”.

8 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Editora UNB. 10. ed., 1999. p. 110.

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