Opinião

Sobre a oferta gratuita de água potável em estabelecimentos comerciais

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1 de julho de 2024, 9h20

A oferta gratuita de água potável em estabelecimentos comerciais tem sido objeto de intensos debates no cenário jurídico brasileiro, especialmente após a promulgação da Lei nº 17.747, de 12 de setembro de 2023, no estado de São Paulo. Referida norma teve sua eficácia suspensa em virtude de liminar concedida nos autos da ADI 2244219-80.2023.8.26.0000 no dia subsequente à sua entrada em vigor, sob o argumento de violação à livre iniciativa.

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copo de água

Na análise dos autos, a Procuradoria Geral do Estado, o Procurador Geral de Justiça, o governador do Estado e o presidente da Assembleia Legislativa defenderam, de forma uníssona, a constitucionalidade da norma. Segundo a PGE, a legislação está alinhada com a proteção do consumidor e da saúde pública, matérias sob competência legislativa concorrente do Estado, conforme os incisos VIII e XII do artigo 24 da Constituição Federal. O governador do estado endossou essa posição.

O procurador-geral de Justiça argumentou que a norma protege efetivamente a saúde pública, o consumidor e o meio ambiente, afetando minimamente a atividade econômica dos empresários. Defendeu que as restrições à livre iniciativa são adequadas, necessárias e proporcionais aos objetivos da lei.

O presidente da Alesp, por seu turno, destacou que os custos adicionais para a iniciativa privada são insignificantes quando comparados aos benefícios sociais da medida, especialmente no que tange à saúde pública, ao direito do consumidor e à proteção ambiental. Ressaltou, ainda, que a livre iniciativa, prevista no artigo 170 da Constituição [1], não é absoluta e deve ser interpretada em conjunto com outros princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, o direito à saúde, a proteção do consumidor e do meio ambiente. Além disso, mencionou os seguintes precedentes do Supremo Tribunal Federal que reconheceram intervenções estatais na ordem econômica como constitucionalmente legítimas:

  • Fixação de horário de funcionamento para estabelecimento comercial (STF – 2ª turma, AI n. 781.886 – AgR, reI. Min. Carlos Velloso, j. 15.2.2005);

  • Determinação de cota de veículos adaptados a pessoas com deficiência em locadora (STF, Pleno, ADI n. 5.452, rel. Min. Cármen Lúcia, j. 22.08.2020);

  • Determinação de meia-entrada em estabelecimentos culturais e esportivos (STF, Pleno, ADI n. 2.163·RJ, reI. Min, Luiz Fux, red, do Ac, Min, Ricardo Lewandowski, j. 12.04.2018);

  • Proibição de pulverização de agrotóxicos (STF, Pleno, ADI n. 6137, rel. Min. Cármen Lúcia, j. 14.06.2023);

  • Obrigação de estender os benefícios de novas promoções de telefonia aos clientes preexistentes (STF, Pleno, ADI n. 5939, reI. Min. Alexandre de Moraes, j. 06.08.2020);

  • Proibição de extração, industrialização, utilização, comercialização e transporte de asbesto/amianto (STF, Pleno, ADI n. 4066, reI. Min. Rosa Weber, DJe 07.03.2018).

No acórdão datado de 19 de junho de 2024, prevaleceu o entendimento de que a norma apresentava vício material consistente na violação ao princípio da razoabilidade (artigo 111 da Constituição Estadual), da livre iniciativa e do livre exercício da atividade econômica insculpidos nos arts. 1º, IV, e 170, caput e parágrafo único da Constituição Federal. Segundo o entendimento majoritário [2] do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, a determinação acarretaria custos adicionais aos comerciantes, com potencial redução de receita na venda de bebidas em geral. No entendimento da relatora, desembargadora Luciana Bresciani:

“(…) é notório que tal imposição acarreta custos para os estabelecimentos (na aquisição da água propriamente dita, ainda que com custo reduzido; na compra e manutenção de filtros e na disponibilização e reposição de jarras e copos). Ademais, tal obrigação tem potencial de provocar redução na receita da venda não somente de água mineral, como outras bebidas, salientando-se que as bebidas em geral são parte importante da gama de produtos comercializados nos estabelecimentos alcançados pela norma”.

No voto vencido, o desembargador Figueiredo Gonçalves argumentou que a solidariedade social, princípio constitucional expresso no artigo 3º, I, da Carta Maior, permite que pequenos gestos e ações sejam exigidos da atividade privada. Destacou, ainda, que a lei possui uma finalidade adequada, tem interesse público justificável e aborda preocupações ambientais, já que a maioria das embalagens de água mineral servidas em restaurantes e similares são de plástico, prejudicando o meio ambiente. Esse impacto seria ligeiramente reduzido pelo consumo de água filtrada.

Além disso, discordou da alegação de que a lei representaria uma intervenção desproporcional do Estado na atividade comercial, apresentando dados [3] extraídos do Diário Oficial do Estado que demonstram que o custo de fornecer água filtrada é irrisório e não prejudica significativamente os estabelecimentos comerciais. Em sua conclusão, afirmou:

“Finalmente, o fornecimento de água filtrada nos estabelecimentos onde servidas refeições, não é criação de um desmedido gênio tupiniquim com devaneios socialistas. Replica exemplos existentes, há anos, em países capitalistas, onde se presa e se vela pela livre iniciativa e a atividade econômica privada, como os países europeus (França, Inglaterra, Itália, Alemanha etc.) e outros americanos (como os Estados Unidos, México e Argentina). Jamais se percebeu, nessas terras, qualquer sinal de invasão do sistema de livre iniciativa, pelo singelo fornecimento de água filtrada durante refeições, para eventuais clientes que a demandem. Portanto, com a devida licença dos respeitáveis entendimentos diversos, não há ônus desmedido para os agentes da atividade econômica, com qualquer prejuízo significativo aos estabelecimentos-alvos da norma ora examinada.”

A Corte Paulista já havia se manifestado pela inconstitucionalidade de legislação semelhante editada pelo município de São Paulo (Lei nº 17.453/2020, ADI 2201038-97.2021.8.26.0000). Naquela ocasião, porém, apenas os desembargadores Torres de Carvalho e Figueiredo Gonçalves foram vencidos (acórdão datado de 8 de junho de 2022). Com relação a essa ação, ainda pende julgamento pelo STF (RE 1.419.260).

O entendimento firmado pela Corte Paulista, no entanto, diverge dos precedentes estabelecidos no Distrito Federal [4] e no Rio de Janeiro [5], que reconheceram a constitucionalidade de leis semelhantes. Em outros dois tribunais, como Espírito Santo [6] e Minas Gerais [7], normas com o mesmo escopo também foram reputadas inconstitucionais.

Recentemente, o ministro Dias Toffoli entendeu que o princípio da livre iniciativa não é absoluto e deve ser harmonizado com outros valores constitucionais, como a defesa do consumidor, dignidade da pessoa humana, direito à vida e à saúde:

“É certo, nesse caminho, que o princípio da livre iniciativa, como qualquer outro princípio constitucional, não é absoluto. In casu, há de se ponderar tal garantia com a defesa do consumidor, elevada ao status de direito fundamental pela Constituição Pátria, além de erigida a princípio destinado a propiciar o regular funcionamento da ordem econômica, conforme estabelecem, respectivamente, os arts. 5°, XXXII, e 170, V da Carta Magna.

Deveras, o diploma impugnado é resultado de ponderação principiológica, sobretudo entre os dois princípios supramencionados, estando em plena consonância com o já citado art. 170 da Constituição Federal. Efetivamente, o exercício da competência legislativa dos Estados-membros em determinadas matérias pode gerar consequências para as atividades econômico-empresariais sem que isso importe qualquer inconstitucionalidade, desde que proporcional e razoável a restrição, obrigação ou modificação estabelecida pela norma editada, o que se verifica na hipótese.

Em arremate, releva registrar que a determinação do fornecimento de água potável e filtrada pelos estabelecimentos abrangidos pela norma impugnada aos seus clientes atende, além de ao princípio da defesa do consumidor, ao princípio da dignidade da pessoa humana, ao direito à vida e ao direito à saúde.  Cuida-se, afinal, de norma que legitimamente veicula o livre acesso a um bem essencial, vital ao saudável desenvolvimento físico dos seres humanos e umbilicalmente ligado, por conseguinte, à dignidade e à subsistência humanas.” (ARE n. 1.437.523-RJ, decisão monocrática, j. 30.08.2023)

O julgamento da ADI 2244219-80.2023.8.26.0000 pelo TJ-SP não encerra a controvérsia em questão. Argumentos convincentes emergem de ambos os lados: os críticos entendem que a norma intervém na iniciativa privada, impondo encargos financeiros desproporcionais aos empresários. Em contrapartida, os defensores da constitucionalidade sustentam que a obrigação imposta resguarda a saúde pública, o consumidor e o meio ambiente, afetando de maneira ínfima a atividade econômica dos empresários.

Certamente, a Lei Estadual nº 17.747/2023 seguirá caminho semelhante ao da Lei nº 17.453/2020, do município de São Paulo, que foi encaminhada ao Supremo para decisão final. O processo da capital paulista está concluso sob a relatoria do ministro Edson Fachin desde 9 de fevereiro de 2023.

Esta discussão transcende o debate jurídico e, dependendo do entendimento da instância superior, poderá acarretar mudanças comportamentais significativas na sociedade. Caberá à Suprema Corte ponderar os princípios constitucionais envolvidos e oferecer a solução adequada para esta questão, harmonizando os interesses públicos e privados. Aguardemos, portanto, os desdobramentos dessas ações judiciais.

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[1] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego;  IX – tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte.

[2] Foram vencidos os Exmos. Srs. Desembargadores Figueiredo Gonçalves, Beretta da Silveira, Francisco Loureiro, Vico Manas, Silvia Rocha, Carlos Monnerat, Gomes Varjão e Luiz Antonio Cardoso.

[3] Conforme publicação no Diário Oficial do Estado, o custo do fornecimento de 10 metros cúbicos (10.000 litros) de água tratada pela SABESP, para os estabelecimentos comerciais, resulta numa tarifa de R$ 143,96. Um litro de água equivale a 5 copos de 200ml, significando que, por esse custo, podem ser servidos 50.000 copos de água. Se em cada refeição forem fornecidos 2 copos d’água, isso representará serviço para 25.000 refeições. No movimento de um restaurante, servidas 400 refeições diárias, levar-se-ia mais de 2 meses para o consumo dessa água. Certamente, a despesa é irrisória, ante o lucro obtido nessas ocasiões.

[4] TJDF, ADI n° 0023878-89.2017.8.07.0000, Rel. Des. Roberval Casemiro Belinati, j. em 04.12.2018.

[5] TJRJ, ADI n° 0014273-23.2016.8.19.0000, Rel. Des. Caetano Ernesto da Fonseca Costa, j. em 15.05.2017.

[6] TJES, ADI nº 0033070-82.2018.8.08.0000, Rel. Des. Arthur José Neiva de Almeida, j. em 18.07.2019.

[7] TJMG, ADI nº 0909252-14.2013.8.13.0000, Rel. Des. Cássio Salomé, j. 25.06.2014.

Autores

  • é procuradora jurídica da Câmara Municipal de Nova Odessa (SP), graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-Campinas. e especialista em Direito Constitucional pela PUC-Campinas.

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