Opinião

Quase sempre apelar é um bom negócio, mesmo com a expectativa de derrota

Autor

  • Gustavo Osna

    é advogado professor do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB) e do programa de graduação em Direito da UFPR doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR mestre em Direito das Relações Sociais e bacharel em Direito pela UFPR e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

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1 de julho de 2024, 19h38

Em artigo recentemente publicado na Revista de Processo, analisei (a partir de uma conduta predominantemente racional dos litigantes [1]) os motivos que estimulam ou que desestimulam a interposição da apelação [2]. O estudo levou a algumas considerações contraintuitivas ligadas ao tema, além de oferecer respaldo a elementos por vezes implícitos na nossa realidade. Há um deles que, pelos seus efeitos prejudiciais para o sistema de Justiça, merece breve apresentação para um público mais amplo: o fato de apelar poder ser um ótimo negócio mesmo para o litigante que não confia na reforma da decisão.

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Para ilustrar esse raciocínio, apresento o mesmo exemplo que serviu como fio-condutor do estudo publicado na Revista de Processo: no Rio de Janeiro, Marcelo e Felipe se envolvem em acidente automotivo na esquina das ruas General Urquiza e Dias Ferreira. Mesmo com a manifestação uníssona de todas as testemunhas de que a colisão se deu por sua culpa exclusiva, Felipe se nega a reparar os danos — exigindo que Marcelo ingresse em juízo para ser ressarcido. Já na ação, há vasta dilação probatória, e todas as provas produzidas ratificam a pretensão inicial. Por essa razão, a medida é julgada procedente, de maneira amplamente fundamentada.

Nesse caso, tendo em vista a robustez do acervo probatório e o pleno enfrentamento do tema pela sentença, Felipe teria motivos para apelar? Haveria real expectativa de que o tribunal, em sede recursal, reformasse o pronunciamento?

Conforme enfatizado no ensaio, é certo que fatores como vieses ou ruídos [3] poderiam reduzir a racionalidade dessa tomada de decisão. Como exemplo, seria hipoteticamente viável que a escolha fosse tomada de maneira rápida e impulsiva (influenciada por uma conduta adotada pelo autor considerada desonrosa pelo réu). Da mesma forma, a decisão poderia ser influenciada por algum fator exótico ou errático (como o boato, ouvido em um quiosque de praia, de que vários desembargadores do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro não gostam de Marcelo).

O ponto mais importante trazido para reflexão, porém, é outro: mesmo excluindo essas peças do tabuleiro, será possível que Felipe identifique no recurso uma alternativa ótima. E isso, repete-se, por mais que a sua expectativa de reforma da decisão seja diminuta ou inexistente.

Para alcançar essa constatação, demonstramos como os principais elementos persuasivos e dissuasivos interagem nesse contexto decisório. Em um banco da gangorra, indicamos que nosso sistema costuma apostar em desestímulos pautados, essencialmente, em alguma espécie de agravamento financeiro da posição do apelante: as custas recursais, a possibilidade de majoração dos honorários já fixados e a potencial punição por litigância de má-fé. Já no banco oposto, destacamos que um primeiro aspecto que (naturalmente) poderia servir como estímulo para a apelação seria a possibilidade de que, por meio dela, fosse obtida a reforma da sentença.

Ao lado desse fator, contudo, verificamos que nosso sistema alberga outro elemento que pode autonomamente conduzir o sujeito a apelar. Trata-se da possibilidade de que o recurso lhe traga alguma espécie de remuneração; de que, ao recorrer, seja obtido algum proveito decorrente da protelação do processo. Esse elemento é decisivo, trazendo uma peça possivelmente indesejada para o tabuleiro.

Spacca

Observe-se, novamente, a situação envolvendo Marcelo e Felipe. Racionalmente, ao traçar sua estratégia recursal, o réu tenderia a considerar os possíveis riscos ocasionados pelo inconformismo. Ocorre que, caso esses potenciais gravames não superassem a recompensa causada pela apelação, o recurso seria a escolha racional ainda que não houvesse expectativa concreta de reforma.

Relevância para o processo civil

Por qual motivo essa constatação é particularmente relevante para o processo civil brasileiro? O que faz com que, aqui, essa conta possa muitas vezes conduzir à interposição de apelações sistemicamente indesejadas?

As respostas dialogam com alguns pilares explorados no estudo. De maneira especial, procuramos demonstrar que essa possível remuneração possui alicerce na articulação entre dois fatores: de um lado, a aptidão do recurso para postergar a prestação jurisdicional; de outro, a possibilidade de que essa mora atue em favor do sucumbente. E, em nosso sistema, ambos costumam estar presentes.

Em relação ao aspecto inicial, mesmo com destacada resistência doutrinária [4], o CPC/15 preservou o efeito suspensivo ope legis da apelação. Como consequência, a interposição do recurso, como regra geral, inibirá a possibilidade de plena efetivação da sentença impugnada. Ou seja: o standard do processo civil brasileiro é que, ao optar por apelar, o sucumbente saiba que esse elemento deve protelar a consolidação do comando judicial. Como consequência, sua conduta poderá ser balizada pelo resultado que essa mora é capaz de lhe trazer: caso ela atue em seu favor, a eternização do processo tenderá a ser um caminho benéfico.

Trazendo esses temperos para a situação envolvendo Marcelo e Felipe, é previsível que o réu tenha ciência de que sua apelação (por dispor de efeito suspensivo) postergará a satisfação do direito litigioso.  Como consequência, deixando de lado os riscos de ocultação e de esvaziamento, ao olhar para o futuro será possível que a decisão racional por apelar se torne uma conta financeira: os rendimentos e a possível alavancagem obtidos pela fruição dos valores excedem os juros e a correção monetária que deverão incidir sobre a condenação [5]? Eles superam o receio da punição por litigância de má-fé, os entraves das custas recursais ou o risco (normalmente já precificado) de majoração de honorários? [6] Em caso positivo, cria-se um jogo de resultado previsível para o réu: quanto mais o processo demorar, melhor.

Enfim, todos esses elementos demonstram ser plenamente possível que, economicamente, apelar seja um bom negócio mesmo com a certeza de que o pronunciamento impugnado será mantido. Bastará que, aos olhos do potencial recorrente, os ganhos a serem extraídos por meio da litigância superem os gatilhos de dissuasão que podem agir em sentido contrário.

A partir dessa constatação, propusemos diferentes pontos de observação e de reflexão, voltados a aprimorar o modelo brasileiro. Cabe aqui, de maneira breve, pontuar alguns deles:

  • primeiramente, se o propósito do sistema for evitar recursos essencialmente protelatório, o regime do efeito suspensivo ope legis é trágico. Afinal, ele confere ao recorrente a certeza antecipada de que a mera interposição da apelação irá adiar a tutela do direito — podendo servir para o seu benefício;
  • por mais que essa costume ser uma resposta comum, a ampliação das custas recursais tende a se mostrar um remédio ruim para o problema. E isso porque, embora essa via crie uma trava inibitória, ela o faz para qualquer recurso — atingindo não apenas aqueles protelatórios, mas também aqueles que seriam sistemicamente desejáveis [7];
  • por fim, a partir do esboço acima, reforça-se a importância de que o sistema de justiça seja balizado por parâmetros de segurança e de previsibilidade. Caso os tribunais superiores alterem de modo imprevisível e fluído seus entendimentos, a interposição de recursos (mesmo em sentido contrário a posicionamentos pacificados) pode sempre se mostrar uma escolha atraente — pois a chance de reforma parecerá mais ampla do que deveria.

Cada uma dessas pontas é explorada com maior minúcia no estudo. Ainda assim, o apanhado apresentado nos parágrafos anteriores já justifica cautela e atenção. Se a apelação desprovida de qualquer pretensão concreta de reforma pode ser um bom negócio, é preciso repensar (de maneira ampla e prospectiva) os diferentes aspectos que conduzem a essa indesejada constatação.

 


[1] Identificando esse diálogo, ainda que com perspectivas nem sempre idênticas, COOTER, Robert. ULEN, THOMAS. Law & economics. 3. ed. Reading: Addison Wesley Longman, 2000. p. 390-392.  MAZZOLA, Marcelo. Sanções premiais no processo civil. Salvador: JusPodivm, 2021PATRÍCIO, Miguel Carlos Teixeira. Análise Económica da Litigância. Coimbra: Almedina, 2005. Também, ABREU, Rafael Sirângelo de. Incentivos Processuais. São Paulo: Ed. RT, 2020. WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil. São Paulo: Ed. RT, 2019. RESNIK, Judith. Processes of the Law – Understanding Courts and Their Alternatives. New York: Foundation Press, 2004. p.5. BEZ, Bianca. Negociação, Economia e Psicologia – Por que Litigamos?. 3 ed. Salvador: JusPodivm, 2023. MARÇAL, Felipe Barreto. Direito processual comportamental: repensando institutos processuais a partir da economia comportamental, da psicologia cognitiva e da neurociência. In. Revista de Processo. v. 305, São Paulo: Ed. RT, 2020. GICO JR., Ivo T. Análise Econômica do Processo Civil. Indaiatuba: Foco, 2020.

[2] OSNA, Gustavo. A Economia da Apelação no Processo Civil Brasileiro – Por Que Apelar? In. Revista de Processo. v.342. São Paulo: Ed. RT, 2024

[3] Assim, KAHNEMAN, Daniel. Thinking, Fast and Slow. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2011. KAHNEMAN, Daniel. SIBONY, Olivier. SUNSTEIN, Cass R. Noise: a Flaw in Human Judgement. New York: Little, Brown Spark. 2022.

[4] Sobre o tema, ver por todos, passim, PANTOJA, Fernanda Medina. Apelação cível: novas perspectivas para um antigo recurso. Curitiba: Juruá, 2010. Também, PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo. O novo Código de Processo Civil brasileiro e a velha opção pelo efeito “suspensivo” no recurso de apelação. In. Revista Iberoamericana de Derecho Procesal. v. 2. São Paulo: Ed. RT, 2015.

[5] Com esse raciocínio, salta aos olhos a importância do debate travado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça ligado ao critério de correção de dívidas civis (REsp n. 1.795.982/SP). O tema pode influenciar diretamente a remuneração aferida pelo réu de determinada disputa devido à sua mora – podendo, por isso, estimular ou desestimular o adimplemento.

[6] Esse elemento é ainda hipertrofiado pelo fato de os riscos que particularizam a apelação serem muitas vezes reduzidos: as custas recursais, na maior parte dos casos, não exercem papel dissuasivo; a multa por litigância de má-fé, usualmente, é mais teórica do que real; os honorários recursais, pelo seu regime, correspondem a um risco já precificado no começo da disputa. Não bastasse, a essência econômica faz com que eles sequer costumem entrar em cena caso o recorrente seja beneficiário da assistência judiciária gratuita. Nessa circunstância, forma-se o risco de que se atinja um jogo de soma-zero [6]: qualquer benefício direta ou indiretamente ocasionado pela postergação já será o bastante para impulsionar o recurso, mesmo que não haja expectativa de reforma.

[7] Assim, RAGONE, Alvaro Javier Pérez. Hacia una apelación óptima: acceso y gerenciamiento de la segunda instancia. In. Revista Direito GV. v.15. São Paulo: FGV, 2019. Também, SHAVELL, Steven. On the Design of the Appeal Process: The Optimal Use of Discretionary Review versus DirectAppeal. In. The Journal of Legal Studies, v. 29, Chicago: The University of Chicago Press, 2010

Autores

  • é professor adjunto da Faculdade de Direito da UFPR, doutor e mestre em Direito pela UFPR, membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e advogado e parecerista.

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