Opinião

Estádio do Flamengo: o município do Rio pode desapropriar terreno da Caixa?

Autor

  • Lorenzo Caser Mill

    é advogado mestre em Direito Processual pela Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo) e especialista em Falência e Recuperação de Empresas pela FGV (Fundação Getúlio Vargas).

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1 de julho de 2024, 7h07

Fiquei contente com o anúncio do prefeito Eduardo Paes; creio que a região central do Rio de Janeiro mereça um empreendimento desse porte. Mas confesso certo receio com o instrumento jurídico utilizado se o terreno do Gasômetro realmente estiver vinculado ao CNPJ da Caixa Econômica Federal — como se sabe, uma empresa pública federal.

Divulgação

De acordo com o artigo 2º, § 2º, do Decreto-lei nº 3.365/1941, a União pode desapropriar bens dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, ao passo que os estados podem desapropriar bens dos municípios, sempre com autorização legislativa específica. A lei estabeleceu uma “gradação de poder” entre os sujeitos ativos da desapropriação, de modo a criar uma hierarquia federativa fundada no interesse sob tutela: o interesse nacional, representado pela União, prevalece sobre o regional, e este sobre o local, não havendo reversão ascendente.

A dúvida quanto a essa hierarquia federativa desponta em casos envolvendo administração indireta: um estado pode desapropriar bem de autarquia federal? Ou um município pode desapropriar bem de empresa estatal federal?

A doutrina diverge, mais à frente saberemos por quê. Descartemos a discussão sobre as autarquias, as quais, por serem pessoas jurídicas de direito público, aprioristicamente têm todos os seus bens destinados à finalidade pública, impedindo a transgressão da hierarquia federativa; afinal, seria um despropósito que entes federativos, ao adotarem processos reputados mais eficientes de atuação e de realização de propósitos públicos por meio da criação de autarquias, fossem onerados justamente por isso. [1]

Restam-nos, pois, as empresas públicas e sociedades de economia mista, e um bom ponto de partida para a análise a que nos propomos é o § 3º do artigo 2º do Decreto-lei nº 3.365/41:

“É vedada a desapropriação, pelos Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios de ações, cotas e direitos representativos do capital de instituições e emprêsas cujo funcionamento dependa de autorização do Govêrno Federal e se subordine à sua fiscalização, salvo mediante prévia autorização, por decreto do Presidente da República.”

Dessa disposição decorre a Súmula nº 157 do STF: “É necessária prévia autorização do Presidente da República para desapropriação, pelos estados, de empresa de energia elétrica”.

Se essas cautelas a lei impôs em relação a bens de empresas privadas, atuantes em atividades sujeitas à regulação estatal, não seria inarmônico dispensá-la a bens de empresa pública federal, ou seja, a integrante da administração federal, conquanto não desempenhe serviço privativo da União. Não custa relembrar que a administração indireta é o conjunto dos entes personalizados que, vinculados a um ministério, prestam serviços públicos ou de interesse público.

A 2ª Turma do STJ, no REsp nº 1.188.700/MG (rel. Min. Eliana Calmon, julg. 18/5/2010), decidiu que “é vedado ao município desapropriar bens de propriedade da União ou de suas autarquias e fundações, assim como das empresas públicas e sociedades de economia mistas submetidas à sua fiscalização, sem prévia autorização, por decreto, do presidente da República”. E o fez referenciando trecho da obra de José dos Santos Carvalho Filho:

“O princípio deve ser o mesmo adotado para os bens de pessoas administrativas, ainda que alguns deles possam ser qualificados como bens privados. Prevalece nesse caso a natureza de maior hierarquia da pessoa federativa a que está vinculada a entidade administrativa. Por conseguinte, para nós se afigura juridicamente inviável que o Estado, por exemplo, desaproprie bens de uma sociedade de economia mista ou de uma autarquia vinculada à União Federal, assim como também nos parece impossível que um Município desaproprie bens de uma empresa pública ou de uma fundação pública vinculada ao Estado, seja qual for a natureza desses bens.” [2]

Ou seja: para o STJ, até o momento, parece claro que um bem de empresa pública federal não poderia ser desapropriado por município, despicienda a discussão da afetação ou não desses bens ao serviço público ou da sua essencialidade ou não para as atividades da empresa estatal.

Já o Plenário do STF, no conhecido julgamento do RE nº 172.816/RJ (rel. Min. Paulo Brossard, julg. 09/2/1994), deu enfoque ao fato de ser privativa da União e de caracterizar um serviço público a atividade exercida pela sociedade de economia mista federal — Companhia Docas Rio de Janeiro — cujo bem o estado do Rio de Janeiro pretendia desapropriar:

“Competindo à União, e só a ela, explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os portos marítimos, fluviais e lacustres, art. 21, XII, ‘f’, da CF, está caracterizada a natureza pública do serviço de docas. A Companhia Docas do Rio de Janeiro, sociedade de economia mista federal, incumbida de explorar o serviço portuário em regime de exclusividade, não pode ter bem desapropriado pelo Estado.”

Nota-se que o julgamento não chegou a enfrentar, categoricamente, a (im)possibilidade de desapropriação de bem pertencente a empresa pública ou a sociedade de economia mista federais por estado ou município, independentemente da atividade exercida por tais entes da administração indireta. Nada obstante, um trecho do acórdão é relevantíssimo para o debate da questão:

“O artigo 173, par. 1., nada tem a ver com a desapropriabilidade ou indesapropriabilidade de bens de empresas públicas ou sociedades de economia mista; seu endereço é outro; visa a assegurar a livre concorrência, de modo que as entidades públicas que exercem ou venham a exercer atividade econômica não se beneficiem de tratamento privilegiado em relação a entidades privadas que se dediquem a atividade econômica na mesma área ou em área semelhante.”

A razão da sobredita importância é o atrito com a premissa de uma das posições da literatura: a de que os bens das sociedades de economia mista e das empresas públicas exercentes de atividade econômica são tidos por privados, dado o critério da funcionalização dos bens públicos. Tal premissa leva à conclusão de que não haveria óbice à sua desapropriação por qualquer ente federativo; Hely Lopes Meirelles, v.g., argumenta que “qualquer das entidades políticas tem supremacia sobre os entes administrativos situados em seu território, pelo que seus bens não vinculados aos serviços sujeitam-se a expropriação como os demais, ainda que pertencentes a autarquias ou organizações estatais instituídas pela União.

A autonomia político-administrativa dos estados-membros e municípios, sendo uma prerrogativa constitucional (arts. 25 e 30), não há de ficar restringida nem tolhida nos atos de expropriação diante dos bens de entidades de categoria inferior e de natureza meramente administrativa”. [3]

Todavia, parece-me que as consequências dessa natureza privada dos bens são bem conhecidas para fins de isso de usucapibilidade e de penhorabilidade, mas não de desapropriabilidade. Carecem de maior regulação legislativa. Chegar à conclusão acerca da desapropriabilidade a partir da mencionada premissa chega a ser um salto lógico; afinal, a despeito da natureza privada, os bens continuam pertencendo a uma entidade vinculada ao ente federativo “hierarquicamente superior”.

Desvio de finalidade

Vamos, agora, à segunda questão sugerida pelo caso do estádio. Diz respeito a um eventual desvio de finalidade do decreto exproriatório.

Certas atividades empresariais realizadas por particulares são tidas como de interesse social, e seu empreendimento se dá sob regimes jurídicos variados: ou como delegatários de serviços públicos (v.g., serviços portuários, de energia elétrica, telecomunicações), ou como delegatários de atividades econômicas monopolizadas pelo poder público (v.g., pesquisa e lavra de jazidas de petróleo, transporte de gás natural), ou, ainda, como atividades econômicas de livre iniciativa, mas de utilidade pública. [4]

A construção de um estádio pelo clube mais popular do País traz enorme potencial econômico e de mobilidade urbana para o seu entorno; e, se tal entorno consistir numa antiga área industrial decadente, é inegável o interesse público envolvido na obra, dada a possibilidade de revitalização da região com recursos privados.

Sob determinadas condições, o poder público pode e deve colaborar com o parceiro privado, intermediando a aquisição de propriedades imobiliárias — isto é, primeiro incorporando-as ao patrimônio público e, após, alienando-as ao ente privado. Lançando mão da desapropriação, o Estado viabiliza a aquisição privada de imóveis necessários ao desempenho da atividade de interesse social. O que se veda é a desapropriação como benefício a interesse privado, não a persecução de interesse público por meio da desapropriação de bem que será destinado a particulares. [5] Como exemplo, o artigo 4º da Lei nº 4.132/62 e o artigo 25 da Lei nº 4.504/64 expressamente preveem a alienação ou locação posterior à desapropriação por interesse social. [6]

Dito isso, e considerando as negociações públicas entre Flamengo e Caixa há anos para aquisição do terreno, poderia o município do Rio confessadamente “facilitar” tal aquisição por meio de desapropriação seguida de leilão que, até o momento, possui um único notório interessado? Isto é, a hipótese configuraria ou não atendimento primordial de interesse privado?

Spacca

Para fins comparativos, falemos de quando o STF examinou a constitucionalidade de desapropriações realizadas para a implantação de distritos industriais, fundadas na hipótese de utilidade pública prevista na parte final da alínea “i” do artigo 5º do Decreto-lei nº 3.365/41 — embora também pudessem o ser em hipóteses de interesse social.

Nas desapropriações com tal escopo, costuma-se prever a destinação dos imóveis expropriados a particulares, para que estes, então, conduzam a atividade de indústria. A equivocada ideia de se refutar a desapropriação pela simples destinação do bem expropriado a particulares foi superada ainda no final da década de 1970, vide o RE nº 88.742-3 (1ª Turma, julg. 22/5/1979), cujo relator, ministro Xavier de Albuquerque, pontuou, em seu voto, que “não compromete sua legitimidade [da desapropriação] a circunstância de se deverem vender a particulares, que neles hajam de levantar estabelecimentos industriais, lotes extraídos da área objeto do ato expropriatório. É isso da própria índole da finalidade pública objetivada pela medida em questão, vale dizer, da execução de planos urbanísticos, ou do loteamento de terrenos edificados ou não para sua melhor utilização econômica”.

Em seguida, fez uma ressalva, sem intuito infringente, que endossa o raciocínio de adequação e conformidade da desapropriação por interesse social — aquela da Lei nº 4.132/1962 — aos projetos de industrialização: no julgamento do RE 76.296, realizado em 19/11/1974, a 1ª Turma do STF entendeu que “não podem ser objeto de desapropriação por utilidade pública terrenos que se destinam a ser cedidos pelo expropriante a pessoa jurídica de direito privado, que se proponha a realizar a implantação de distrito industrial e a posterior venda dos lotes industriais, porque a desapropriação por interesse social é que permite a venda ou a locação do bem expropriado”.

O relator desse último julgamento, ministro Bilac Pinto, afirmou que “somente esta espécie expropriatória [desapropriação por interesse social] tem como objetivo implícito a venda dos respectivos imóveis a terceiros, como expressamente dispõe o artigo 4º da Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962”. [7]

Ainda a respeito das desapropriações fundadas na hipótese prevista na parte final da alínea “i” do artigo 5º do Decreto-lei nº 3.365/41, a 1ª Turma do STJ declarou nulo por desvio de finalidade um decreto expropriatório que beneficiava uma única empresa privada (RMS 18.703/BA, 1ª Turma, rel. Min. Denise Arruda, julg. 28/11/2006), partindo da premissa de que os distritos industriais devem ser entendidos como “área de concentração de indústrias e atividades complementares delas, ordenada pelo Poder Público mediante plano urbanístico especial de urbanificação do solo, com possibilidade de desapropriação da gleba e revenda ou locação dos lotes aos estabelecimentos industriais interessados”.

A 17ª Câmara Cível do TJ-RJ, sob relatoria da desembargadora Marcia Ferreira Alvarenga, também adotou tal posicionamento no julgamento da apelação nº 0001734-12.2010.8.19.0040, declarando nulo por desvio de finalidade um decreto expropriatório que contemplava área atrativa a somente uma empresa privada:

“As provas amealhadas deixam claro que a sociedade empresarial teve participação efetiva na escolha do local a ser decretado de utilidade pública para a construção de distrito industrial. (…) Cumpre assinalar, a propósito, que a desapropriação para instalação de distrito industrial não legitima a expropriação de imóvel para o fim de atender a fins particulares, sobretudo quando comprovado que apenas uma empresa tinha efetivo interesse na área, o que se observa pela ausência de qualquer outra destinação ao imóvel após a revogação do procedimento licitatório.”

Um ponto que merece destaque é a legislação municipal citada no decreto expropriatório: os art. 158 a 160 da Lei Complementar Municipal nº 270/2024, regulamentados pelo Decreto nº 54.234/2024, instituíram, com fins de renovação urbana e regularização fundiária, uma desapropriação por hasta pública, de modo que o particular interessado na posterior aquisição do bem expropriado será o responsável pelo pagamento da indenização. Tem-se uma “propriedade resolúvel” do ente municipal. A iniciativa é louvável e, em circunstâncias outras — isto é, que não apresentem um único notório interessado devido a negociação pública de anos entre o proprietário do bem e o pretenso adquirente —, o leilão realmente parece hábil a assegurar o não direcionamento do ato expropriatório.

Repito: espero que dê certo. Sou flamenguista e o negócio parece bom para todos. Mas as duas questões estão postas.

__________________________________

[1] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 35ª ed., São Paulo: Malheiros, 2021, p. 832.

[2] Manual de direito administrativo. 31ª ed., São Paulo: Atlas, 2017, p. 457. Também é essa a posição de Celso Antônio Bandeira de Mello: “Outrossim, consoante dispõe o art. 2º, § 3º, do Decreto-lei 3.365, Municípios, Distrito Federal, Territórios e Estados não podem sem prévia autorização, expedida por decreto do Presidente da República, expropriar ações, cotas e direitos representativos do capital de instituições e empresas cujo funcionamento dependa de autorização do Governo Federal e se subordine à sua fiscalização. Este dispositivo, de um lado, fortifica a inteligência que indicamos para o caso das autarquias e, de outro, protege, nos limites indicados pelo artigo referido, concessionários de serviços públicos federais, sociedades de economia mista e empresas públicas da União, bem como quaisquer outras pessoas por ela autorizadas ou sujeitas à sua fiscalização.” (Curso de direito administrativo, op. cit., p. 832).

[3] Direito administrativo brasileiro. 42ª ed., São Paulo: Malheiros, 2016, p. 741.

[4] SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda; SOUZA, Rodrigo Pagani de. Desapropriação em favor de particular: proibição, limites e possibilidades. A&C Revista de Direito Administrativo e Constitucional, Belo Horizonte, ano 12, n. 47, p. 85-106, jan.-mar., 2012, p. 87.

[5] MILL, Lorenzo Caser. Desapropriação: elementos fundamentais, técnica cognitiva e estabilidades processuais. Londrina: Thoth, 2024, p. 85-87.

[6] MILL, Lorenzo Caser. Desapropriação…, op. cit., p. 90.

[7] MILL, Lorenzo Caser. Desapropriação…, op. cit., p. 87.

Autores

  • é advogado, mestre em Direito Processual pela Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo) e especialista em Falência e Recuperação de Empresas pela FGV (Fundação Getúlio Vargas).

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