Opinião

Da ética da psicanálise à ética do processo penal (parte 1)

Autor

  • Matheus Felipe de Castro

    é doutor em Direito pela UFSC e pós-doutor em Direito pela UnB. Professor de Direito Processual Penal na graduação em Direito da UFSC. Professor do mestrado profissional em Direito e Acesso à Justiça da UFSC. Professor de Criminologia na Graduação em Direito da Unoesc. Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Direitos Fundamentais da Unoesc. Coordenador do Cautio Criminalis (Grupo de Estudos em Realidade do Sistema Penal Brasileiro). Ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SC. Advogado criminalista.

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1 de julho de 2024, 6h37

Inicio este texto homenageando Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, que dedicou sua vida e perspicácia ao Direito Processual Penal numa época em que a disciplina era o “primo feio” da grande família jurídica; uma época em que a maioria dos poucos que se dedicavam ao seu estudo no Brasil o faziam manualisticamente preocupados em reforçar a função instrumental dos aparelhos repressivos de Estado, aquilo que Zaffaroni tão bem sintetizou na ideia do Poder Punitivo [1].

Spacca

Foi Jacinto quem primeiro intuiu a importância da mirada do processo penal pelas lentes da psicanálise, arejando o velho ar carregado de mofo dos salões paroquiais em que os homens sisudos do processo caminhavam. Destaco nessa trajetória dois pontos altos: a recuperação — numa relação ambivalente de amódio (amor e ódio), como ele mesmo declarou em suas Glosas [2] — da potência clássica dos textos de Carnelutti e a apresentação ao público brasileiro da grandiosidade renovadora do pensamento de Franco Cordero, com sua reinterpretação da natureza dos Sistemas Processuais, inquisitório e acusatório, pela via da preponderância da gestão da prova pelo juiz ou pelas partes [3].

Com essa atitude, Jacinto reforçou a dimensão limitadora do Direito Processual Penal, permitindo que víssemos nos lampejos de nossa disciplina uma espécie de moldura, para usar a metáfora de Kelsen [4] (eu particularmente prefiro chama-la de gaiola normativa) pronta para emoldurar o desejo de liberdade de voo do Poder Punitivo; e nos legou uma tradição renovada que agora está rendendo belos frutos em toda uma nova geração de processualistas penais brasileiros comprometidos na mudança de rumos, em sentido garantista, da jurisprudência de nossos tribunais superiores.

Problemas colocados por Carnelutti em Verdade, Dúvida e Certeza

Um texto é considerado clássico quando é capaz de colocar em palavras os problemas que os homens não tinham sido capazes até então de nominar. Por isso Wittgenstein afirmava que todos os problemas difíceis da filosofia se resumiam a problemas de linguagem [5]. Assim é esse texto poderoso de Carnelutti, Verdade, Dúvida e Certeza [6], que nos permite reinterpretar o processo penal de nosso tempo, e vivenciar uma transformação afetiva em nossas formas de pensar e estar no mundo. O problema apresentado pelo autor neste texto de 1965 é o da verdade no processo penal, uma temática que desde sempre foi trabalhada por todos aqueles que levam o processo penal a sério.

Carnelutti estava expressando as transformações de seu tempo e o indisfarçável mal-estar dos pensadores que, na transição do século 19 para o 20, contestaram as concepções fortes da verdade, acontecimento filosófico que não deixou incólume o universo jurídico, que por séculos permaneceu intocado diante de suas exigências de autoridade e segurança jurídica.

Nosso autor, nascido no século 19 (1879) e morto na segunda metade do século 20 (1965), expressou essa tensão quando no texto estudado, escrito poucos meses antes de sua morte, se ressentiu de suas opiniões iniciais manifestadas na Prova Civile, onde em sua polêmica com Eugene Florian, havia sustentado que todo juiz, seja no processo civil, seja no criminal, sempre deve mirar a verdade substancial, escopo do processo, para obter a verdade formal, distinção que, ao final, ele julgaria infundada, já que a verdade, não podendo ser senão uma só não poderia ser artificialmente separada, de modo que uma verdade formal não seria a verdade, e a verdade substancial não poderia jamais ser alcançada pelos homens.

Sua reflexão prosseguiu explicando seu ponto de vista: as coisas que compõe o mundo são partes, e partes são e não são; portanto, a verdade das partes não poderia ser alcançada apenas pelo conhecimento do que elas são em suas determinações, mas também e principalmente do que elas não são em suas indeterminações, de modo que a verdade das coisas nos fugiriam até que pudéssemos conhecer a verdade de todas as outras coisas; ao homem, ser limitado, só seria acessível um conhecimento parcial das coisas. A verdade, em síntese, estaria no todo, não na parte, e o todo, segundo ele, seria demais para nós.

Por isso, se ressentiu de só tardiamente ter transitado do conceito da verdade para o da certeza, e ainda assim de forma grosseira e rudimentar, já que traduzira equivocadamente o vocábulo latino “cernere” como “ver”, o que o enganara. Teriam sido necessários muitos anos para que Carnelutti acolhesse, em Diritto e Processo, o significado originário de “cernere”, não como “ver”, mas como “escolher”, de modo que a certeza, antes de representar um saber, representasse uma escolha, um decidir e que a decisão pudesse ser compreendida como uma bifurcação entre duas estradas possíveis em meio às quais a escolha se depara inevitavelmente com a dúvida.

“Cernere” é escolher. A certeza implica uma escolha. Mas escolher entre o quê? Quando se põe essa pergunta emerge o valor da dúvida que está na raiz do conceito de certeza. Carnelutti aprendeu, com Miguel de Unamuno que dubium vem de duo. Afinal de contas o juiz se encontra na bifurcação entre duas estradas: não podendo conhecer indefinidamente, precisa realizar um corte, parar de pensar e decidir com base nos elementos de que dispõe até aquele momento. Por isso Carnelutti afirma que primeiro o juiz julga, decide, e só depois, raciocina, fundamenta, de modo que as razões baseadas nas provas seriam um meio para testar o juízo após a decisão.

Para ele não existiria juízo algum cujo teste não poria quem o deve pronunciar frente àquele contraste no qual a dúvida se constitui, um exemplo para ele banal da perplexidade que, a final de contas, o juiz não pode jamais eliminar cem por cento de seu pensamento. Continuava explicando que o juiz raciocina na forma de um silogismo onde sua premissa maior seria a Lei. No entanto, mencionou que desde Newton a Planck, isto é, da macrofísica à microfísica, o conceito de Lei estaria totalmente mudado de um valor absoluto para outro meramente estatístico e, portanto, relativo, o que poderia muito bem ser assimilado pelos juristas na medida em que a premissa maior do seu pensamento, a Lei, admitiria sempre o valor da exceção, permitindo a subversão do resultado do silogismo. Diante disso a exceção assumiria ares de conceito misterioso, assinalando a vulnerabilidade das leis, os próprios limites do pensamento e, sobretudo, da ciência humana.

Carnelutti considerou que julgar seria muito mais escolher que discernir.O problema é que, embora os homens não possam efetivamente tudo discernir, mesmo assim precisam, por razões práticas, julgar, sendo este o momento crítico do drama do processo: devem julgar porque precisam agir, sendo condenação e absolvição mais filhas da liberdade do que do saber. Mesmo após ter examinado as provas, após ter escutado as razões, após tê-las valorado, continuaria o juiz diante da dúvida que o seu pensamento não consegue de nenhum modo eliminar.

Dúvidas macroscópicas ou microscópicas, mas que bastariam para constituir o tormento diante do qual ele precisaria escolher. Tomentosa constatação pôr ênfase sobre a ideia de que a certeza pertenceria ao reino da ação, da liberdade e não ao do pensamento e do saber, porque inevitavelmente nos levaria a admitir que a escolha se fundaria na aposta, ou seja, na crença, o que já estava intuído em Sócrates quando afirmava que o único saber é saber de não saber. A absolvição por insuficiência de provas seria a confissão por parte do juiz de sua incapacidade de superar a dúvida, ou seja, em termos lacanianos, o reconhecimento do seu furo no saber.

Como não existe problema resolvido que não suscite uma infinidade de outros problemas ainda por resolver, se não existisse senão o pensamento, dizia Carnelutti, os homens em geral não poderiam agir e o juiz não poderia julgar uma causa, ficando preso em pensamentos infinitos que o imobilizariam em sua liberdade prática, de modo que a crença voltaria necessariamente à cena para preencher o vazio deixado pela deficiência do saber, mas permitindo a ação.

Essa coisa que faria suplência à falta que o saber faz, mas que permite a escolha, a decisão, enfim, a ação, outro nome não tem senão o de . A afirmação que a certeza se alcança não tanto através da ciência, mas através da fé, tem o valor do paradoxo, mas os paradoxos, para nosso autor, não são outra coisa senão as luzes ofuscantes da verdade. Por isso, para ele, crer às vezes significaria menos, às vezes significaria mais que saber. O paradoxo estaria aí: ainda não sei, mas creio, portanto ajo!

Se a liberdade dos homens estivesse abandonada a si mesma, a escolha se reduziria a um jogo de azar. Na falta de um saber seguro que guie a ação, deveria existir alguma coisa que o suprisse e guiasse. Por isso, nem o problema do processo nem o da ação humana poderiam ser resolvidos sem o recurso a uma combinação entre liberdade e crença, que atrairia os homens para um dos caminhos possíveis diante da encruzilhada da dúvida. Assim, para Carnelutti, reapareceria, no processo penal, o antigo parentesco entre o juiz e o sacerdote.

Essas linhas permitem sistematizar os seguintes problemas colocados por Carnelutti em seu texto:

  1. A verdade é um impossível. Carnelutti expressou essa ideia, primeiro quando denunciou a artificialidade da distinção verdade substancial/verdade formal, esvaziando o conceito da última: “a verdade não pode ser senão uma só”. Segundo, quando afirmou que “a verdade está no todo e o todo é demais para nós”;

  2. Todo saber se constitui no entorno de um furo. Carnelutti expressa essa concepção na medida em que nos mostra o limite do saber como fundamento da escolha: não podendo conhecer tudo, sempre chega a hora em que somos obrigados a abandonar, ainda que provisoriamente, a busca do saber;

  3. O problema crucial da decisão com base em provas é menos epistemológico que ético. Quando abandonamos a busca do conhecimento o fazemos para poder escolher, já que a obsessão pelo saber tornaria eternamente procrastinada a decisão. Ou seja, entre o conhecer e o decidir se interpõe uma hiância, um vazio resolvido pela mente heuristicamente (por saltos, aproximações), de modo que o momento crítico da decisão não seja propriamente um problema cognoscitivo, mas ético.

Esses três problemas são os mesmos que Jacques Lacan identificou na base da psicanálise e que possibilitaram a sua reconstrução como uma ética, abandonando as concepções pós-freudianas que a aproximavam de uma epistemologia onde o analista (o sujeito do saber) exercia verdadeiro poder sobre o analisante (o objeto do conhecimento), um autêntico discurso do mestre. Na segunda parte deste texto, voltaremos a esses três problemas tematizados por Carnelutti, analisando-os à luz da intersecção Direito e Psicanálise.

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[1] ZAFFARONI, Eugenio Raul. La cuestión criminal. 4. ed. Buenos Aires: Planeta, 2012, pp. 29-40.

[2] COUTINHO, Jacinto Nelson. Glosas ao Verdade, dúvida e certeza de Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito. In: Revista de Estudos Criminais, n. 14, 2004, p. 77.

[3] CORDEROFranco. Guida alla procedura penale. Torino: UTET, 1986 e CORDERO, Franco. Procedura penale. 5. ed. Milano: Giuffrè, 2000.

[4] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 390.

[5] WITTIGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-Philosophicus. 3.ed. São Paulo: EdUsp, 2020, p. 155.

[6] CARNELUTTI, Francesco. Verità, dubbio, certezza. Texto publicado originalmente na Rivista di diritto processuale, Padova: Cedam, 1965, vol. XX (II série), pp. 04-09, traduzido no Brasil por Eduardo Cambi e publicado na Folha Acadêmica da Universidade Federal do Paraná, n. 116, p. 05, 1997. Esta tradução é que será amplamente citada neste trabalho.

Autores

  • é doutor em Direito pela UFSC e pós-doutor em Direito pela UnB. Professor de Direito Processual Penal na graduação em Direito da UFSC. Professor do mestrado profissional em Direito e Acesso à Justiça da UFSC. Professor de Criminologia na Graduação em Direito da Unoesc. Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Direitos Fundamentais da Unoesc. Coordenador do Cautio Criminalis (Grupo de Estudos em Realidade do Sistema Penal Brasileiro). Ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SC. Advogado criminalista.

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