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Consultor Jurídico

Provas de ofício quebram a imparcialidade na Justiça Eleitoral

29 de janeiro de 2024, 13h15

Por Lenio Luiz Streck, Alexandre de Castro Nogueira

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Em ano eleitoral alguns fantasmas autoritários sempre aparecem. E reaparecem.

Depois de muita resistência e luta, alguns dogmas do Direito Eleitoral foram caindo (embora o artigo 23 da LC 64/90, aquele que franqueia a atuação de um julgado com base em indícios e presunções, ainda subsista), o Código de Processo Civil de 2015 passou a ser aplicado. A própria Justiça Eleitoral assim reconheceu ao editar o artigo 3º da Resolução 23.478/2016 do TSE que diz:

“Art. 3º – Aplicam-se aos processos eleitorais o contido nos arts. 9º e 10 do Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015).”

Caricatura Lenio Luiz Streck (nova)

Passos de Curupira
Depois desses avanços, eis que (re)surge o fantasma do autoritarismo em outra proposta de Resolução do TSE, que colocou em minuta, para discussão em audiências públicas, o seguinte dispositivo, acrescentando a Resolução-TSE nº 23.608, de 18 de dezembro de 2019, que dispõe sobre representações, reclamações e pedidos de direito de resposta previstos na Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, para as eleições:

“Art. 47-F. A autoridade judiciária competente poderá determinar, de

ofício, diligências complementares às requeridas pelas partes e pelo

Ministério Público Eleitoral, a fim de elucidar circunstâncias ou fatos

relevantes para o julgamento (Lei Complementar nº 64/1990, arts.

22, VI, e 23; Supremo Tribunal Federal, ADI nº 1.082/DF).” (NR)

Interessante notar que, ao mesmo tempo em que o Supremo Tribunal reconhece que o Direito Processual Penal se rege pelo sistema (princípio) acusatório, no Direito Eleitoral a Justiça anda com passos de Curupira.

Interferência nos direitos das partes
Ora, o Estado Democrático de Direito não permite que o poder estatal baseie suas decisões em elementos não conhecidos pelas partes da relação processual em caso algum. Menos ainda quando está em jogo a soberania popular [1].

Por meio da leitura desse dispositivo se percebe que não há como subsistir no processo judicial eleitoral decisão que interfira nos direitos das partes sem que essas se manifestem, principalmente se isso importa em juntada de prova nova aos autos. Aliás, isso viola o CPC, que a Justiça Eleitoral reconhece aplicável.

Provas de ofício são incompatíveis com a imparcialidade. Parece evidente isso. Quando o juiz manda buscar prova, o faz por alguma razão, pois não? Com certeza, não é por ser imparcial. É para algo que chamamos de viés de confirmação, coisa que remonta ao século XVII.

Livre convencimento
Vale trazer as questões suscitadas pelo STF na ADI 1.082, quando, erroneamente na nossa visão, a Suprema Corte julgou improcedente ação que visava o reconhecimento do já citado artigo 23 da Lei das Inelegibilidades, pois mesmo antes do advento do CPC de 2015 (a ação foi julgada em 2014) a corte tocou em pontos importantes, muito embora tenha adotado premissas que não mais se sustentam após a entrada em vigor do CPC de 2015.

Aliás, no julgamento da chapa Dilma-Temer, o ministro Gilmar Mendes reconhece que o STF deveria ter julgado o artigo 23 inconstitucional, dando razão aos que, como Streck — um dos articulistas — já dizem há mais de uma década que esse dispositivo é uma carta em branco para o cometimento de arbitrariedades.

No fundo, o que sustenta a redação do TSE é o livre convencimento. Ora, se é livre, já temos um sério problema com relação à imparcialidade e o devido processo legal. Todavia, antes de adentrar na questão da relação entre livre convencimento do juiz e o artigo 23 da Lei de Inelegibilidades, é importante anotar que houve uma mudança da realidade legislativa que baseou o julgamento da ADI 1.082 e é necessário que se faça uma releitura do resultado deste julgamento e não ressuscitar a possibilidade de um magistrado intervir no processo produzindo prova ele mesmo para formar (o já provavelmente estabelecido) o seu entendimento.

E qual é novo contexto legislativo? Simples. O CPC de 2015 expungiu o livre convencimento, bastando uma lida no artigo 371 — e, para os céticos, a exposição de motivos da emenda supressiva que tramitou no parlamento.

Não há como sustentar o fato de o juiz poder decidir de ofício algumas situações que versam sobre a gestão e principalmente o esclarecimento de fatos e provas constantes nos autos, autorizando-a a decidir por presunção, ou ao alvedrio da participação das partes do processo, porque isso não seria adequado ao artigo 10 do CPC de 2015, como, por consequência, aos termos da Resolução 23.478 do TSE. Pelo CPC, isso não pode acontecer se a outra parte, ou as partes, não tiveram a oportunidade de se manifestar sobre tais provas, antes de qualquer decisão ou desfecho do processo [2].

Desrespeito às regras do jogo
Essa construção, já forte antes mesmo do CPC de 2015, sobre o princípio do contraditório, caracteriza-se através da participação das partes no processo e do diálogo que deve ter o órgão jurisdicional com as partes. Desta concepção do princípio decorrem várias consequências, como a de que não pode o órgão jurisdicional proferir decisão com surpresa para as partes.

Reconhece-se que, mesmo em se tratando de temas a respeito dos quais deva o juiz manifestar-se ex officio, deve o órgão jurisdicional, atento ao princípio do contraditório, ouvir a parte interessada, evitando-se, com isso, a prolação de decisão-surpresa para a parte, o que não se coadunaria com o princípio do contraditório” [3].

A autorização de produção de provas para o esclarecimento (ou seria fortalecer uma ideia já presente na mente do magistrado?) do magistrado, sem que o produto desta atuação seja submetido ao crivo do contraditório das partes, antes das alegações finais, é danosa ao caráter democrático do processo, é um desrespeito as regras do jogo (ao fairness [4] de Dworkin) [5].

Em síntese, na nova realidade trazida pelo CPC de 2015, não há espaços para valorações pessoais-subjetivistas do magistrado que se sobreponham aos fatos e à própria lei. Nitidamente, o artigo 47-A parece ser uma retranca da justiça eleitoral, visando a tomar para si um poder que não deve ter, isto é, o de buscar provas de ofício, circunstância que visivelmente aponta para a quebra da imparcialidade.

O convencimento do juiz, a partir do novo Diploma Processual Civil, passa a ter, mais do que nunca, limites; e a sua atuação parâmetros, como os estabelecidos pelo artigo 489, daí ser um absoluto retrocesso a redação do artigo 47-A, devendo ser modificada quando apreciada pelo TSE e já entrar em vigor com as correções devidas, respeitando-se os corolários existentes no CPC de 2015.


[1] SALGADO, Eneida Desiree; VALIATI, Thiago Priess; BERNARDELLI, Paula. O livre convencimento do juiz eleitoral versus a fundamentação analítica exigida pelo novo Código de Processo CivilIn: TAVARES, André Ramos; AGRA, Walber de Moura; PEREIRA, Luiz Fernando (Coord.). O direito eleitoral e o novo Código de Processo Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 357.

[2] NOGUEIRA, Alexandre. Decisão Judicial Eleitoral: O processo Judicial Eleitoral à Luz do CPC, Editora Juruá, 2020, pg. 230.

[3] MEDINA, José Miguel Garcia. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Processo Civil Moderno: parte geral e processo de conhecimento. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. v.1.

[4] “De fato, o termo é de difícil tradução. Fairness pode significar várias coisas: correção, equanimidade, justeza. Esses significados são, digamos assim, mais rebuscados. Mas, em um sentido mais pobre, e entendo que esse é o utilizado por Dworkin, significa também certeza, no caso, do Direito, ou respeito às regras do jogo.”

OMMATI, José Emílio Medauar. A igualdade no paradigma do estado democrático de direito. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004. Pg. 78.

[5] Lenio Streck (Limites do juiz na produção de prova de ofício no art. 370 do CPC. Disponível em: https://www. conjur.com.br/2016-set-15/senso-incomum-limites-juiz-producao-prova-ofício-artigo-370-cpc. 2016):