Opinião

A busca por racionalidade nas execuções das penas de mult

Autor

  • Felipe Gustavo Oliveira

    é mestrando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco cofundador e diretor de ensino da Liga Acadêmica de Ciências Criminais da UFPE (UFPECrim) e assessor do Ministério Público Federal.

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29 de janeiro de 2024, 6h07

A Lei nº 13.964/2019, popularmente conhecida como “pacote anticrime”, alterou a redação do artigo 51 do Código Penal, promovendo mudanças no instituto da execução da pena de multa.

O dispositivo passou a prever que a pena de multa constituída pela sentença penal transitada em julgado, embora constitua dívida de valor, deve ser executada no juízo de execução penal, ainda que as normas aplicáveis ao processo de execução sejam as da Lei de Execução Fiscal (Lei nº 6.830/1980):

Art. 51. Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será executada perante o juiz da execução penal e será considerada dívida de valor, aplicáveis as normas relativas à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição.

Na realidade, tal alteração legislativa apenas positivou o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no final do ano de 2018, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.150/DF, que acabou tornando sem efeitos a Súmula nº 521 do Superior Tribunal de Justiça [1]:

Ementa: Execução penal. Constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade. Pena de multa. Legitimidade prioritária do Ministério Público. Necessidade de interpretação conforme. Procedência parcial do pedido.

  1. A Lei nº 9.268/1996, ao considerar a multa penal como dívida de valor, não retirou dela o caráter de sanção criminal, que lhe é inerente por força do art. 5º, XLVI, c, da Constituição Federal.
  2. Como consequência, a legitimação prioritária para a execução da multa penal é do Ministério Público perante a Vara de Execuções Penais.
  3. Por ser também dívida de valor em face do Poder Público, a multa pode ser subsidiariamente cobrada pela Fazenda Pública, na Vara de Execução Fiscal, se o Ministério Público não houver atuado em prazo razoável (90 dias).
  4. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido se julga parcialmente procedente para, conferindo interpretação conforme à Constituição ao art. 51 do Código Penal, explicitar que a expressão “aplicando-se-lhes as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição”, não exclui a legitimação prioritária do Ministério Público para a cobrança da multa na Vara de Execução Penal. Fixação das seguintes teses: (i) O Ministério Público é o órgão legitimado para promover a execução da pena de multa, perante a Vara de Execução Criminal, observado o procedimento descrito pelos artigos 164 e seguintes da Lei de Execução Penal; (ii) Caso o titular da ação penal, devidamente intimado, não proponha a execução da multa no prazo de 90 (noventa) dias, o Juiz da execução criminal dará ciência do feito ao órgão competente da Fazenda Pública (Federal ou Estadual, conforme o caso) para a respectiva cobrança na própria Vara de Execução Fiscal, com a observância do rito da Lei 6.830/1980. (ADI 3150, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 13-12-2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-170 DIVULG 05-08-2019 PUBLIC 06-08-2019).

Visão da doutrina
Desse modo, agora cabe tão somente ao Ministério Público, na condição de titular da ação penal, a prevalência na execução de todas as sanções penais impostas em condenação penal, incluindo, por conseguinte, a execução da pena de multa, independentemente de seu valor, nos termos do artigos 164 a 170 da Lei nº 7.210/1984.

Sobre essa nova sistemática, Luciano Anderson de Souza é elucidativo [2]:

Sucintamente, mudou-se a competência para a execução da pena de multa do juízo da Fazenda Pública para o juízo das Execuções Penais.

Transitada em julgado a decisão que aplicou a punição de multa, isto é, tornada definitiva referida condenação, na Vara de Execuções Criminais, os autos são encaminhados ao contador judicial para atualização de seu valor. A seguir, após manifestação do Ministério Público, o juiz homologará o valor e notificará o condenado para que pague, no prazo de 10 dias. O Código Penal estabelece que, a pedido do condenado e consoante as circunstâncias do caso concreto, poderá ser autorizado o parcelamento do pagamento.

Uma vez efetuado o pagamento integral, ou final, quando parcelado, o juízo decreta extinta a punibilidade.

Aqui, cumpre ressaltar que a execução da pena de multa deve ser promovida em consonância com o interesse de agir, com os princípios da eficiência e da proporcionalidade, bem como com a racionalização da atuação estatal, especialmente levando em consideração um juízo de ponderação que deve ser feito entre a onerosidade do processo executivo e o proveito econômico aferível com o prosseguimento do feito, sob pena de tornar a execução da pena de multa mais onerosa que o próprio valor a ser perseguido pelo Parquet.

Entendimento do STJ
Nesse contexto, é bom lembrar que o Superior Tribunal de Justiça, revisitando a ideia inicialmente estabelecida no Tema nº 931, assentou que: “na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária, pelo condenado que comprovar impossibilidade de fazê-lo, não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade” [3], reforçando a tese de que a execução, e consequente pagamento da pena de multa, podem ser relativizadas diante das particularidades do caso concreto.

Mais recentemente, em outubro de 2023, o mesmo STJ, propôs revisar a tese atual, quanto à alegada necessidade de demonstração da hipossuficiência do apenado para que, a despeito do inadimplemento da pena de multa, possa-se proceder ao reconhecimento da extinção de sua punibilidade. Nessa toada, será definido se condenados por crimes que são assistidos pela Defensoria Pública precisam comprovar que não podem pagar a pena de multa para obter a extinção da punibilidade depois de cumprir a pena privativa de liberdade [4].

Resolução nº 425, do CNJ
Isso vem na linha da Resolução nº 425, de 8 de outubro de 2021, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que instituiu, no âmbito do Poder Judiciário, a “Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas Interseccionalidades”, dispondo, em seu artigo 29, parágrafo único, que “cumprida a pena privativa de liberdade e verificada a situação de rua da pessoa egressa, deve-se observar a possibilidade de extinção da punibilidade da pena de multa” [5].

Somado a isso, vale salientar que, no âmbito tributário, o Ministério da Fazenda editou a Portaria nº 75, de 22 de março de 2012, que previu, em seu artigo 1º, inciso II, “o não ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais)” [6]. Contudo, o § 1º do mesmo dispositivo diz que: “os limites estabelecidos no caput não se aplicam quando se tratar de débitos decorrentes de aplicação de multa criminal”, dando azo, portanto, ao ajuizamento de execuções para cobrança de penas de multa com valores bem abaixo desse montante.

O quantum da insignificância
Não obstante, a jurisprudência do STJ, há muito, fixou o quantum de R$ 20 mil para reconhecer a incidência do princípio da insignificância nos casos de crimes tributários federais e de descaminho, quando o débito tributário verificado não ultrapassar esse limite, nos moldes do disposto no artigo 20 da Lei nº 10.522/2002, com as atualizações efetivadas pelas Portarias nº 75 e nº 130, ambas do Ministério da Fazenda [7].

Nesse mesmo sentido, o Enunciado nº 49 da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal: “aplica-se o princípio da insignificância penal ao descaminho e aos crimes tributários federais, quando o valor do débito devido à Fazenda Pública decorrente da conduta formalmente típica não seja superior a R$ 20.000,00, ressalvada a reiteração na mesma modalidade criminosa, ocorrida em períodos de até 5 (cinco) anos”.[8]

O que o STF definiu?
Ademais, no último mês de dezembro, conforme noticiado nesta ConJur [9], o plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.355.208/SC,  firmou tese no sentido de que: “é legítima a extinção de execuções fiscais de baixo valor pela ausência de interesse de agir, tendo em vista o princípio constitucional da eficiência administrativa, respeitada a competência constitucional de cada ente federado”.

Diante de todo esse cenário, o ajuizamento e prosseguimento de execuções de penas de multa com valores ínfimos, mostra-se inócuo, desnecessário, oneroso e inadequado, além de ir de encontro ao princípio da eficiência na administração da Justiça, movimentando de forma desnecessária a máquina do Poder Judiciário brasileiro.

Com essa mesma visão, a Orientação n° 38 da 2ª CCR do MPF, que orienta sobre a execução das multas penais pelos membros da instituição, aduz que “se tratando de valores até um salário mínimo, é facultado o arquivamento dos feitos, em atenção ao princípio da eficiência na administração da Justiça”, ao passo que “se tratando de valores superiores a um salário mínimo, é facultado o arquivamento, quando verificada a impossibilidade de pagamento, em razão de hipossuficiência, verificando-se tal condição nos autos da execução penal”.

Possibilidade de arquivamento
Logo, em casos de condenações de penas de multa com valores baixos, deve o membro do MP vislumbrar, desde já, a possibilidade de arquivar o feito, sequer ajuizando a respectiva execução. Porém, caso haja tal ajuizamento, nada impede que o juízo, no curso da execução, entenda pela possibilidade de extinguir o feito desde logo, de ofício ou a requerimento da defesa, considerando a inexpressividade do valor a ser executado.

Como bem ponderam Gustavo Junqueira e Patrícia Vanzolini [10]:

A execução da pena de multa pelo Ministério Público não se impõe de forma padronizada em todo o País, pois em algumas unidades da Federação foram estabelecidos critérios para a execução, como o valor da multa ou as condições econômicas do condenado, enquanto em outras a execução foi plena, independentemente de valor ou circunstâncias, instalando-se uma evidente “caça aos miseráveis”. Valores ínfimos em conta-corrente são bloqueados, o nome do egresso é lançado nos órgãos de proteção ao crédito e até mesmo o pecúlio é atingido pela execução, com evidente efeito criminógeno: já é muito difícil, em um país com altos níveis de desemprego, que o egresso consiga ocupação lícita e rendimentos, restando apenas subempregos e vil remuneração para a subsistência: com o “nome sujo” e com seus pequenos rendimentos bloqueados, o acesso às vias lícitas de sobrevivência fica obstado, restando apenas o ilícito. Vale lembrar que o principal móvel para alteração da legitimidade para executar a multa na ADI 3.150 foi a execução de altos valores fixados nas penas pecuniárias do chamado “Mensalão” e da “Lava Jato”, que cuidam de minúscula parcela de réus ricos condenados por crimes de colarinho-branco, pois a imensa maioria das multas pesa sobre réus miseráveis, que nunca tiveram patrimônio ou perderam o que tinham durante o processo penal e o cumprimento da pena.

Percebendo o equívoco político-criminal, o CNJ editou a Resolução n. 425/2021, que, em seu art. 29, parágrafo único, disciplina que, no curso da execução criminal, cumprida a pena privativa de liberdade e verificada a situação de rua da pessoa egressa, deve-se observar a possibilidade de extinção da punibilidade da pena de multa.

Espera-se, pois, que o entendimento encampado, tanto na Orientação nº 38 da 2ª CCR do MPF como na Resolução nº 425/2021 do CNJ, seja adotado, progressivamente, pelos juízes de execução penal ao redor do país e ajude a fixar as balizas das teses envolvendo o tema da execução e da cobrança da pena de multa, por parte dos tribunais superiores — notadamente o STJ, na sua já anunciada revisão de tese do Tema nº 931.


[1] A legitimidade para a execução fiscal de multa pendente de pagamento imposta em sentença condenatória é exclusiva da Procuradoria da Fazenda Pública.

[2] Souza, Luciano Anderson de. Direito penal: parte geral [livro eletrônico]. v. 1. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, RB-24.5.

[3] REsp n. 1.785.383/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 24/11/2021, DJe de 30/11/2021 e REsp n. 1.785.861/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 24/11/2021, DJe de 30/11/2021.

[4] ProAfR no REsp n. 2.024.901/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 17/10/2023, DJe de 30/10/2023 e ProAfR no REsp n. 2.090.454/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 17/10/2023, DJe de 30/10/2023.

[5] Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 425 de 08/10/2021. Institui, no âmbito do Poder Judiciário, a Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas interseccionalidades. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4169. Acesso em: 22 jan. 2024.

[6] Ministério da Fazenda. Portaria MF nº 75, de 22 de março de 2012. Dispõe sobre a inscrição de débitos na Dívida Ativa da União e o ajuizamento de execuções fiscais pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=37631. Acesso em: 22 jan. 2024.

[7] REsp n. 1.709.029/MG, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, julgado em 28/2/2018, DJe de 4/4/2018 e REsp n. 1.688.878/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, julgado em 28/2/2018, DJe de 4/4/2018.

[8] Ministério Público Federal. Enunciados da 2ª Câmara Criminal. Disponível em: https://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/enunciados. Acesso em: 22 jan. 2024.

[9] Angelo, Tiago. Execuções de baixo valor podem ser extintas por falta de interesse de agir. Revista Consultor Jurídico, 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-dez-19/e-legitima-a-extincao-das-execucoes-fiscais-de-baixo-valor-decide-stf/#:~:text=%C3%89%20leg%C3%ADtima%20a%20extin%C3%A7%C3%A3o%20de,feira%20(19%2F12). Acesso em: 22 jan. 2024.

[10] Junqueira, Gustavo; Vanzolini, Patrícia. Manual de direito penal: parte geral [livro eletrônico]. 9. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 1.596-1.599.

Autores

  • é mestrando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, cofundador e diretor de ensino da Liga Acadêmica de Ciências Criminais da UFPE (UFPECrim), assessor do Ministério Público Federal e bacharel em Direito pela UFPE.

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