Opinião

Mary Shelley e a reforma do Código Civil

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19 de janeiro de 2024, 16h15

Juntar vários pedaços e disso fazer algo novo é uma ideia atraente. Em Frankenstein, obra-prima de Mary Shelley, o resultado não ficou bom nem bonito. E ainda não sabemos o que virá da iniciativa de reforma do Código Civil.

No dia 15 de dezembro de 2023, todas as oito subcomissões entregaram as propostas de modificação do diploma legal. Desde então, Flávio Tartuce e Rosa Maria Nery, que são os relatores gerais, trabalham para colocar tudo num texto único, que ainda será discutido e votado no plenário da Comissão de Juristas.

Na impossibilidade de analisar todos os relatórios parciais, apontarei oito tópicos que merecem cuidado, colhidos nos temas de Parte Geral e Direito de Família, de modo a exemplificar a enormidade da tarefa que a comissão ainda tem pela frente e, quem sabe, contribuir com algum aprimoramento.

O primeiro tópico, no âmbito da Parte Geral, tem a ver com a proteção dos incapazes. De acordo com a proposta, o artigo 3º deverá incluir a seguinte previsão: “Caso laudo técnico ateste a existência de deficiência intelectual ou mental de intensidade grave, as pessoas maiores de 16 (dezesseis) anos poderão, enquanto perdurarem as referidas condições, ser tidas como absolutamente incapazes”. Não há dúvida de que a regra está em conflito com a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Deve-se dizer que a proteção dos incapazes, conforme se encontra no Código Civil, precisa de ajustes, inclusive para permitir a adequada proteção de pessoas com discernimento reduzido. Mas nenhum deles pode desconsiderar os Direitos Humanos.

O segundo tópico, no âmbito da Parte Geral, tem a ver com o fim da menoridade. No artigo 5º, ao falar da primeira hipótese de emancipação, a proposta indica que podem concedê-la os pais “biológicos e afetivos”. A ideia é coerente com a tese da multiparentalidade, que o restante do projeto também encampa. No entanto, o modo de exprimi-la é infeliz, pois, muito embora haja vários caminhos para a criação do vínculo paterno-filial, não há mais de um tipo de paternidade, nem mais de um tipo de filiação. Pai é somente pai. E filho é somente filho. Ao adjetivar a paternidade, a proposta fere o disposto no artigo 227, § 6º, da Constituição da República: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

O terceiro tópico, no âmbito da Parte Geral, tem a ver com a proteção dos direitos de personalidade. No artigo 11, enquanto o Código prevê que o exercício desses direitos, salvo previsão em lei, não pode sofrer “limitação voluntária”, a proposta prefere a expressão “limitação abusiva”. No texto vigente, apesar de ser criticável o conteúdo da regra, não resta dúvida de que se refere às limitações desejadas pelo próprio titular do direito. O texto proposto, ao contrário, não tem essa mesma clareza. Teria sido melhor repetir o Enunciado 4, da I Jornada de Direito Civil, cuja autoria é do professor João Baptista Villela, que afirma a possibilidade de limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral.

O quarto tópico, no âmbito da Parte Geral, tem a ver com a proteção jurídica dos animais. Aqui, no artigo 82-A, que a proposta pretende acrescentar ao Código, o principal problema é a falta de coragem para definir o estatuto jurídico dos animais. O texto fica em cima do muro e prefere remeter o problema a uma futura lei especial.

O quinto tópico, no âmbito do Direito de Família, tem a ver com os deveres dos integrantes das entidades familiares. No artigo 1.510-H, que a proposta pretende acrescentar ao Código, os pais teriam a seguinte obrigação: “mesmo que estejam separados, compartilhar, de forma igualitária o convívio e os encargos para com os filhos, bem como dos animais de companhia”. É isso mesmo: sem nenhum pudor, os filhos e os animais de estimação são colocados no mesmo comando normativo.

O sexto tópico, no âmbito do Direito de Família, tem a ver com a convivência entre filhos e pais nos casos de ruptura da sociedade conjugal. E a lógica presente nos artigos 1.583-A e seguintes, que a proposta pretende acrescentar ao Código Civil, chega perto de impor a guarda compartilhada e a convivência igualitária de ambos os pais com os filhos. Nessa linha, o artigo 1.583-B tem a seguinte previsão: “Os filhos terão dupla residência, assim considerada o domicílio de cada um dos pais”. Ora, a realidade recomenda mais prudência nesses casos.

O sétimo tópico, no âmbito do Direito de Família, tem a ver com a reconhecimento da filiação. No artigo 1.609-A, que a proposta pretende acrescentar ao Código, a indicação de paternidade, quando feita isoladamente pela mãe, fica submetida à seguinte regra: “Em caso de negativa do indicado como genitor de reconhecer a paternidade, bem como de se submeter ao exame do DNA, o oficial deverá incluir o seu nome no registro, encaminhando a ele cópia da certidão”. Também aqui, a realidade recomenda um pouco mais de prudência.

O oitavo tópico, no âmbito do Direito de Família, tem a ver com o exercício da autoridade parental. O artigo 1.629-A, parágrafo único, que a proposta pretende acrescentar ao Código tem a seguinte previsão: “É presumido o dano pelo descumprimento dos deveres inerentes à autoridade parental, ensejando a imposição de obrigação indenizatória por danos materiais e morais”. E assim se confirma a triste tendência, já presente nas decisões do Superior Tribunal de Justiça, de se importar do Direito das Obrigações a solução para problemas típicos de Direito de Família.

Esses são apenas exemplos de pontos que merecem atenção. O modo como serão enfrentados pelos relatores gerais pode deixar o texto melhor ou pior. Seja como for, quando essa etapa estiver pronta, ainda sugiro muita cautela. O conteúdo deve ser amplamente divulgado e debatido. Especialistas devem ser ouvidos. Tudo com calma e sem atropelo. E só depois, se o resultado for bom e belo, é que se deve trazê-lo à vida.

 

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