Opinião

Direito, Justiça Militar e democracia

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17 de janeiro de 2024, 12h13

Quem não conhece a Justiça Militar costuma criticá-la, afirmando ser uma instituição oriunda dos governos militares (mas foi instituída em 1808, há mais de 215 anos), dizendo que ela não aplica os ditames do Direito (mas dá aos réus as mesmas garantias dadas pela Justiça comum e instituídas pela Constituição) ou insinuando que é uma Justiça corporativa (mas ela tem crimes que sequer existem na Justiça comum e tem algumas penas até maiores do que no Código Penal comum).

Fato é que o sistema jurídico militar (da década de 1960) e a própria Justiça Militar estão cada vez mais e melhor adaptados à Constituição Cidadã, atentos às garantias de nosso sistema democrático.

As recentes declarações públicas do presidente do Superior Tribunal Militar, órgão máximo da Justiça Militar da União, reforçaram a decisão do STF de processar e julgar os envolvidos nos episódios de 8 de janeiro de 2022, numa clara comprovação de plena aceitação, pela Justiça Militar, das regras do regime democrático e da supremacia das decisões do STF (O Estado de S. Paulo, 28/2/2022). No contexto dos que acusam a Justiça Militar de ser corporativa, a conduta esperada seria, ao contrário do que ocorreu, a de defender que os militares envolvidos no Dia da Infâmia fossem julgados pela própria Justiça Militar.

Na mesma direção vieram outras declarações do presidente do STM, um oficial-general do último posto da Força Aérea, no sentido de não se opor ao projeto de lei em tramitação no Congresso que retira da Justiça Militar e leva para a Justiça comum os crimes de violência doméstica cometidos entre casais de militares (Correio Braziliense, 15/1/2024). No contexto da matéria, o oficial defendeu a aplicação de punições rigorosas e admitiu o uso das medidas protetivas da Lei Maria da Penha, o que, aliás, já vem sendo aplicado em certa medida pela jurisprudência do STM.

No entanto, é de se relembrar que não apenas com discurso se fortalece a democracia e suas instituições. Ação concreta, a Lei nº 14.688, de setembro 2023, trouxe diversas alterações ao Código Penal Militar (CPM), a fim de compatibilizá-lo com a jurisprudência do próprio STM e com a jurisprudência do STF, com a Lei de Crimes Hediondos, com o Código Penal comum e, em especial, com a Constituição (que nasceu quase 20 anos após o CPM). Tal lei foi aprovada com o beneplácito do STM e sua tramitação foi acompanhada de perto por sua Comissão de Direito Penal Militar, desde 2017, quando se iniciaram os estudos prévios à apresentação do projeto de lei.

Dentre as inovações trazidas pela Lei nº 14.688/23 estão a adequação das regras de continuidade delitiva e de crime continuado ao que já existia no Código Penal comum (as regras anteriores do Código Militar eram consideradas draconianas), a separação do crime de posse de entorpecente no interior de quartel do crime de tráfico, bem como a diferenciação das penas desses dois crimes, além da determinação expressa de que a Lei de Crimes Hediondos seja aplicada à Justiça Militar, o que foi esquecido pelo legislador em 1990, quando criou a figura jurídica dos crimes hediondos, bem como o aumento do prazo de prescrição de 2 para 3 anos nos crimes mais leves, igualando esse prazo ao do Código Penal comum.

Nesse contexto, as instituições públicas e seus mais altos membros devem estar cientes de que as críticas institucionais são válidas e que são ingredientes essenciais do caldo de cultura da democracia. Por outro lado, os críticos devem estar atentos para o fato de que nenhuma instituição pública existe por força do acaso e devem reconhecer as dificuldades e os esforços para a modernização das instituições num contexto democrático em que, felizmente, nem o presidente da República nem o Congresso Nacional têm poder para, numa canetada, como se quer fazer em terras vizinhas, reformar ou extinguir órgãos previstos constitucionalmente.

Autores

  • é advogado, procurador de Estado, conselheiro da Comissão de Ética Pública da Presidência da República e presidente no DF da Associação Nacional da Advocacia Criminal (Anacrim).

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