Opinião

O treinador esportivo de combate à luz do artigo 75 da Nova Lei Geral do Esporte

Autor

  • Elthon Costa

    é advogado trabalhista e desportivo membro da Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho do TST no Grau Oficial especialista em Direito Desportivo (Cers) pós-graduado em Direito Processual Civil (Unileya) mestrando em International Sports Law (Isde) diretor jurídico do CNB (Conselho Nacional de Boxe) diretor do Departamento Jurídico da CBKB (Confederação Brasileira de Kickboxing) diretor do Departamento Jurídico da Wako Panam (World Association of Kickboxing Comissions Región Panamericana) e da CBMMAD (Confederação Brasileira de MMA Desportivo) membro do núcleo de estudos O Trabalho além do Direito do Trabalho: Dimensões da Clandestinidade Jurídico-Laboral (NTADT) da Faculdade de Direito da USP auditor do TJDU-DF e membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB-DF.

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16 de janeiro de 2024, 21h14

Muita controvérsia paira ainda sobre como seriam aplicados os novos dispositivos legais da Lei nº 14.597/2023 [1] — a nova Lei Geral do Esporte — para os esportes de combate no Brasil.

Acerca da figura do treinador esportivo, prevista no artigo 75 da referida lei, vários vídeos têm aparecido em mídias sociais sugerindo que a referida profissão foi reconhecida, no caso dos ex-atletas, sem a previsão de critérios objetivos que a definam com mais segurança, apenas dizendo a quantidade de tempo que um atleta precisaria para ser considerado treinador.

Destarte, cabe trazer à baila o texto legal, senão, vejamos:

“Lei Nº 14.597/2023
Subseção III
Dos Treinadores

Art. 75. A profissão de treinador esportivo é reconhecida e regulada por esta Lei, sem prejuízo das disposições não colidentes constantes da legislação vigente, do respectivo contrato de trabalho ou de acordos ou convenções coletivas.

§1º. Considera-se treinador esportivo profissional a pessoa que possui como principal atividade remunerada a preparação e a supervisão da atividade esportiva de um ou vários atletas profissionais.

§2º. O exercício da profissão de treinador esportivo em organização de prática esportiva profissional fica assegurado exclusivamente:

I – aos portadores de diploma de educação física;

II – aos portadores de diploma de formação profissional em nível superior em curso de formação profissional oficial de treinador esportivo, devidamente reconhecido pelo Ministério da Educação, ou em curso de formação profissional ministrado pela organização nacional que administra e regula a respectiva modalidade esportiva;

III – aos que, na data da publicação desta Lei, estejam exercendo, comprovadamente, há mais de 3 (três) anos, a profissão de treinador esportivo em organização de prática esportiva profissional.

§3º. Os ex-atletas podem exercer a atividade de treinador esportivo, desde que:

I – comprovem ter exercido a atividade de atleta por 3 (três) anos consecutivos ou por 5 (cinco) anos alternados, devidamente comprovados pela respectiva organização que administra e regula a modalidade esportiva; e

II – participem de curso de formação de treinadores, reconhecido pela respectiva organização que administra e regula a modalidade esportiva.

§4º. É permitido o exercício da profissão a treinadores estrangeiros, desde que comprovem ter licença de sua associação nacional de origem.

§5º. O disposto no § 2º deste artigo não se aplica aos profissionais que exerçam trabalho voluntário e aos que atuem em organização esportiva de pequeno porte, nos termos do § 6º do art. 61 desta Lei.”

Vejam que a lei delega para a entidade reguladora da modalidade os critérios objetivos quando define que os ex-atletas podem exercer a atividade de treinador esportivo, desde que comprovem ter exercido a atividade de atleta por três anos consecutivos ou por cinco anos alternados, devidamente comprovados pela respectiva organização que administra e regula a modalidade esportiva e que participem de curso de formação de treinadores, reconhecido pela respectiva organização que administra e regula a modalidade esportiva.

Portanto, caberia às entidades esportivas definirem critérios adequados quanto à comprovação da experiência dos ex-atletas, seja aferindo como foram construídos seus recordes de lutas (cartéis), seja avaliando se realmente estes últimos dominam os conhecimentos necessários para treinar novos atletas, o que teria de ser feito através de cursos de formação, como prevê a lei.

No caso do registro de lutas para efeitos de comprovação de experiência como atleta do pretenso treinador, pairam dúvidas acerca da forma como os atletas registram seus recordes, ou cartéis, de luta. Muitos são os órgãos de registro, embora poucos sejam de fato oficiais [2]. Fica difícil aferir se uma luta registrada realmente aconteceu em determinados casos.

Além disso, ainda há a questão do record padding [3] (preenchimento de recordes artificial), prática muito comum nos esportes de combate. Há um grande interesse de determinados promotores de que seus lutadores profissionais construam recordes que pareçam os mais impressionantes possíveis. Esses promotores colocam seus atletas contra adversários que não têm condições de competição apenas para manter o cartel do atleta positivo.

Ambas as práticas tornam bem mais fácil a tarefa de preenchimento de cartel do atleta para que este comprove ter exercido a atividade de atleta por três anos consecutivos ou por cinco anos alternados, alcançando então o requisito para ser reconhecido como treinador esportivo de luta.

Tal questão é delicada, tendo em vista que várias vitórias contra oponentes “fáceis” (ou vitórias em lutas que sequer existiram) não necessariamente colocariam um atleta em posição de ser considerado adequado para ser um treinador. Um treinador com essa experiência “rasa” pode resultar em um profissional incapaz de dar um treinamento adequado a um atleta.

Da mesma forma, não seria adequado a aceitação do registro de um treinador que só tem derrotas na carreira, ou que tem derrotas demais. Seria um profissional com uma carreira irregular, com mais derrotas que vitórias, um tipo adequado de treinador para ensinar um atleta?

Outra controvérsia paira sobre quais seriam as entidades reguladoras de cada modalidade nos esportes de combate para efeitos de certificação.

As artes marciais possuem uma infinidade de estilos dentro das mesmas modalidades, o que às vezes ocasiona a criação de uma federação de um outro estilo para uma mesma modalidade (muay thai tradicional e boxe tailandês, por exemplo).

Vale então trazer o exemplo de duas entidades reguladoras do caratê, a CBKT (Confederação Brasileira de Karate Tradicional) e a CBK (Confederação Brasileira de Karatê).

Ambas já foram basicamente a mesma federação, porém, nos anos 80, houve uma cisão no caratê estilo Shotokan mundial, sendo criadas duas federações de âmbito internacional: a W.U.K.O. (World Union Karate Organization) e a I.T.K.F. (International Traditional Karate Federation).

O COI (Comitê Olímpico Internacional) reconheceu as duas federações. No entanto, aqui no Brasil não se queria reconhecer duas federações para o que se considerava um mesmo esporte. Competia ao Conselho Nacional de Desportos (CND) [4] — um órgão criado durante o Estado Novo para organizar o esporte nacional — ainda em existência, intervir diretamente em uma associação esportiva, federação ou confederação quando fosse necessário.

O impasse surgido foi parar então nos tribunais. Paulo Valed Perry (1920-2015), o famoso jurista desportivo, conseguiu na Justiça estabelecer um paralelo entre o “carate WUKO” e o “caratê tradicional”, comparando-os com os distintos futebol de salão e futebol de campo, obtendo jurisprudência a favor de uma distinção entre os estilos [5].

Tal separação não ocorreu no somente no caratê, o que reforça a tese de que, sem uma entidade “oficial” de cada modalidade, fica difícil que a lei seja aplicada a contento, pois ela poderia garantir uma maior segurança para os atletas no sentido de que seus treinadores de fato vão lhes propiciar um treinamento adequado.

A se manter o modelo atual, bastaria o treinador ser certificado em qualquer entidade que se arrogue o direito de chamar de reguladora de estilo próprio para que qualquer benefício se perca se esta não tiver uma certificação confiável.

Se a ideia do legislador era oferecer mais segurança ao atleta, talvez fosse conveniente a previsão da criação, por uma nova lei, de um comitê que definisse quais as entidades reguladoras de esporte de combate profissional [6], unificando-se procedimentos de certificação de treinadores e de segurança do atleta, proibindo, por exemplo, que um atleta nocauteado em uma luta de boxe faça uma luta de MMA quando ainda estiver cumprindo suspensão médica aplicada pela entidade responsável pela regulação da luta de boxe.

Já passou da hora de entendermos que um olhar mais acurado em relação às lutas no Brasil é obrigatório, pois dispor da saúde dos atletas, lhes impondo treinamentos inadequados e lhes colocando para lutar de maneira controversa, são comportamentos comuns em diversas academias pelo Brasil.

A lei está nos dando uma chance de mudar o jogo.


[1] BRASIL. Lei Nº 14.597, de 14 de junho de 2023. Institui a Lei Geral do Esporte. Brasília, DF, 14 jun. 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14597.htm#:~:text=L14597&text=Institui%20a%20Lei%20Geral%20do%20Esporte.&text=Art.,Cultura%20de%20Paz%20no%20Esporte. Acesso em: 8 jan. 2024.

[2] No caso do MMA, embora o Sherdog e o Tapology sejam os mais populares em relação a aceitação das informações inseridas em sua plataforma, o site oficial, para efeito de confirmação de resultados de luta pela ABC é o MMA REGISTRY. No boxe, o registro oficial aceito pela ABC é feito através do site Boxrec. No caso do Boxrec, o registro só pode ser feito através das comissões filiadas à ABC ou das demais organizações internacionais filiadas à ABC. O Boxrec também registra as suspensões médicas, com o fito de ser resguardada a saúde do lutador. Os quatro principais órgãos sancionadores no boxe mundial são a Federação Internacional de Boxe (IBF), a Associação Mundial de Boxe (WBA), o Conselho Mundial de Boxe (WBC) e a Organização Mundial de Boxe (WBO). Cada uma dessas organizações designa um campeão mundial em cada divisão de peso e também classifica os competidores por divisão. O poder dessas organizações é derivado do fato de que, sem sua sanção oficial, uma luta não pode ser reconhecida como um “campeonato”, sendo assim menos atraente tanto para a televisão como para o público espectador. No Brasil, só o Conselho Nacional de Boxe (CNB) é ligado à estas entidades e pode fazer o registro no Boxrec.

[3] Para alguns atletas em começo de carreira geralmente são dadas lutas incompatíveis, nas quais estão níveis acima de seus adversários, isso para preencher seus registros com um número inchado na coluna de vitórias, seguido pelo que é mais enfatizado, um zero na coluna de derrotas.

[4] O Conselho Nacional de Desportos (CND) foi criado quando o país vivia um governo centralizador e procurava comandar as instituições de caráter geral, inclusive as esportivas, sendo uma estrutura com caráter monopolizante e centralizador, pois não permitia a livre organização e a livre iniciativa, atrelando, a partir de então, as organizações esportivas criadas e organizadas pela sociedade civil às determinações do poder central.

[5] SANCHES, Eros José. Ikken Hissatsu: as origens do karate-do. União da Vitória, PR: Kaygangue LTDA, 2021, p. 380.

[6] A exemplo do modelo da ABC (Association of Boxing Comissions) – entidade reguladora norte-americana criada para unir as comissões atléticas norte-americanas que regulam os esportes de combate nos EUA.

Autores

  • é advogado trabalhista e desportivo e diretor jurídico do Conselho Nacional de Boxe (CNB), da Confederação Brasileira de Kickboxing (CBKB), da World Association of Kickboxing Organizations Región Panamericana (Wako Panam) e da Confederação Brasileira de MMA Desportivo (CBMMad) .

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