Senso Incomum

A simplificação do Direito e a machadiana 'epistemologia do churrasco'

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11 de janeiro de 2024, 8h00

Nietzsche (entre outros, claro; ele apenas retorna ao conceito, para já fazer um trocadilho) falava sobre o eterno retorno. Como o Demônio nos Irmãos Karamazov. A existência articulada em termos de ciclos que se repetem.

Este artigo é, de novo, uma versão do eterno retorno de uma causa perdida. Minha luta contra a desinstitucionalização do saber jurídico. Lancei há poucos dias o livro Dicionário Senso Incomum, com críticas ao ensino e à dogmática jurídica tradicional; também lancei o livro O que é Fazer a Coisa Certa em Direito, esses dois pela Editora Dialética. Está no prelo o mais recente ainda, chamado Ensino Jurídico E(m) Crise – Uma Radiografia da graduação e da pós-graduação.

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Isso tem a ver com a minha luta contra o Geist (espírito) de um Direito que se perdeu no emaranhado de realismos jurídicos, ponderações de valores (sic), precedententalismos etc. Nesses livros procuro demonstrar as razões pelas quais chegamos a este estado de coisas.

Um dos sintomas pode ser visto nos diversos “Direitos” facilitados, resumidos, sem as partes “chatas”, mastigados que, de tanto facilitarem, tratam de qualquer coisa, menos Direito. E forma advogados, promotores, juízes, professores, defensores e tanta gente. “Avançamos” tanto que, depois do Direito Penal do Inimigo praticado pelo MP, já temos o Direito Tributário do Inimigo, em que o cidadão é visto pela advocacia pública como o grande inimigo.

Todos esses profissionais ministram aula a partir de um determinado conjunto de ideias (dogmática jurídica), fortemente contaminado pela jurisprudencialização, que, por sua vez, é igualmente influenciada pelo Direito que foi estudado nas faculdades e nos cursinhos. E com isso chegamos ao Direito facilitado, resumido, mastigado, que, de tão facilitado, resumido, mastigado, é qualquer coisa menos Direito. E formam profissionais do Direito, que dão aula… Eterno retorno.

Leiamos e procuremos entender a crítica. Nada tenho contra você, que quer passar num concurso e compra e lê o livro ou assiste a vídeos de macetes. Pelo contrário. Estou ao seu lado. Meu problema é com a estrutura que o obriga a isso.

O que quero dizer é que há um sistema que leva o lidador do Direito a tudo isso. São as demandas do “sistema”. Se você tem de encurtar petições, usar resumos (ninguém lê mais de cinco ou dez páginas pelo excesso de demanda), e tem de atender ao crescimento da IA com robôs que derrubam seus recursos, é evidente que, em uma espécie de adaptação darwiniana, os lidadores do Direito elaboram mecanismos de defesa. E entramos em um vale tudo anti-intelectualista. É tempo de murici e cada tem de cuidar de si. Sob pena de ser engolido. Entendo isso perfeitamente.

Por que falo disso? Porque criei o conceito de (anti)negacionismo epistêmico, que, ao lado do (anti)negacionismo histórico, pode ajudar a comunidade jurídica a enfrentar a outra parte que nega conceitos consolidados da ciência jurídica. E nega a complexidade do Direito. Negacionismo epistêmico ocorre — também — quando alguém escreve livro jurídico simplificando e explicando erradamente. Trata-se de um terraplanismo jurídico (ver verbete no Dicionário Senso Incomum). O obscurantismo, anti-intelectualista por definição, que ignora (e, ignorando, destrói) os fundamentos de uma genuína possibilidade de epistemologia [1] no Direito, de uma ciência, de uma tradição por meio da qual proposições jurídicas podem ser verdadeiras ou falsas.

Assim, por exemplo, quem diz que Kelsen separou o Direito da moral, preconizando uma aplicação da “letra fria” da lei, pratica negacionismo epistêmico. Esse é um bom exemplo. Por todos.

Isso me leva a uma pergunta: você se operaria com um médico que estudou cirurgia cardíaca com livros (e professores) que tinham como texto base algo como “cirurgia mastigada, facilitada, seja foda em cárdio, cirurgia plástica top” ou quejandos? Mas no Direito pode? Essa é a questão. Pode tudo na área jurídica? Pode dizer que garantismo é marxismo? Ou isso é um bom exemplo de negacionismo epistêmico? Sim, é. E se alguém achar que estou errado, processe-me. Como no filme Negação.

Uma das formas que alimentam o negacionismo epistêmico é a ausência de filtro — de editoras e de faculdades, e de qualquer filtro crítico ou institucional que o valha — que separe, no plano da escrita, o joio do trigo e contenha essa epidemia ou pandemia.

Ou seja, assim como qualquer pessoa fala sobre o mundo a partir de seu Facebook, Whats ou Instagram, sem qualquer filtro minimamente institucional — filtro, só nas fotos que mostram toda a felicidade dos digital influencers —,[2] assim também no Direito escreve-se qualquer coisa. E é possível negar qualquer conquista epistêmica.

Atualmente reinicia uma nova febre pelas simplificações. Agora vem do próprio Judiciário. Querem simplificar desenhando a sentença ou acordão. Isso dá a manchete em grande jornal. Querem fazer algo tipo “isomorfia”, imitando a linguagem da TV (o trigo vai subir de preço, diz repórter…no meio de um trigal!) Eis aí um bom teste para o homem simplificador ou homo zapiens. No Google, é rapidinho para saber o que é isomorfia… Quero ver é ler o Tratactus (aqui, o estagiário levanta a placa, com os dizeres “o livro do Wittgenstein”. Ver, ler, Tractatus. Como o jornalista que explica proporção em campos de futebol num… campo de futebol).

Nos anos 90 eu fazia palestras e brincava com os exemplos de Caio e Tício. E Mévio. Por exemplo: Caio quer matar Tício. Com veneno. Mévio também. Com veneno. Cada um usa só meia dose… Minha pergunta, de então: por que dois incompetentes errariam ao mesmo tempo? Enfim, era divertido. Nunca imaginei que chegaríamos a um ponto em que o YouTube está repleto de gente cantando ECA em funk ou conceito de estupro em reggae. Isso era inimaginável. Agora é corriqueiro.

Parece bem plausível a explicação de MacIntyre acerca do Know Nothing (Saber Nenhum), que triunfou na onda do anti-intelectualismo – que é igual ao negacionismo epistemológico.

De todo modo, não é relevante falar do livro X ou do livro Y. São apenas símbolos de um “espírito do tempo”, de um imaginário do atalho. Fico imaginado alguém desenhando uma sentença condenatória com figura de grades ou algemas. Em vez de o advogado explicar para o cliente, o Judiciário explica direto, desenhando? Ou entendi mal?

Lembro, a propósito, da Teoria do Medalhão, de Machado, na qual o pai orienta seu filho Janjão no aniversário de maioridade: em vez de escrever um tratado sobre carneiros, compre um, asse e convide os amigos. E, sobretudo, não frequente bibliotecas. Machado inventou a Epistemologia do Churrasco!

Então, o que é importante? Simples. Essas coisas acontecem e se multiplicam por culpa dos professores de Direito. Jabuti não nasce em árvore. O paciente zero da pandemia está ali. Resultado? Coisas como uma denúncia contra um patuleu por ter furtado… dois baldes de água!

Outra culpa pertence à doutrina, que não coloca limites (ou constrange). E aqui me obrigo a registrar, mais uma vez, a denúncia que Bernd Rüthers faz, no livro Uma interpretação sem limites (ou não constrangida, como prefiro), mostrando que a falta de crítica doutrinária, por exemplo, foi uma das causas da ascensão do nazismo.

Eis a questão. No Brasil, fomos deixando, deixando e achando tudo normal. A doutrina jurídica foi conivente com o primeiro resumidinho; depois veio o resumo do resumo; depois, o mastigado… e o boi se foi com a corda. E a boiada passa.

Agora parece ser tarde. Já tem muita gente achando que Ferrajoli é marxista! O que equivale a dizer que a Terra é plana. Não? Processe-me. Como no filme Negação. Vi esse filme (de produção mediana). Um sujeito nega o holocausto. Uma professora diz que ele é um charlatão. Ele a processa. Sim, ele a processa.  Ela vai a julgamento. Não vou dar spoiler.

Sou pela sofisticação. Não dá para dizer coisas complexas de forma simples. Einstein explicou sua teoria dez vezes para uma senhora, simplificando a cada vez. Ao final, a senhora entendeu…, mas já não era a teoria. Era qualquer coisa. Por isso, sou do tempo dos livros. Complexos.

Para registro: no meu cotidiano, eu ainda uso papel e caneta. Escrevo à mão. Faço rascunhos. Dizem por aí nas redes que isso é amadorismo. Que o bom é usar tecnologia. Pode ser. Sou um amador jurássico. Ou um amador jurássico. E sei que tecnologia, por melhor que seja, não traz sofisticação. E não encurta orelhas.  A menos que se delegue para o ChatGPT.  Esse robô escreve cada coisa…


[1] Virou moda falar em epistemologia na área jurídica. Já estamos precisando de uma epistemologia para falar da epistemologia-que-não-é-epistemologia.

[2] Quando o sujeito não dá certo em qualquer profissão ou função, torna-se influencer. Incrível. Calvos vendendo remédio para nascer cabelo.

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