Opinião

Inadequação do protesto como meio de execução da pena de multa

Autor

  • Diego de Azevedo Simão

    é autor do livro "Lei de Execução Penal comentada e anotada" publicado pela editora D'Plácido. Defensor público em Rondônia. Mestre em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça pela Unir. Especialista em direito processual penal. Especialista em Direitos Humanos. Especialista em Direito de Execução Penal. Membro do Ibep (Instituto Brasileiro de Execução Penal). Membro do IDPR (Instituto de Direito Processual de Rondônia). Membro do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).

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10 de janeiro de 2024, 18h33

No ano de 1996, o artigo 51 do Código Penal foi alterado pela Lei 9.268/1996. Essa alteração, ao considerar a pena de multa como “dívida de valor aplicáveis as normas relativas à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição”, teve por objetivo suprimir a possibilidade da conversão da pena de multa em prisão.

Conforme a exposição de motivos da referida lei: “4. A revogação dos §§ 1º e 2º do art. 51 do Código Penal, implica na supressão do instituto da conversão da pena de multa em prisão. São conhecidos os argumentos que se renovam de tempos em tempos, sustentando a inconstitucionalidade destas hipóteses de transformação da pena pecuniária em detenção […]” [1].

Dessa maneira, a alteração promovida pela Lei 9.268/1996, ao considerar a pena de multa como dívida de valor, não alterou sua natureza jurídica de sanção penal. Nesse sentido, na ADI nº 3.150 o STF decidiu que “A Lei no 9.268/1996, ao considerar a multa penal como dívida de valor, não retirou dela o caráter de sanção criminal, que lhe é inerente por força do art. 5º, XLVI, c, da Constituição Federal” [2].

Em 2019, o artigo 51 do CP foi novamente alterado, dessa vez pela Lei nº 13.694/2019, passando a prever expressamente a competência do juízo da execução penal para sua execução: “Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será executada perante o juiz da execução penal e será considerada dívida de valor, aplicáveis as normas relativas à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição”.

Dessa maneira, a pena de multa deve ser executada por iniciativa do Ministério Público, perante o juízo de execução penal. Trata-se, portanto, do exercício do poder de punir do Estado que deve ser promovido pelo legitimado competente, o Ministério Público, perante o juízo competente, por meio do devido processo de execução penal, com a observância das regras previstas no artigo 51, do CP, e nos artigos 164 a 169 da Lei de Execução Penal.

Atualmente a pena de multa tem sido executada por meio de protesto de títulos, inclusive em alguns casos com dispensa da execução penal (dispensa do processo de execução!) [3], com fundamento no artigo 515 do CPC, que elenca dentre os títulos executivos judiciais a sentença penal condenatória transitada em julgado, e no artigo 517 do CPC, que permite a protesto de decisão transitada em julgado referente a obrigação de pagar quantia certa.

Ocorre que, ao considerar a sentença penal condenatória transitada em julgado como título executivo judicial, o CPC tem por objetivo permitir a execução dos efeitos civis da decisão penal condenatória, de modo a não exigir da vítima, seu representante legal ou herdeiros que ingresse com novo processo de conhecimento no juízo cível, uma vez que o fato e a autoria já foram comprovados no processo criminal. Tanto é assim, que o artigo 63 do CPP permite que, transitada a sentença penal condenatória, o ofendido, seu representante ou seus herdeiros, valendo-se desse título executivo judicial (artigo 515, IV, CPC), poderão promover a execução no juízo cível para efeito de reparação do dano.

Essa execução, proposta no juízo cível, por se tratar de obrigação de pagar quantia certa – já fixada nos termos do artigo 387, § 4º, do CPP ou devidamente liquidada (artigo 63, § único, CPP), admite a aplicação do artigo 517 do CPC, com o consequente protesto.

Entretanto, no que se refere à pena de multa, a norma processual civil não pode ter incidência, sobretudo porque a pena de multa possui natureza jurídica de sanção penal e não se caracteriza como obrigação cível de pagar quantia certa, tal qual ocorre com os efeitos civis da decisão penal condenatória, que pode resultar em obrigação de pagar quantia certa em favor da vítima ou herdeiros a título de reparação do dano causado pelo crime.

O tratamento da pena de multa como obrigação de pagar quantia certa para fins da execução da pena de multa permite que a execução penal, atividade que é monopólio do Estado, seja transferida para terceiro (tabelião) e executada de forma extrajudicial, por meio de procedimento não previsto em lei para a execução penal, resultando em excesso de execução penal ao impor ao condenado o pagamento de custas cartorárias e da multa prevista no artigo 523 do CPC, e em obstáculo a harmônica integração social da pessoa hipossuficiente que, além do estigma decorrente da condenação criminal, experimentará como pena acessória um severo abalo de crédito, inviabilizando a realização de atos negociais necessários para o regular desenvolvimento da vida civil.

Além da inadequação da utilização do protesto de títulos para a execução da pena de multa, é necessário pensar sobre uma ampla reforma no que diz respeito à pena de multa. Se em matéria de criminalidade econômica a pena de multa exerce um papel fundamental, nos crimes de subsistência (conforme defino por Zaffaroni [4]), praticados por pessoas economicamente vulneráveis, a pena de multa, em grande parte dos casos, é exacerbada e resulta num obstáculo para a harmônica integração social da pessoa condenada que não possui condições de quitar a pena.

Afinal, conforme assentou o ministro Luís Roberto Barroso, por ocasião do julgamento da ADI 3.150, após constatar que “o sistema punitivo no Brasil encontra-se desarrumado”, […] “Nas circunstâncias brasileiras, o direito penal deve ser moderado, mas sério. Moderado significa evitar a expansão desmedida do seu alcance, seja pelo excesso de tipificações, seja pela exacerbação desproporcional de penas. Sério significa que sua aplicação deve ser efetiva, de modo a desempenhar o papel dissuasório da criminalidade, que é da sua essência” [5].

 


[1] Diário do Congresso Nacional, Ano L, n. 129, 24 de agosto de 1995. Brasília-DF.

[2] STF, ADI n. 3.150, Rel. Min. Marco Aurélio. Redator do Acórdão Min. Luís Roberto Barroso, j. 13/12/2018.

[3] CNMP, Recomendação n. 99, de 13 de junho de 2023.

[4] “No caso da população prisional provisória [que ainda não recebeu sentença], quase 70% é por crimes de subsistência. Há mais de 150 anos o entendimento internacional é que essas penas são reprodutoras de crimes” Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-06/zaffaroni-prisoes-superlotadas-comprometem-seguranca-publica/

[5] STF, ADI n. 3.150, Rel. Min. Marco Aurélio. Redator do Acórdão Min. Luís Roberto Barroso, j. 13/12/2018.

Autores

  • é autor do livro Lei de Execução Penal comentada e anotada (editora D'Plácido), mestre em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça pela Universidade Federal de Rondônia (Unir), defensor público no estado de Rondônia, especialista em Direito Processual Penal, em Direitos Humanos e em Direito de Execução Penal, membro do Instituto Brasileiro de Execução Penal (Ibep), do Instituto de Direito Processual de Rondônia (IDPR) e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

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