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Precedentes e precedentalismo: quando o tribunal vai contra si mesmo!

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4 de janeiro de 2024, 8h00

A celeuma resume-se ao seguinte:

1) O Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que a data-base para obtenção de novos benefícios no âmbito da execução penal deve ser contada da data da primeira prisão. Desse modo, a unificação das penas (artigo 111, LEP) ou a superveniência de condenação criminal transitada em julgado (relacionada com a prisão processual) não possui o condão de alterar a data-base, em virtude da ausência de previsão legal. Esse é o teor, pois, do Tema 1.006.

2) Em um cenário hipotético: imaginemos que um indivíduo é preso em flagrante pela prática de um furto qualificado, essa prisão é convertida em preventiva e, ao final, o réu é condenado a determinada pena sem se operar, no juízo de conhecimento, a detração. Sobrevindo o trânsito em julgado e iniciada a execução penal, o juiz concede a detração do período em que o apenado esteve preso cautelarmente. No exemplo, a data-base correta, de acordo com o Tema 1.006, é a data da prisão em flagrante, conquanto inexista outros critérios modificativos, como a falta grave. Portanto, aquele período em que o apenado esteve segregado cautelarmente, contará como pena efetivamente cumprida. Ou seja, todo o período em que o sujeito esteve preso será computado como reclusão em regime fechado o que, inclusive matematicamente, se mostra como uma interpretação pro reo. Parece elementar, pois não?

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3) O problema, contudo, inicia a partir da interpretação conferida ao Tema 1.006 — veja-se que até mesmo os temas têm problemas de hermenêutica – que nada mais faz do que escancarar a nossa ausência de uma cultura (ou sistema) de precedentes. Já falei especialmente nisso na coluna do dia 7.12.2023 (ler aqui). No caso, o STJ, por meio de decisões monocráticas de seus ministros (HC 719763 e HC n.º 838012) ou mesmo colegiadas (AgRg. no AResp nº 1895580), divergem em um aspecto muito relevante:

  • de um lado, defende-se que a estipulação da data-base como a da primeira prisão unicamente se admitiria em caso de prisão ininterrupta, sob pena — e até agora busco compreender o argumento — de se computar como pena efetivamente cumprida o período em que o apenado esteve solto;

  • doutro lado, e de forma muito mais adequada, há aqueles que sustentam ser absolutamente irrelevante ter sido a prisão ininterrupta ou não, uma vez que basta calcular a progressão de regime da seguinte maneira: conta-se a data da primeira prisão como início do cumprimento, suspende-se em razão da soltura e reinicia-se a partir da superveniência do trânsito em julgado da condenação e consequente início da execução penal.

4) Em uma rápida consulta à jurisprudência do STJ, é possível constatar que essa segunda hipótese é minoritária, de modo que a primeira acaba prevalecendo na maioria dos casos. Essa corrente majoritária, contudo, é ilógica e é, sobretudo, injusta. Explico: se o indivíduo fica recluso preventivamente, o que somente ocorre por intermédio de um regime fechado, qual seria a fundamentação jurídica concreta que legitimaria a diluição desse período ao longo de toda a execução penal? Serei mais claro: sendo ininterrupta ou não, o fato é que o apenado ficou preso em regime fechado durante a segregação cautelar. Ele fora solto. Quando retorna para cumprir a pena, aquele período que ficou no cárcere será descontado, progressiva e proporcionalmente, de toda a pena imposta. Isto é, suprimindo do regime semiaberto e aberto parte daquele tempo que passou na cadeia. Em regime fechado, pois. A justificativa para adotar um sentido contrário a esse não poderia ser pior: ao se calcular a data-base quando da primeira prisão, com a superveniente soltura, contar-se-ia o período em que o apenado esteve em liberdade como pena efetivamente cumprida. Ora, não é possível usar uma matemática simples? Ou seja, proceder com uma singela suspensão da pena, isso para que o óbvio ocorra: que o sujeito que esteve preso preventivamente tenha detraído de sua pena tempo de regime fechado.

5) Até esse ponto, convenhamos que esta é uma das tantas decisões judiciais que não dialogam com o texto constitucional. Agora, o problema se agrava quando no âmbito do mesmo tribunal, da mesma turma e do mesmo gabinete existam duas decisões que estabelecem critérios diversos para casos idênticos. Eis o que ocorreu: no dia 28 de setembro deste ano, a ministra Laurita Vaz lançou uma decisão monocrática denegando um habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul (HC nº 838.012/MS), cujo contexto era o seguinte:

“Consta dos autos que a Paciente foi presa preventivamente em 28/07/2019 pela prática do crime de tráfico de drogas, permanecendo segregada provisoriamente até 25/09/2019, quando lhe foi concedido o benefício da liberdade provisória. Sobreveio sentença condenatória, iniciando-se o cumprimento da pena no dia 15/02/2022, o qual foi considerado no cálculo de pena como a data-base para a progressão de regime.”

6) A ministra, a despeito do argumento da defensoria pública, denegou a ordem reproduzindo a decisão do Juízo de Execução Penal, escrevendo um parágrafo reafirmando a data da última prisão como a data-base e anexando várias ementas que conformam essa tese. Até aí, como disse antes, tudo bem. É nosso papel como jurista exercer constrangimentos epistemológicos em relação a decisões desse gênero – e tenho certeza de que os Tribunais compreendem perfeitamente esse papel. Isto para dizer que, porém, a mesma Min. Laurita Vaz, vinte dias depois, em 18 de outubro de 2023, enfrentou e decidiu monocraticamente um caso muito parecido, se não idêntico. Para deixar isso claro, trata-se do HC n.º 779.039 impetrado, novamente, pela mesma Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, com a seguinte pretensão:

“Consta dos autos que o Paciente foi preso em flagrante em 04/04/2020, sendo convertida em prisão preventiva. Posteriormente, em 13/08/2020, foi concedida liberdade provisória. Ao término do processo, foi condenado à pena de 8 (oito) anos de reclusão e preso definitivamente em 02/03/2022. (…) Requer, assim, a retificação dos cálculos de pena para constar como data-base para a progressão de regime o marco de 04/04/2020, com suspensão da contagem entre 13/08/2020 e 02/03/2022.”

7) Nada obstante ser quase o mesmo cenário fático, a decisão foi outra:

“Nesse contexto, verifico que o Paciente permaneceu em liberdade provisória do dia 13/08/2020 até o trânsito em julgado da sentença condenatória na Ação Penal, cuja pena foi de 8 (oito) anos de reclusão, tendo o mandado de prisão sido cumprido em 02/03/2022. Sendo assim, considerando que o período de prisão cautelar – compreendido entre o dia 04/04/2020 a 13/08/2020 – foi detraído na guia de execução como pena efetivamente cumprida, tenho que o termo inicial para a progressão de regime deve ser a data da prisão em flagrante o Paciente. Registro, por oportuno, que, se aplicado o art. 387, § 2. °, do CPP na sentença, não pode o aludido tempo de prisão provisória ser computado na fase da execução penal, para cálculo de benefícios sobre a pena abatida. Ante o exposto, CONCEDO a ordem de habeas corpus para que, realizada a detração pelo Juízo da Execução Penal, a data da prisão provisória do Apenado (04/04/2020) seja considerada como termo inicial para a progressão de regime e demais benefícios, cujas frações devem incidir sobre o total da pena aplicada ao crime, observado o regime fechado fixado na sentença.”

Em síntese, a questão que se põe é: de que modo defender um pretenso sistema de precedentes que cria subterfúgios para não aplicar a jurisprudência uniformizada? Isso se em um mesmo gabinete existem divergências quanto a um tema que deveria ser pacificado na Corte.

Quer dizer, o Superior Tribunal de Justiça decide sob o regime de recursos repetitivos que a data-base para obtenção de benefícios é aquela da primeira prisão. O mesmo tribunal, contudo, ao interpretar a interpretação com pretensão de uniformização, decide contra o apenado, impondo-lhe a diluição do período em que esteve preso ao longo de toda a execução da pena, inclusive sobre os regimes menos gravosos. Isso, evidentemente, a depender do dia e da sorte do paciente na distribuição do habeas corpus, poderá ser diferente e, daí sim, encontrar uma resposta judicial adequada.

E os Tribunais estaduais? Todos os dias vemos decisões que contrariam “precedentes” do mesmo julgador proferido dias antes e do mesmo órgão colegiado. E o problema maior: como recorrer disso, se o Tribunal Maior diz que os incisos do parágrafo primeiro do artigo 489 do CPC (315 CPP) só se aplicam aos precedentes qualificados? E os outros precedentes? Como ficam?

De novo: o que é isto — o precedente? Como falei na outra coluna, o problema está no ponto fulcral do realismo jurídico — o ceticismo. Para o realismo jurídico, textos jurídicos são, além de indeterminados, apenas ficções. Daí decorre um problema auto implosivo: precedentes (julgados, teses, súmulas etc.) também são textos (essa auto implosão é bem denunciada em bela nota de rodapé de José Luis Marti citado na coluna do dia 7 último, a qual remeto o leitor uma vez mais).

Logo, está explicado por que os precedentes não são seguidos no Brasil. São considerados apenas textos. E textos, na concepção realista, são ficções. Não fica difícil de entender o imbróglio. Ou fica?

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