Opinião

Súmula 7 do STJ, jurisprudência defensiva e seus custos

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20 de fevereiro de 2024, 20h56

Há tempos a Súmula 7 do STJ constitui notável óbice ao recebimento de recursos especiais, a ponto de ter se tornado sinônimo de barreira intransponível no anedotário de juristas.

O gracejo, mais que simples resignação de advogados, é exteriorização do incômodo causado pela falta de critérios do Superior Tribunal de Justiça na aplicação do enunciado de súmula, criadora de uma “jurisprudência defensiva” que em nada contribui para o avanço das práticas judiciárias, nem para a estabilização e uniformização da jurisprudência, tampouco na redução de processos.

Abaixo, pretendo demonstrar com o exemplo do Agravo Regimental no Recurso Especial 1.870.506/RS, como o STJ tem sido pouco técnico na aplicação da Súmula 7, violando inclusive precedentes que deram origem ao enunciado, e como essa falta de técnica tem efeitos deletérios na prática jurídica brasileira e nos custos econômico-sociais do Judiciário.

O caso
Iniciemos pelo caso, por demais simples: três homens foram acusados de fazer a extração ilegal de 5m³ de areia no arroio Bagé, no Rio Grande do Sul, para isso utilizando-se de um caminhão. Por isso, lhe foram imputados os delitos tipificados no artigo 55 da Lei 9.605/1998 e no artigo 2º da Lei 8.176/1991 [1].

A denúncia foi rejeitada em primeira instância, entendendo-se a ação atípica pelo princípio da insignificância, “seja pelo reduzido valor patrimonial a ser usurpado da União, seja pelo mínimo dano ambiental que a retirada de 5 (cinco) m³ de areia poderia causar”, como fundamentado pelo Juízo de primeira instância.

Interposto recurso, o TRF-4 reverteu a decisão e determinou o recebimento da denúncia. Na fundamentação, para afastar a aplicação do princípio da insignificância, o tribunal destacou “(a) a quantidade de areia extraída — 5m³ —, que se encontrava depositada em caminhão, inclusive, quando do flagrante (evento 1, OUT2, idem) — não era, portanto, quantidade inexpressiva —, (b) que os arroios da cidade de Bagé-RS sofrem consideravelmente efeitos ambientais pela extração irregular do minério sub judice, é dizer, há maior reprovabilidade na conduta por agravar os danos ambientais já pré-existentes, e (c) a jurisprudência consolidada desta Corte, que julgou casos símiles a este, perpetrados no mesmo Município no qual o delito sub examine teria sido cometido”.

Foi então interposto recurso especial, ao qual negou-se conhecimento com base na Súmula 7 do STJ, pois “entender pela inexistência de lesão ao bem jurídico tutelado, como requer a defesa, demandaria o reexame do contexto-fático probatório dos autos, providência inviável em recurso especial, diante do óbice contido na Súmula n. 7 do STJ”. Foi interposto o agravo regimental para conhecimento do recurso, ao qual finalmente se negou provimento.

Perspectiva técnica: o equívoco na aplicação da Súmula 7
A primeira perspectiva de análise, de natureza eminentemente técnica, concerne à equivocada aplicação da Súmula 7 do STJ, cujo enunciado vale relembrar: “a pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”.

Corretíssimo o texto. De fato, o recurso especial não pode se tornar uma segunda apelação, de acordo com o artigo 105, III, da CR/88. Sua amplitude temática não permite a reavaliação de provas, a reapreciação do conjunto probatório para que um fato seja tomado por provado ou não provado.

Nesse sentido, o voto do ministro Barros Monteiro no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 499/SP do STJ, um dos precedentes que deram origem ao enunciado da Súmula 7, é instrutivo por traçar um paralelo entre o recurso extraordinário no STF e o recurso especial no STJ e as limitações de ambos quanto ao reexame de provas:

O recurso especial participa da mesma natureza do recurso extraordinário, pelo que se afiguram pertinentes as palavras do saudoso Ministro Rodrigues de Alckmin quando do julgamento RE n. 84.699: ‘Não cabe ao STF sob o color de ‘valorar a prova’, reapreciá-la em seu poder de convicção, no caso, para ter como provado o que a instância local disse não estar. Seria, induvidosamente, transformar o recurso extraordinário em uma segunda apelação, para apreciação de provas (que se consideram mal apreciadas) quanto a fatos da causa”[2].

O voto do ministro Barros Monteiro, conciso, mas extremamente bem fundamentado, trouxe ainda a lição de José Afonso da Silva a partir de voto do ministro Orozimbo Nonato no STF, segundo o qual “o recurso extraordinário realmente não é o apelo próprio para a revisão de provas, quando se trate de verificar a repercussão da prova no ânimo do juiz, a sua intensidade, a sua força, na espécie” [3].

Ocorre que a atual interpretação que o STJ confere à Súmula 7 é completamente divergente do fundamento constitucional, da redação do próprio enunciado e da ratio decidendi do precedente acima transcrito, de maneira que ela vem sendo aplicada a casos aos quais definitivamente não deveria constituir óbice ao conhecimento de recursos.

Nesse momento, voltemos ao caso paradigma deste artigo: como visto da síntese acima, no AgRg no REsp 1.870.506/RS, não há qualquer discussão sobre as provas e sua valoração. A defesa, em momento algum, pede que seja considerada provada ou não provada alguma circunstância fática [4].

Não se debate se os réus estavam ou não envolvidos, se foi comprovada a retirada de 5m³ de areia, se o juiz deu mais peso do que deveria a uma ou outra prova. Nada disso é colocado em pauta no recurso.

A premissa fática foi estabelecida em termos claros, e nela concordavam a defesa, o MPF, o juízo de primeira instância e o TRF-4: foram extraídos 5m³ de areia do arroio Bagé, no Rio Grande do Sul, por três acusados, que utilizaram um caminhão.

A partir dessa premissa fática estabelecida e não contestada, a questão jurídica que se colocou ao STJ é direta: a extração de 5m³ de areia do arroio Bagé, por três acusados, em um caminhão, constitui conduta atípica em razão do princípio da insignificância e, por consequência, implica na rejeição da denúncia?

Para responder a essa questão, não é necessário reexame de provas. É necessário, sim, dar interpretação ao artigo 55 da Lei 9.605/1998, ao artigo 2º da Lei 8.176/1991, acolhendo ou afastando o princípio da insignificância no caso, e decidindo pela rejeição ou recebimento da denúncia com base no artigo 395 do Código de Processo Penal.

Caberia ao STJ dar interpretação adequada a essa legislação federal citada, uniformizando a aplicação do princípio da insignificância [5] e esclarecendo seus requisitos em relação aos tipos penais.

Observe-se que, a despeito da simplicidade dos fatos estabelecidos, o caso é riquíssimo em nuances e poderia ser utilizado para discutir muitos pontos quanto à aplicabilidade do princípio da insignificância em crimes ambientais.

Por um lado, a quantidade de areia parece ser pequena e de valor monetário baixo (uma pesquisa rápida na internet permite encontrar 5m³ de areia a cerca de R$ 500), apontando para a insignificância da conduta.

Por outro lado, a ocorrência de um problema ambiental específico no local, decorrente justamente da retirada clandestina de areia, e a existência de projetos e programas públicos de recuperação da área parecem apontar para a relevância penal da conduta.

Tudo isso fica ainda mais complexo quando considerada a cumulatividade em casos de delitos ambientais, além da resiliência ou fragilidade dos ecossistemas, que podem tornar a lesão ambiental mais ou menos acentuada conforme o local, a conduta e contexto.

Ante tantas variáveis, fica, afinal, a questão: o que deve prevalecer, a insignificância ou a relevância penal da conduta? A pequena quantidade de areia autoriza desde sempre a insignificância ou são necessários exames periciais e outras provas para contextualizar o caso?

Particularmente, não sei responder a essas e outras questões, o que é de todo irrelevante. O importante é que tampouco se sabe qual a resposta que o STJ dá ao problema, uma vez que o recurso não foi conhecido.

Perspectiva político-institucional: os custos da jurisprudência defensiva
E aqui se chega à segunda perspectiva de análise do caso, a político-institucional: quando se omite de dar respostas concretas em casos assim, optando pela “jurisprudência defensiva”, o STJ vai contra sua própria missão institucional, gera insegurança jurídica, aumenta custos e, de maneira contra-intuitiva, acaba gerando mais recursos e processos.

O STJ viola sua missão institucional na medida em que, sendo “a corte responsável por uniformizar a interpretação da lei federal em todo o Brasil” e dar “a solução definitiva dos casos civis e criminais que não envolvam matéria constitucional nem a justiça especializada” [6], o Tribunal Superior deixa justamente de uniformizar a interpretação da lei federal e solucionar definitiva o caso.

Isso gera insegurança jurídica porque, omitindo-se em julgar o caso, o STJ nega à sociedade e à comunidade jurídica os parâmetros de aplicação do princípio da insignificância em matéria ambiental, permitindo a convivência de interpretações divergentes entre os vários tribunais da federação.

Uma questão não pacificada na jurisprudência gera custos para o Estado, para os jurisdicionados e para a sociedade de forma geral.

Para o Estado, na medida em que estimula a litigância e o aumento do número de processos, traz a reboque os custos de uma máquina judiciária mais inchada, pressionada, morosa e ineficiente.

Na falta de parâmetros claros, opta-se por litigar, afinal, sempre será possível contar com um entendimento divergente em uma questão jurídica não uniformizada.

Para os jurisdicionados, os custos decorrem da recomendação de sempre se recorrer. Explica-se: se um cliente questiona ao advogado sobre a chance de sucesso de um recurso e é impossível ao profissional responder de forma clara, porque não existem parâmetros uniformes para a questão jurídica.

Então, na dúvida, que se recorra. E isso aumenta gastos com honorários, custas processuais, diligências, sustentações orais, deslocamentos a tribunais, etc.

Para a sociedade, os custos vêm da própria insegurança em torno das questões jurídicas mal resolvidas e não uniformizadas: não saber os limites de deveres e direitos impede uma alocação mais eficiente de recursos por parte de todos os atores sociais, que precisam se precaver de incontáveis e impensáveis formas de responsabilização jurídica, seja ela penal, administrativa, contratual ou civil, muitas vezes por discussões jurídicas que já poderiam ter sido resolvidas de maneira exauriente e satisfatória.

Por fim, a jurisprudência defensiva leva ao revés do que a motiva: em vez de gerar menos, gera mais recursos e processos em todas as instâncias.

Quando o STJ não uniformiza a jurisprudência, perde-se uma referência de entendimento jurídico que deveria ser parâmetro para calcular a possibilidade de êxito de uma demanda judicial.

Troca-se uma referência estabilizadora do STJ pela multitude de referências de 27 tribunais de justiça e seis tribunais regionais federais com todos seus órgãos fracionários, além de milhares de juízas e juízes de primeira instância pelo país afora.

Ante tamanha profusão de entendimentos, ter sucesso em uma ação judicial ou recurso vira uma questão de estatística, verdadeiramente lotérica, e como o único jeito de ganhar na loteria é jogando, na dúvida, que se proponha a ação, que se interponha o recurso.

Conclusão
O caso dado é apenas um exemplo. Com o volume de casos julgados nas seis turmas do STJ, anualmente deve haver centenas, talvez milhares de outros casos que não são conhecidos em razão da errônea aplicação da Súmula 7 do STJ, e que poderiam servir de paradigma para a discussão aprofundada de questões importantíssimas nas mais diversas áreas do direito, como a responsabilidade civil, contratual, administrativa e penal, para ficar apenas em algumas.

Nos últimos anos, muitas medidas foram tomadas para diminuir o número de processos nos tribunais superiores, geralmente atacando o problema a partir da restrição da interposição de ações e recursos. Não se subestima nem afasta a importância de melhorar os mecanismos para evitar condutas protelatórias e a litigância de má-fé.

Porém, é preciso perceber que essas medidas, sozinhas, têm ínfimas chances de resolver o problema do excesso de processos nos tribunais, que continuam sobrecarregados.

O mesmo ocorre com a artificial tentativa de criar de precedentes ditos vinculantes a partir da lei. A força vinculativa e constrangimento de um precedente não virão da imposição legal, mas da força argumentativa de uma decisão bem construída, refletida e que de fato sirva para a solução do caso concreto, dando parâmetros claros para os aplicadores do direito nos mais diversos níveis e ramos de atuação.

Trabalhar nesses moldes exige uma mudança cultural drástica de todos os operadores do direito, mas que precisa ser realizada e que pode ser capitaneada pelo STJ e pelo STF.

Buscar a construção de decisões mais objetivas, claras, analíticas e bem fundamentadas na resolução de problemas jurídicos é um imperativo, e iniciar pela revisão da aplicação da Súmula 7 do STJ pode ser um bom começo.

Ou talvez cairemos todos em outro tipo de resignação, dessa vez pelo erro clássico de adotarmos as mesmas práticas de sempre, esperando resultados diferentes que nunca virão.

 


[1] AgRg no REsp n. 1.870.506/RS, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 11/10/2022, DJe de 3/11/2022. Todos os trechos referentes ao caso foram transcritos do acórdão, disponível no link: < https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202000851318&dt_publicacao=03/11/2022 >.

[2] AgRg no Ag n. 499/SP, relator Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, julgado em 24/10/1989, DJ de 20/11/1989, p. 17295. Voto do relator, Ministro Barros Monteiro.

[3] AgRg no Ag n. 499/SP, relator Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, julgado em 24/10/1989, DJ de 20/11/1989, p. 17295. Voto do relator, Ministro Barros Monteiro.

[4] Aliás, registre-se que o processo originário sequer havia chego à instrução, pois a decisão em primeira instância havia rejeitado a denúncia pela atipicidade da conduta. A rigor, portanto, sequer havia prova no processo para que fossem discutidas.

[5] Atualmente, o princípio da insignificância e seus 4 parâmetros de aplicação definidos pelo STF tornaram-se um grande vazio de sentido, especialmente nos crimes ambientais. A mínima ofensividade da conduta, a inexistência de periculosidade social do ato, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão provocada se tornaram expressões sem conteúdo definido. Os próprios Tribunais Superiores não se esforçam para fazê-las mais claras e objetivas, aplicando-as para declarar ou afastar a insignificância de maneira pouco criteriosa. Todavia, o desenvolvimento da questão demanda espaço e não é compatível com o tamanho do presente artigo.

[6] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Disponível em: < https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Institucional/Atribuicoes >. Acesso em: 06 fev. 2024.

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